A guerra cambial brasileira: indústria brasileira por trás do bode (parte 4)

Você no Terraço | Rachel de Sá

Esse é o último artigo da minha série aqui para o Terraço, na qual abordei a retórica da Guerra Cambial brasileira levada a cabo por uma recém empossada presidente Dilma, para seu primeiro mandato e seu fiel escudeiro, e famoso defensor da “nova matriz macroeconômica”, Guido Mantega.

Como argumentado nos capítulos anteriores dessa novela, a acusação brasileira contra políticas monetárias não convencionais adotadas pelos EUA perde força quando importantes fatores são analisados mais de perto. Mais precisamente, o impacto direto da política de Quantitative Easing do FED na valorização da moeda brasileira – que revela-se relativamente pequeno, quando comparado à fatores internos; a tendência de valorização cambial do Real presente na economia brasileira anos antes de quaisquer políticas monetárias não convencionais por parte dos EUA; e o timing da politização de uma suposta guerra cambial por parte do governo brasileiro, coincidentemente correspondente ao momento em que a piora do cenário internacional passou a revelar fraquezas intrínsecas ao modelo econômico vigente (principalmente em relação à competitividade industrial), até então mascaradas por um ambiente externo favorável.

Neste contexto, discutirei entraves à competividade enfrentados pela indústria brasileira na época em que ecoavam acusações de guerra cambial, que – assim como atualmente – vão além da taxa de câmbio. Problemas estes resultantes de políticas contra as quais o governo pretendia evadir críticas, e para as quais a devida retórica serviu como conveniente bode expiatório. Nas palavras de Pastore et al:

Em nenhum momento o governo se preocupou em corrigir o rumo de sua política econômica (…), limitando-se aos brados contra a “guerra cambial”, à qual atribuía a letargia da indústria, que era provocada por suas próprias políticas.[i]

Produtividade X Salários

De fato, como destacado por Mantega e Dilma, a indústria brasileira enfrentava sérios problemas de competitividade em 2010, como ainda enfrenta hoje. Entretanto, como no caso da valorização cambial, esse não é um fenômeno pós-Quantitative Easing. O gráfico abaixo ilustra como a participação no PIB da indústria de transformação tem diminuído desde no mínimo 2004.

Porcentagem do PIB atribuída à indústria de transformação

pibtransf

Fonte: IPEA apud Silva (2014:73)

Porém, compreender a atual situação do setor industrial brasileiro requer contextualização. Um olhar mais atento à situação econômica do país como um todo revela a importância da dinâmica existente entre produtividade e salários nos últimos dez anos, na qual o fraco desempenho da primeira e o contínuo aumento do segundo apresentam-se como maiores responsáveis pela falta de competitividade da indústria do país.[ii] Mas por que? Tento explicar.

Como visto, a crescente demanda por commodities levou a um salto nos Termos de Troca do Brasil na última década (mais ou menos como se você passasse a poder comprar um maior número de Iphones com o mesmo número de sacos de soja vendido). Tal melhora valorizou o câmbio real, permitindo que brasileiros substituíssem a compra de industrializados nacionais por importados. Seguindo a mesma analogia, se sua soja vale agora vários Iphones, por que raios você iria comprar um LG G2 D805 que, segundo um cliente bravo do Reclame aqui, é fabricado no Brasil?

Indíce dos termos de troca do Brasil

termos de troca

Fonte: FUNEX; Elaboração própria.

Ao mesmo tempo, o crescimento do consumo doméstico objetivado pelo aumento no gasto público (também permitido pelo cenário externo favorável) na forma de políticas como as de maior acesso ao crédito, levou a maiores gastos em serviços. No caso, se você agora tem mais dinheiro, porque é beneficiário de programas de transferência de renda ou finalmente conseguiu ter um cartão de crédito, você vai usar aquela graninha a mais para, quem sabe, fazer as unhas semanalmente ou ir a um restaurante.

Nesse contexto, o cenário econômico brasileiro alterou-se; os insumos passaram a direcionar-se do setor industrial ao setor serviços. Deste modo, a economia como um todo atingiu o nível de pleno emprego, mesmo com capacidade ociosa no setor industrial. Ou seja, todo mundo tinha emprego, mas o setor industrial não produzia o que poderia estar produzindo a partir de sua capacidade instalada.

