Na primeira parte dessa minissérie, abordei algumas das questões principais envolvidas na evolução naquela que ficou conhecida como crise do subprime, como o papel de títulos hipotecários e agências de rating na formação da bolha imobiliária no coração do sistema financeiro norte-americano. Em especial, destaquei cinco variáveis que, relacionadas umas às outras, encontram-se presentes nas causas estruturais da crise cujas consequências assombram a economia mundial até hoje.
Nesta segunda parte, elenco as cinco variáveis identificadas de modo a apresentar uma análise comparativa entre a recente crise e a onda de crises que atingiu países em desenvolvimento em diferentes regiões do mundo ao final da década de 1990 – fenômeno denominado pela literatura especializada como crise dos países emergentes (emerging market crisis). É claro que não tenho a ousadia (ou loucura) de dizer que todas as crises financeiras que atingiram países emergentes nesse período tiveram as exatas mesmas características ou causas. Entretanto, assim como disse na primeira parte, o meu intuito é destacar a existência de causas estruturais comuns a essas (e a outras tantas) crises que atingiram, e ainda atingirão, a economia global; reforçando, assim, a importância “do que a história ensina”.
Ademais, vale destacar que, apesar de este texto focar especialmente em países do Leste Asiático e na Argentina, isso não implica que tais variáveis não possam ser aplicadas a outras economias emergentes, tampouco exclui o impacto de outros fatores, específicos ou não, nestes e em outros países.
Portanto, sem mais longas, apresento abaixo as cinco variáveis identificadas durante análise da crise do subprime na parte 1 desse artigo, na respectiva ordem em que foram abordadas anteriormente:
Inovação financeira
Como visto, a associação entre inovações financeiras e maior instabilidade econômica não é um assunto novo; em 1978 autores como Kindleberger[i] já chamavam atenção para o risco do otimismo excessivo e do comportamento de manada gerados por inovações no campo financeiro. No caso da crise dos países emergentes dos anos 1990, essa inovação tomou a forma de mercados financeiros liberalizados (leia-se a abertura da conta de capital).
Da mesma maneira que novos tipos de instrumentos e instituições (como a securitização e os fundos de hedge[1]) aumentaram a concorrência no mercado financeiro norte-americano em meados de 2000, incentivando a maior tomada de riscos, a liberalização introduziu um choque de competição nos mercados emergentes na década de 1990, incentivando instituições financeiras locais a aumentarem seus riscos em busca de maior espaço em um mercado até então protegido por fronteiras geográficas e regulatórias[ii].
Para ilustrar a magnitude da abertura financeira observada no mundo emergente nos anos 1990, a parcela de mercado ocupada por bancos estrangeiros na Argentina cresceu de 16% para 48% entre 1994 e 2000.[iii]
Nesse sentido, Reinhart e Rogoff (2008)[iv] contribuem para a comparação dos dois períodos ao destacarem o papel de um processo que chamaram de liberalização de facto. De acordo com tais autores, apesar de não ter havido um processo de liberalização financeira de jure nos EUA durante os anos 2000, o avanço tecnológico do mercado e a entrada de novas, e até então não reguladas, instituições financeiras levou a um processo de liberalização financeira de facto. Em outras palavras, as inovações no mercado financeiro norte-americano causaram impactos de grande semelhança quando comparados àqueles gerados pela liberalização financeira em países em desenvolvimento a partir da abertura da conta de capitais – levando a uma espécie de liberalização financeira “real”, mesmo na ausência de uma liberalização “nominal”
Portanto, é possível observar o papel de inovações financeiras (na forma de liberalização de jure ou de facto) como fonte desestabilizadora em ambos os períodos. Nesse contexto, vale destacar que tais inovações andaram lado a lado com a desregulamentação e a falta de transparência características do mercado financeiro também nos dois períodos, o que nos leva à segunda variável.
