O problema intertemporal dos gastos fiscais

Existe um argumento na discussão de política macroeconômica do Brasil de que o Estado tem um dever implícito de auxílio e distribuição de renda. Em partes, isso é correto. O governo tem a capacidade de resolver assimetrias sociais causadas por incentivos econômicos distorcidos com gastos em áreas como educação, saúde e segurança pública.

Além disso, o Estado pode ir além e implementar programas que garantam uma renda básica para indivíduos das faixas mais pobres da população. Um exemplo disso é o Bolsa Família, um excelente programa de redistribuição de renda que ajudou milhões de pessoas a saírem da pobreza. Outro exemplo é o auxílio emergencial distribuído aos mais afetados por esta crise. Ou seja, os gastos estatais têm o seu propósito, mas, mais importante, têm o seu tempo. 

A grande questão é que o governo deveria tomar uma decisão intertemporal orçamentária e poupar em tempos de bonança para poder gastar em tempos de crise. Isso não quer dizer que o Estado deva cessar gastos quando a economia vai bem, mas continuar mantendo um fluxo de dispêndio relativamente constante como proporção de sua riqueza em programas sociais eficientes, investimento em áreas subdesenvolvidas e manutenção do funcionamento de escolas, hospitais e estabelecimentos essenciais para a segurança e bem-estar social. 

Agora, o que acontece no Brasil não poderia estar mais distante deste raciocínio. De maneira muito simplificada, desde a Constituição de 1988, o Estado se comprometeu de forma extraordinariamente rígida em honrar gastos com programas de investimentos duvidosos e remunerações generosas ao alto escalão da máquina pública. Desde então, o espaço orçamentário para gastos discricionários foi desaparecendo, déficit primário foi chegando e a dívida aumentando até chegar à situação que estamos hoje. 

E existe um momento pior para uma ruptura fiscal do que a maior pandemia do século? É exatamente agora que o Estado deveria entrar em cena de forma contundente e amparar uma sociedade incapaz de se defender por si só. No entanto, aqui entramos no nosso problema intertemporal; a classe política não tem, nem nunca teve, o incentivo para tratar do nosso problema fiscal com a implementação de políticas austeras. A austeridade afeta negativamente a probabilidade de reeleição e, assim, faz muito mais sentido deixar o político que virá no futuro se preocupar com o rombo fiscal. E assim vamos levando de barriga uma bomba que sempre estoura nos momentos mais delicados da trajetória econômica brasileira. 

O que estamos vivenciando agora é justamente isso. É indiscutível que o governo deveria auxiliar a população em um momento desses, mas não temos o espaço fiscal para isso desde 2014, para dizer o mínimo. O que é não ter espaço fiscal? É o que eu falei mais acima, onde quase todo nosso orçamento está comprometido com gastos fixos e em momentos de crise devemos recorrer a emissão de dívida para financiar nosso déficit. Qual o problema de emitir dívida? É o que você está vendo agora; um câmbio que quase chegou a 6, ameaça inflacionária e aumento de juros.

Ou seja, gastos desenfreados quando aliados a um orçamento desequilibrado e altos níveis de dívida são nocivos para não só a economia, como para o funcionamento da sociedade em geral. Por exemplo, o aumento substancial de preços é um dos maiores males que uma economia pode sofrer, afetando, principalmente, as faixas com menor renda da população. Estes podem ver o dinheiro que ganharam no começo do mês virarem pó depois de alguns meses se não tiverem acesso a instrumentos financeiros que garantem rentabilidade acima da inflação, que muitas vezes é o caso. 

Por fim, a extensão do auxílio emergencial é bem-vinda, pois milhões de brasileiros continuam sendo duramente afetados pelo andamento dessa crise sanitária e temos que ampará-los.

No entanto, a intensidade da primeira iteração do auxílio foi exagerada e sua eficiência foi duvidosa. Logo, o Estado deve gastar de forma eficiente e responsável. Uma das formas responsáveis de gastar seria a aprovação de uma PEC Emergencial robusta que busca equilibrar o problema intertemporal que citei; se iremos gastar agora, devemos poupar no futuro. No entanto, a PEC está longe de ser a solução dos nossos problemas. Precisamos de uma profunda alteração na nossa estrutura de gastos, uma verdadeira reformulação orçamentária que retiraria privilégios salariais deturpados e desatrelaria a obrigatoriedade de investimentos ineficientes. A proposta da Reforma Administrativa é um passo tímido nesta direção e, sem surpresa, sofre oposição da classe política. Caso aprovada, seria uma mudança ainda conjuntural que pouco alteraria nossa inércia fiscal. Para isso temos que reformar nossas instituições acomodadas, enfrentar o enraizamento de privilégios e investir em uma educação de qualidade.

João Mercadante

Formado em Ciências Econômicas pelo Insper e é economista na Apex Capital.

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