A cereja do bolo veio, então, na forma de aumentos salariais definidos por lei, e rígidas leis trabalhistas. Empresas optavam por não demitir funcionários, com medo das multas e benefícios que teriam que pagar; ao mesmo tempo, o salário mínimo aumentava além dos ganhos de produtividade. Resultado? Enquanto o salário mínimo real cresceu 48% entre 2006 e 2012, a produtividade cresceu 11%.

Tal discussão nos leva a pensar: “mas porque tão baixos níveis de produtividade? Por que ela não aumentou, de modo a acompanhar o aumento de salários em algum momento?”. Diversos elementos estão por trás da incrível improdutividade de trabalhadores brasileiros destacada no título de uma matéria publicada pela The Economist em 2014. Por falta de espaço (e convenhamos, paciência dos leitores), destacarei quatro fatores que julgo de elevada importância, dado sua presença em diversos estudos sobre competitividade conduzidos por organizações internacionais, como o Banco Mundial, e domésticas, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI).

O primeiro elemento é investimento; mais precisamente, a ausência deste. Como discutido em meu último artigo, o modelo de crescimento adotado durante a última década priorizava o consumo à investimentos de longo prazo. Para ilustrar, enquanto o gasto público cresceu de 19% do PIB em 2003 à 23% em 2013, o nível de investimento público como um todo permaneceu em 1.5% do PIB (IBGE, STN). Mas o que investimento tem a ver com competitividade? Bom, pense quão mais barato iria custar para transportar um tênis fabricado em Franca para o porto de Santos, com melhores estradas e trens? Da mesma maneira, quão mais produtivos seriam funcionários brasileiros, se lhes fosse garantida educação de qualidade do nível básico ao superior?

Nesse sentido, pode-se também citar o impacto de investimentos no crescimento do país como um todo. Investimentos em infraestrutura, por exemplo, cujo o diferencial de capacidade é capaz de explicar 34.6% da diferença entre o crescimento do PIB brasileiro e o apresentado pela maioria dos países do leste Asiático.[iii] Em termos de investimento em educação, este chega a responder por 89% da distância entre o PIB per capita brasileiro e de nosso vizinho chileno.[iv]

O segundo elemento que destaco é a carga tributária. Um relatório da CNI aponta que 98.1% das empresas (do setor de exportação) entrevistadas em 2014 acreditam que a carga de impostos brasileira afeta sua competitividade, ao aumentar os custos de produção. A carga tributária brasileira corresponde a 36% do PIB, próximo a média observada em países desenvolvidos da OCDE. A diferença, entretanto, é a qualidade (e quantidade) de serviços devolvidos pelo Estado, como demonstrado pelos baixos níveis de investimento refletidos nas fracas condições de infraestrutura e educação. Além disso, a burocracia envolvida no processo de pagar impostos (complexidade tributária) faz com que o Brasil figure como um dos lugares onde mais se perde tempo “preenchendo formulários” (em média, 2600 horas por ano).[v]

A falta de inserção global é outro fator frequentemente destacado como importante entrave à competitividade da indústria brasileira. De fato, o Brasil está entre os países com menor abertura comercial do mundo[vi]. Além disso, tendências protecionistas presentes no século XIX podem ser observadas até hoje[vii]; entre 2001 e 2012, o governo implementou ao menos 50 medidas relacionadas à comércio exterior que foram consideradas protecionistas pelo organismo internacional Global Trade Alert.[viii]

Mas por que isso torna nossa indústria menos competitiva? De maneira simplificada, quanto mais aberta a economia, maior a concorrência existe; quanto maior concorrência, maior transferência de tecnologia partindo de empresas produtivas para menos produtivas, aumentando a produtividade industrial como um todo; além disso, maior concorrência leva à saída de produtores ineficientes, incapazes de concorrer.

Neste contexto, é importante destacar o papel do Mercosul como entrave ao aumento da participação do Brasil no comércio global. Como a legislação do Mercosul impede que qualquer país membro entre em algum acordo comercial fora do âmbito do bloco, o Brasil deve limitar-se a negociar parcerias com as (incríveis) economias da Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela, ou sentar e esperar longas discussões, como a existente entre o Mercosul e a UE, por exemplo.

Por fim (para quem teve a paciência de ler até aqui), chamo atenção para a falta de harmonização entre as políticas fiscal e monetária como entrave à competividade da indústria brasileira. Como mencionado em texto anterior, uma taxa de câmbio valorizada serviu como âncora para controlar a inflação durante os mandatos de Lula e o início do governo Dilma, criando espaço para reduzir a taxa de juros. Quando a inflação começou a pressionar (a partir do meio de 2010), e a redução de gastos públicos era considerada uma opção menos atraente politicamente falando, o governo iniciou um novo ciclo de alta na taxa de juros – voltando a figurar entre as maiores do mundo.