Falta de transparência e regulação
Como discutido no artigo anterior, um ambiente econômico altamente permissivo e pouco regulado teve um importante papel na criação e no aumento da bolha imobiliária cuja eclosão levou à crise financeira iniciada em 2008. Regulações ultrapassadas que não abrangiam novos tipos de instituições e instrumentos financeiros se uniram à falta de transparência do setor, resultando em mutuários comprando “gato por lebre” diante de graves conflitos de interesse entre os emissores de complexos e arriscados títulos, e aqueles responsáveis por avaliá-los.
Na década de 1990, mercados igualmente pouco regulados e nada transparentes contribuíram em larga escala para a desestabilização de economias emergentes, nas quais a abertura da conta de capitais ocorreu anteriormente ao desenvolvimento de não somente mecanismos prudenciais de fiscalização por parte dos governos, mas também de ferramentas de gestão de risco por parte dos bancos.[v] Dito de outra forma, países passaram a ter seu mercado financeiro integrado ao resto do mercado global sem que antes governos adotassem medidas que garantissem a regulação de um setor muito mais complexo e dinâmico, ou que bancos desenvolvessem técnicas capazes de administrar uma exposição a maiores riscos. Em uma fraca analogia, é como jogar uma criança de quatro anos no mar, antes que essa tenha aprendido a nadar, ou que seus pais tenham comprado uma “boinha” sequer.
Essa dinâmica foi mais perceptível em países do Leste Asiático, onde a forte proximidade entre as esferas pública e privada levou a distorções estruturais nos setores bancário e empresarial. Em países como a Indonésia e a Coréia do Sul, a alocação de crédito baseada em critérios não mercantis (enfatizando relações quase monopolísticas entre bancos e corporações executivas), uniu-se aos incentivos distorcidos para seleção de projetos e fiscalização por parte do Estado, abrindo espaço para o “capitalismo de compadrio” (crony capitalism) como fonte de instabilidade.[vi]Em outras palavras, a liberalização ocorreu sem que velhas práticas patrimoniais fossem eliminadas, levando a um cenário caraterizado pela distorção de incentivos e recursos, no qual monopólios passaram a coexistir com um mercado de capitais aberto.
Ou seja, bancos concediam crédito a empresários não com base em suas rendas comprovadas ou histórico financeiro, e sim devido a relações pessoais ou mesmo ligações corporativas, uma vez que era frequente o mesmo grupo familiar ser dono de negócios tanto no setor bancário quanto empresarial. De maneira análoga, empresários com relações próximas a políticos tinham seus projetos financiados sem avaliações prévias de risco, viabilidade ou impacto produtivo, além de não sofrerem qualquer tipo de fiscalização durante seu desenvolvimento. Desta maneira, um ambiente econômico marcado pela corrupção e distorções de alocação de recursos tornou-se uma das principais fontes de instabilidade nos recém liberalizados mercados financeiros de países emergentes.
Nesse sentido, da mesma maneira que nos EUA da década de 2000, a falta de regulação e transparência do sistema financeiro em países emergentes em meados de 1990 gerou um ambiente econômico marcado por crescentes níveis de alavancagem e concessão de crédito, nos levando a terceira variável.
Aumento de alavancagem e excesso de crédito
Como explicitei na parte 1 desse artigo, nem a diferença entre aumento de crédito e o lastro monetário, nem a discussão entre o crescimento de alavancagem e excesso de crédito são assuntos novos, especialmente entre a literatura especializada. Como discutido por Schularik e Taylor (2009)[vii], níveis de crédito vem crescendo mais rápido e mais forte do que o lastro monetário e o PIB desde o final da Segunda Guerra, especialmente a partir da década de 1970, quando instituições financeiras passaram a apresentar crescentes níveis de alavancagem. Diversos autores, como Misnky (1978) e Shumpeter (1939) há muito chamavam atenção para a relação de causalidade entre crédito abundante, empréstimos imprudentes, especulação financeira e a eclosão de crises financeiras.
