O Programa Nacional de Desestatização na década de 90

O final da década de 80 foi marcado pela taxa de desemprego crescente, crise fiscal, dívida externa fora de controle e uma hiperinflação que beirava 80% ao mês. Durante os anos de 1981 a 1990, o PIB brasileiro cresceu a uma taxa média de 1,6% ao ano, muito inferior ao crescimento da década de 70, que teve crescimento médio 8,6% ao ano. Isso rendeu à década de 80 a alcunha de “Década Perdida” e, foi nesse cenário econômico adverso, que Fernando Color de Mello iniciou seu governo no ano de 1990.

Logo no primeiro dia após a posse do Presidente, foi anunciado o “Plano Brasil Novo” (posteriormente conhecido como “Plano Color I”), o qual, dentre outras medidas, instituiu a Medida Provisória 155/90. Esta MP implementava o Programa Nacional de Desestatização (PND), seu objetivo era reordenar a posição estratégia do Estado, através da transferência de atividades exercidas pelo setor público ao setor privado. Em menos de um mês, a MP 155 foi convertida na Lei 8.031/90, formalizando e efetivando o PND.

O Programa Nacional de Desestatização estabeleceu uma Comissão Diretora, subordinada diretamente ao Presidente da República. Os membros dessa comissão eram nomeados pelo próprio Presidente e cabia ao Congresso Nacional aprovar a indicação. A comissão detinha exatamente 15 competências, sendo as principais: (i) propor ao Presidente as empresas a serem incluídas no PND, (ii)  submeter ao presidente o cronograma do PND, (iii) coordenar, supervisionar e fiscalizar o PND, (iv) aprovar a destinação dos recursos provenientes das alienações e (v) propor ao Presidente uma instituição pública para ser gestora do Fundo Nacional de Desestatização.

Com relação a última competência, cabe ressaltar que foi criado o Fundo Nacional de Desestatização (FND). O FND passou a ser o titular da totalidade das ações, anteriormente detidas pela União, das empresas incluídas no PND. O Gestor designado foi o BNDES, que já tinha trabalhado em alguns pequenos processos de privatização na década de 80.

Os processos de privatização foram feitos da seguinte forma: o BNDES escolhia, mediante licitação pública, duas firmas de consultoria, a primeira era responsável pela avaliação da empresa e a recomendação de um preço mínimo de venda (Serviço A), já a segunda realizava não só as mesmas atividades da primeira, como também analisava os obstáculos à privatização, indicava possíveis soluções, identificava potenciais investidores, sugeria a forma de venda e era responsável por operacionalizar grande parte do processo de privatização (Serviço B). Além disso, havia uma firma de auditoria responsável pelo acompanhamento de todo o processo, que tinha como objetivo emitir um relatório completo das atividades, dando total transparência aos procedimentos. Isso auxiliava na prestação de contas aos demais órgãos do Estado, já que os processos de privatização eram acompanhados por um subcomitê da Câmara dos Deputados, do Judiciário e do Tribunal de Contas.

Durante o Governo Collor (1990 a 1992) foram incluídas 68 empresas no PND, sendo que somente 18 foram desestatizadas, gerando uma arrecadação total de US$ 4,0 bilhões aos cofres públicos e mais US$ 1,3 em transferência de dívida. Nesse período, foram privatizadas empresas como a Usiminas, Acesita e Fosfértil. Pode-se dizer que o PND durante o Governo Collor não obteve o sucesso almejado, sendo muito prejudicado pelo contexto econômico desfavorável, com elevada inflação, alto endividamento externo e o famigerado confisco da poupança. Tudo isso tornava o risco de investir no Brasil cada vez maior, afastando investidores externos e prejudicando os potenciais compradores.

O Presidente Itamar Franco (1993 a 1994) deu continuidade ao Programa Nacional de Desestatização. Durante o seu Governo foram desestatizadas 15 empresas, gerando uma arrecadação total de US$ 4,6 bilhões aos cofres públicos e mais US$ 1,9 bi em transferência de dívida. Empresas como a CSN, Açominas, Embraer e Cosipa foram privatizadas durante o seu mandato. O Presidente em si, não se mostrava tão simpático à privatização das empresas estatais, sendo que já tinha se manifestado contrário à privatização da Usiminas e, posteriormente, como Governador de Minas Gerais, impediu a privatização da Cemig. Contudo, devido a diversas circunstancias, dentre elas, a dificuldade financeira da União, acabou dando continuidade ao PND.

Foi durante os dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso que o Programa Nacional de Desestatização ganhou maior intensidade. A agenda de privatização passou a ser priorizada e foi conduzida diretamente pela própria Presidência da República. O sucesso do Plano Real permitiu a estabilização dos preços e trouxe uma situação macroeconômica mais favorável, o que aumentou o interesse dos investidores estrangeiros no Brasil e ampliou o hall de potenciais compradores. O sucesso no controle da inflação também possibilitou ao Governo angariar maior apoio político e aprovar no Congresso emendas constitucionais que permitiram a privatização nos setores de telecomunicação, mineração e eletricidade.

