Guilherme Bandeira*
Economistas insistem que o ajuste fiscal deveria ser implementado para que o Brasil volte a ser, além de um lugar quente e com praias bonitas, também um país amigável aos negócios, onde grandes investidores possam alocar seus recursos com a certeza da boa rentabilidade. Olhando para um país endividado, estes mesmos investidores percebem que uma dívida insustentável no longo prazo significa um aumento significativo de impostos no futuro e, consequentemente, incerteza quanto à margem de ganho do capital aplicado. Longo prazo aqui significa investimentos que só são rentáveis depois de duas ou três décadas, em portos, estradas, aeroportos, saneamento básico, isto é, onde o montante de capital exigido no começo do empreendimento só será recuperado com lucro depois de anos de gastos significativos. Esta incerteza quanto a expectativas de ganhos futuros faz sentido. Muito grosseiramente, seria como se associar a um colega perdulário em um negócio comum, sabendo que no futuro ele pode pedir por mais uma ajuda financeira, porque a agora ele decidiu se casar, pela quinta vez, com a mesma pessoa.
Este é o aspecto macroeconômico da equação. Ainda há o aspecto microeconômico ou, como se diz, aquele que olha para as “regras do jogo”, que presta atenção não tanto para o que dizem os dados agregados de um país, mas sim para as minúcias da vida cotidiana. Como grande parte dos investimentos em infraestrutura é feito em setores regulados e fiscalizados por agências reguladoras, é prudente estudar se os contratos são cumpridos, se as agências reguladoras daquele setor irão aplicar os reajustes e revisões no prazo estipulado, se os ganhos de eficiência serão corretamente calculados, quanto deverá ser gasto com advogados, enfim, como é a “vida regulatória” daquele setor e o que se pode razoavelmente esperar dela.
Tudo pode dar errado: contratos podem ser descumpridos, pois uma medida provisória acabou de mudar seu prazo de vigência, exigindo a renegociação do contrato em novos e péssimos termos. Agências podem atrasar as revisões e reajustes, porque era ano de eleições. Ou ainda as agências podem simplesmente não atuar por falta de dinheiro, pois o governo estava fazendo um drástico ajuste fiscal, os recursos das agências foram contingenciados e elas não conseguem mais funcionar adequadamente. Foi o que aconteceu em maio deste ano com a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), que sofreu contingenciamento de seus recursos, tendo que suspender seus serviços de teleatendimento e muitas fiscalizações que dependem de contratos específicos. E o que sabemos sobre este segundo aspecto microeconômico? Muito pouco, infelizmente.
No mês passado, o Grupo de Estudos das Relações entre Estado e Empresa Privada (GRP) da FGV divulgou uma pesquisa raríssima de ser feita nas universidades e institutos de pesquisa do Brasil. Raríssima porque ela não é nem teórica, nem jurídica, mas sim meramente descritiva. Os pesquisadores simplesmente coletaram (ou tentaram coletar) dados empíricos sobre os processos de nomeação e formação dos quadros das principais agências reguladoras voltadas aos setores de infraestrutura. Ao todo, foram analisadas seis agências federais e doze estaduais.
Os pesquisadores esquadrinharam tópicos sensíveis na vida de nossas agências: as características dos dirigentes, o processo de nomeação, cumprimento e vacância dos mandatos. Primeira conclusão da pesquisa: não há muitos dados disponíveis sobre as agências estaduais e, se os há, é muito difícil de consegui-los, mesmo sendo todas informações públicas. Outras conclusões importantes: a expertise técnica de grande parte dos dirigentes das agências, que geralmente já vem do setor público, é questionável, sem pertinência com o setor regulado; há muita demora para nomear e preencher os quadros (principalmente entre a saída do cargo e uma nova indicação); muitos dirigentes são “saídos” antecipadamente porque houve troca no governo; há um aumento do tempo de vacância dos cargos e isso é muito diferente de agência para agência; houve casos paralisia decisória, sem quórum necessário para tomar decisões. O sumário executivo da pesquisa está no link abaixo, com os dados detalhados e as conclusões gerais. No final do mês, o relatório completo será divulgado no mesmo site, com mais de quatrocentas páginas de dados.
A pesquisa é excelente. Acrescento que haveria outros tópicos importantes que poderiam ser abordados, tais como a estrutura de cargos e carreiras das agências ou se há, na prática, autonomia orçamentária e financeira, isto é, se elas podem fazer suas propostas de orçamento e conseguir executá-los como planejado. Não é dito com todas as letras, mas é fácil perceber que o desprezo de governos pelo bom funcionamento de agências reguladoras é suprapartidário e supra-ideológico. Respeitar a autonomia decisória, orçamentária, financeira e técnica de uma agência, como manda a lei, representa àquele que ocupa o cargo no poder executivo uma perda substancial de seu poder. E ninguém gosta de perder poder.
O discurso da retomada da confiança dos investidores vem sempre com aquela leve sensação de que, se necessário, o voluntarismo político será a resposta, mesmo à custa de insegurança jurídica e institucional. Há, também, o fenômeno do chamado “capitalismo de quadrilha”, quando há um acordo de cavalheiros entre políticos e empresários. Mudar as regras do jogo pode ser sim muito vantajoso, para um empresário e não para outro. A captura que o governo faz de uma agência nada mais é, neste caso, do que uma captura privada, com o governo agindo para beneficiar um determinado grupo econômico, geralmente aquele que pagou sua dívida de campanha. Por fim, há o bom e velho “longo prazo”. Lévi-Strauss, o antropólogo, não a marca de calça jeans, dizia que no Brasil tudo parece que é ainda construção, mas já é ruína (essa bela frase está na canção “Fora de Ordem”, de Caetano Veloso, um cuidadoso leitor do antropólogo francês). Culturalmente, aqui eu arrisco, pensamos no curto prazo, tudo já nasce meio que velho. Talvez por isso sejamos tão charmosos, os centros de nossas cidades sejam tão degradados e nosso asfalto seja tão ruim. Talvez.
Estas são hipóteses que, obviamente, deveriam ser testadas com fortes evidências empíricas cuidadosamente coletadas. Que venham novas pesquisas. A mencionada aqui pode ser lida no link: http://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/GRP_arquivos/sumario_executivo_grp_-_pep_01.pdf
Guilherme Bandeira* bacharel em direito pela FGV-SP, filosofia pela USP e mestre (LLM) pela Universidade de Nova Iorque.