Entretanto, assim como o aumento do crédito não foi observado com atenção durante a formação da bolha imobiliária nos EUA dos anos 2000, o excesso de empréstimos e alavancagem financeira não foram evitados em países emergentes nos anos 1990, nem a nível público, nem a nível privado. Em uma dinâmica chamada de “evergreening process” por Corsetti et. al (1998), países emergentes entraram em um ciclo vicioso (ou virtuoso, na visão da época), em que agentes privados eram financiados por bancos (a partir de níveis cada vez maiores de alavancagem), que eram financiados pelo governo (que também financiava agentes privados diretamente), que por fim refinanciava-se a partir de uma crescente dívida externa.
Esse cenário pode ser observado tanto em países do Leste Asiático, como Coreia do Sul, onde o crescente endividamento financiava projetos não produtivos, quanto na Argentina; com a diferença de que no último, além de projetos improdutivos, a crescente dívida externa financiava o plano da conversibilidade[2], cujos limites intrínsecos à capacidade produtiva e ao arcabouço institucional do país tornavam-no fadado ao fracasso desde os primeiros anos após sua concepção[viii].
A discussão sobre o excesso de crédito característico em economias pré-crise 1990 nos leva à terceira variável, a abundância de liquidez.
Abundância de liquidez
Como discutido, um ambiente de abundância de liquidez, oriundo tanto de uma crescente poupança global (global savings glut), quanto de uma política macroeconômica expansionista por parte do governo norte-americano (nas frentes fiscal e monetária), contribuiu em larga medida para o excesso de crédito e níveis de alavancagem, além de incentivar instituições financeiras a tomarem maiores riscos em busca de retornos, tendo assim importante papel na formação da bolha imobiliária, e na consequente eclosão da crise de 2008.
De maneira análoga, o cenário de abundância de liquidez foi característico em mercados emergentes nos anos que antecederam a crise dos anos 1990. Na região do Leste Asiático, a liberalização financeira atraiu investidores estrangeiros a procura de maiores retornos nas “economias milagrosas”, inundando a região de liquidez.[ix] Em outras palavras, investidores ao redor do mundo passaram a aplicar grandes quantias em mercados do leste asiático, devido à recente abertura financeira (contas de capital) e aos níveis de crescimento recorde observados em países da região (que, mais tarde, provar-se-iam claramente insustentáveis). Desta forma, o ciclo definido como evergreening process por Corsetti et. al (1998) era constantemente realimentado.
Na Argentina, por sua vez, a abundância de liquidez proveu-se inicialmente por investidores internacionais, assim como em seus pares asiáticos. Com base no forte apoio do FMI ao plano econômico do país (o plano de conversibilidade), a Argentina passou a ser vista pelo mercado internacional como “o filho pródigo do neoliberalismo”, atraindo grandes quantias de capital.[x]
Entretanto, a medida em que o regime da conversibilidade mostrava sinais de insustentabilidade, afugentando investidores em busca de segurança e rentabilidade, o medo da perda de credibilidade por parte do FMI (que apoiava ferreamente um plano cujos limites expostos nos primeiros anos após sua concepção apontavam para a insustentabilidade) levou o organismo a contribuir cada vez mais com o cenário de liquidez abundante.[xi] Desta maneira, o crescente endividamento ancorado em um ambiente de liquidez excessiva (tanto a nível privado quanto público) teve papel importante em encaminhar o país à crise da moratória de 2001.
Neste contexto, somos conduzidos à última variável discutida por esse artigo, o risco moral.
Risco Moral
Como discutido na primeira parte desse artigo, o risco moral contribuiu em grande medida para a formação da bolha imobiliária observada no mercado norte-americano durante os anos 2000, e para a consequente crise do subprime. O subsídio implícito a credores (bancos e outras instituições financeiras) encorajou o crescimento de dívidas, tanto no setor bancário quanto familiar, tornando o mercado financeiro inúmeras vezes maior e mais arriscado.[xii]
Como era de se esperar (a essa altura do artigo), o caso não foi assim diferente na década de 1990 com mercados emergentes. No leste Asiático, o risco moral pode ser observado a partir de dimensões: corporativa, financeira e internacional. Em um cenário marcado pela pressão popular por crescimento econômico, e por relações de favoritismo político refletidas em inúmeras formas de subsídio, empresas privadas acreditavam que o governo interviria em seu favor em caso de crise. Ao mesmo tempo, bancos locais endividavam-se emprestando de investidores estrangeiros que, por sua vez, confiavam em uma intervenção direta por parte dos governos asiáticos ou indireta por parte de programas do FMI. Desta maneira, o risco moral permeava o sistema econômico em países do leste asiático, servindo de combustível para o ciclo vicioso do evergreening process.