Em 1997, o Governo aprovou a Lei 9.491/97, que substitui a antiga Lei 8.031/90. A nova Lei fez importantes alterações no PND e deixou mais forte programa de privatizações. Dentre as alterações se destaca a substituição da Comissão Diretora pelo Conselho Nacional de Desestatização (CND), composto legalmente pelo Ministro do Planejamento, Ministro da Casa Civil, Ministro da Fazenda, Ministro da Administração e Reforma do Estado, e pelo Ministro da Indústria, Comércio e Turismo. Participavam também do CND, o presidente do Banco do Brasil (com direito a voto somente quando se tratava de privatização de instituição financeira), um representante do BNDES (sem direito a voto), o titular do Ministério a qual a empresa a ser privatizada estava vinculada (com direito a voto) e outros eventuais convidados (sem direito a voto).

A Lei 9.491/97 também instituiu o BNDES como o gestor legal do Fundo Nacional de Desestatização, competência que não estava formalizada na Lei 8.031/90. A nova Lei também deu competência ao BNDES para atuar nos processos de desestatização de empresas detidas pelos Governos Estaduais e Municipais, quando por estes solicitados. Outras mudanças relevantes foram: (i) permissão para que as empresas estatais criassem subsidiárias ou realizassem cisões, incorporações e outras operações societárias a fim de facilitar o processo de privatização; (ii) permissão para que investidores estrangeiros adquirissem até 100% do capital votante da empresa; (iii) assegurou aos empregados das empresas a serem privatizadas a oferta de parte das ações representativas de seu capital; dentre outras alterações.

Com o ambiente econômico mais favorável, maior apoio político e as mudanças legais necessárias aprovadas, durante o Governo FHC, ao longo dos anos de 1995 a 2002, foram realizadas as desestatizações de mais de 100 empresas, totalizando US$ 78,9 bilhões de receita e mais US$ 14,9 bilhões em transferência de dívidas. Sendo US$ 51,0 bi referente a empresas estatais controladas pela União e US$ 27,9 referente às controladas pelos Estados; com relação a transferência de dívida foram US$ 8,1 bilhões e US$ 6,8 bilhões, respectivamente. Cabe ressaltar que foi somente durante o Governo FHC que se iniciou as desestatizações de âmbito estadual, as quais foram facilitadas com a Lei 9.491, a qual deu a competência necessária ao BNDES. Durante o período, passaram para o controle privado as empresas Light, Cia Vale do Rio Doce, Telebrás, Porto de Salvador, Datamec, Banco do Estado de São Paulo, Banco do Estado do Paraná, Banco do Estado de Goiás, Celpe, Cemar, dentre diversas outras empresas.

O capital estrangeiro teve participação consideravelmente maior durante o Governo FHC do que nos governos anteriores, conforme mostra a tabela abaixo:

Em síntese, pode-se dizer que o Programa Nacional de Desestatização na década de 90 teve três fases principais, a primeira durante o Governo Collor, que teve o mérito de iniciar o arcabouço legal para comandar um amplo processo de privatizações, mas que não conseguiu apurar grandes resultados. A segunda durante o Governo Itamar, a qual foi uma continuidade da primeira, mantendo-se o mesmo arcabouço legal, porém, com melhores resultados devido à aquisição de experiência obtida na primeira frase. E a terceira fase, durante o Governo FHC, que de fato foi a mais ampla e mais bem-sucedida, devido não somente à convicção do Governo em fazer o programa, como também à melhora do cenário macroeconômico e o maior apoio político.

 

O Programa Nacional de Desestatização que se iniciou no Governo Collor e foi aprimorado durante o Governo FHC permanece até hoje. O atual Secretário de Desestatização e Desinvestimentos, Salim Matar, utiliza-se do arcabouço legal e da expertise do BNDES para conduzir as privatizações que ficaram estacionadas durante uma década e meia. A lógica de atuação do BNDES, por meio da contratação de duas consultorias, permanece em vigência e o Banco tem sido o maior responsável pelas privatizações no país, inclusive, as estaduais. Com relação a este último, cabe ressaltar, que o Governo de Minas Gerais iniciou sua Política Estadual de Desestatização em novembro/2019, por meio do Decreto 47.766, seguindo lógica de funcionamento semelhante ao PND. Mais informações sobre esta, contudo, ficarão para um próximo artigo.

Notas

COSTA E SILVA, Joana “O Modelo de privatização do governo Fernando Henrique Cardoso.” (2005).

CASTELAR, Armando e GIAMBIAGI, Fabio. “Os antecedentes macroeconômicos e a estrutura institucional da privatização no Brasil.” (2000).

BNDES, Relatório do Programa Nacional de Desestatização

DIAS, M., TELES, A., PILATTI, K., “The Future of Privatization in Brazil: Regulatory and Political Challenges”.

Victor Cezarini

Mestre em Economia pela Universidade de São Paulo e Assessor de Desestatização no Governo de Minas Gerais

 

 

 

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