De maneira análoga, o governo argentino passou a ter certeza de que o FMI os resgataria em caso de uma crise aguda, e não se preocupou o quanto deveria diante da eminente crise. A principal razão para tamanha confiança provinha do contínuo apoio da instituição (a partir de inúmeros e milionários pacotes de ajuda financeira, além de pronunciamentos públicos), mesmo após o país ter perdido credibilidade perante investidores estrangeiros, dada a perceptível insustentabilidade de seu plano econômico.
Portanto, fontes de risco moral podem ser encontradas em governos (fazendo com que instituições financeiras acreditem ser “muito grandes para quebrar”), organismos internacionais (como o FMI), ou mesmo no próprio mercado internacional, como foi o caso da crise do subprime, no qual este proveu a confiança necessária para que os EUA absorvessem a poupança global sem preocupar-se com a crescente bolha que alimentava em seu próprio mercado.
Por fim, é possível dizer que tais variáveis comprovam haver grande similaridade entre as causas estruturais de dois episódios de crises com aparências muito diversas. Entretanto, vale lembrar que a existência de tais elementos não exclui o papel de outros fatores, ou muito menos é capaz de explicar todas as crises da história econômica, ou prever todas as outras crises por vir. Afinal, se eu soubesse isso, já estaria rica!
Referências
[1] Sem tradução oficial, fundos de hedge são, grosso modo, fundos de investimento alternativos, com altos índices de alavancagem, com poucas restrições de investimentos e de natureza especulativa.
[2] Na década de 1990, o governo argentino adotou uma política monetária de conversibilidade com o dólar, de modo a ajustar a inflação e a crescente instabilidade econômica.
[i] Kindleberger apud Helleiner, E. Understanding the 2007-2008 Global financial crisis: lessons for scholars of International Political Economy. Waterloo: University of Waterloo, 2011
[ii] Forssbaeck, J. Determinants of bank overlending. Lund: Lund University, 2009
[iii] Damill, M., Frenkel, R. and Rapetti, M. La Deuda Argentina: Historia, Default y Reestruturacion. Buenos Aires: CEDES, 2005
[iv] Reinhart, C. and Rogoff, K. Is the US sub-prime financial crisis so different? An international historical comparison. Working paper 13761, Cambridge, 2008
[v] Yoshitomi, M. and Asian Development Bank Institute staff. Post-crisis development paradigms in Asia. Tokio: Asian Development Bank Institute, 2003
[vi] Corsetti, G., Pesenti, P. and Roubini, N. Paper tigers? A model of the Asian Crisis. Working paper 6783, Cambridge, 1998
[vii] Schularick, M. and Taylor, A. Credit booms gone bust: monetary policy, leverage and financial crisis, 1870-2008. Working paper 15512, Cambridge, 2009
[viii] Damill, M., Frenkel, R. and Rapetti, M. La Deuda Argentina: Historia, Default y Reestruturacion. Buenos Aires: CEDES, 2005
[ix] Yoshitomi, M. and Asian Development Bank Institute staff. Post-crisis development paradigms in Asia. Tokio: Asian Development Bank Institute, 2003:66
[x] Damill, M., Frenkel, R. and Rapetti, M. La Deuda Argentina: Historia, Default y Reestruturacion. Buenos Aires: CEDES, 2005
[xi] Ibidem.
[xii] Boone, P. and Johnson, S. ‘Will the Politics of Global Moral Hazard Sink us Again?’ Chapter 10, in Adair Turner et al. The Future of Finance London: LSE report, 2010