Entretanto, um cenário marcado por altas taxas de juros distorce a alocação de recursos, reduzindo incentivos ao investimento industrial, uma vez que os potenciais riscos de tais investimentos tornam-se maiores quando comparados aos retornos garantidos por investimentos ligados à taxa de juros, como Títulos do Tesouro. Grosso modo, por que você iria investir em uma fábrica e enfrentar todos os riscos de um setor em declínio, se você pode deixar seu dinheiro ali no banco, rendendo a partir de um título garantido pelo governo?

Bom, e o que a políticas fiscal e monetária tem a ver com isso? Uma política fiscal focada em reduzir o aumento de gastos sem retornos em produtividade (como aumento em benefícios previdenciários) e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade e a quantidade do investimento, criaria espaço para baixar taxas de juros – uma vez que esta não teria mais que controlar o aumento de inflação consequente do expansionismo fiscal. Deste modo, menores taxas de juros não apenas criariam mais estímulos para investimentos no setor industrial, como também atrairiam menos capital especulativo – o famoso “hot Money” que, em busca de maiores retornos oferecidos por altos juros, pressionam a taxa de câmbio brasileira, afetando a competitividade de nossos produtos.

De maneira simplificada, gastando menos e de maneira melhor planejada, o governo poderia chamar mais investimentos para o setor industrial, e ainda diminuir a intensidade do tão ecoado “tsunami monetário”. Sem isso, a política monetária sempre será a única responsável por controlar o “fantasma da inflação”, e nossos juros continuarão a deixar qualquer estrangeiro de boca aberta.

Em suma, há muito (além da taxa de câmbio) a ser levado em conta ao analisar-se o baixo nível de competitividade do setor industrial brasileiro. A discrepância entre o aumento salarial e a produtividade no país são elemento chave pare entender o atual declínio desse setor; entretanto, não devemos esquecer tudo que contribuiu, e ainda contribui, para que nossa indústria figure entre as mais improdutivas entre países emergentes[ix].

Para concluir, destaco a presente situação industrial que, marcada pelo contínuo enfraquecimento[1] mesmo diante de alteração do cenário de câmbio (agora assombrado por forte desvalorização do Real), fortalece o argumento de que a retórica governista da guerra cambial foi usada como ferramenta política. Servindo, assim, de exemplo para aquilo classificado por Mosley como “bode expiar” (scapegoating): “quando a economia internacional é usada como conveniente maquiagem capaz de esconder consequências negativas de erros políticos passados”.[x]

 Rachel de formada em relações internacionais pela PUC-SP com mestrado em Economia Politica pela London School of Economics (LSE)

Notas:

[1] De acordo com dados do IBGE divulgados em reportagem da Folha de São Paulo em 15/03/2015, a participação da indústria no PIB caiu de mais de 13% em 2013 para 12% em 2015.

[i]  Pastore, A., Gazzano, M. and Pinotti, M. (2013:152) “Por que a produção industrial não cresce desde 2010?” In Bacha, E. and Bolle, M., O Futuro da Indústria no Brasil (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira)

[ii] Canuto, O., Cavallari, M., Reis, J. (2013:24) “Brazilian Exports: Climbing down a Competitiveness Cliff”, World Bank Working Paper N. 6302, Poverty Reduction and Economic Management Network

[ii] Haber et al (2003)

[iii] Ferreira, P. and França, J. (2007), “Um Estudo sobre infraestrutura: impactos produtivos, cooperação público-privado e desempenho recente na América Latina”. FGV [Unpublished document] Available at: http://www.fgv.br/professor/ferreira/InfraAmeLatCepal.pdf

[iv] Canedo-Pinheiro, M., Ferreira, P., Pessoa, S. and Schymura, L. (2007) “Does Brazil need an Industrial Policy?” IBRE/FGV

[v] Bonelli, R. and Pinheiro, A. (2012:13) “Competitividade e Desempenho Industrial: Mais do que só o câmbio”. In Fórum Nacional Rumo ao Brasil Desenvolvido Conference. Rio de Janeiro, 14 – 17 May. Paper N. 432

[vi] Canuto, O., Cavallari, M., Reis, J. (2013:03) “Brazilian Exports: Climbing down a Competitiveness Cliff”, World Bank Working Paper N. 6302, Poverty Reduction and Economic Management Network

[vii] Haber et al (2003)

[viii] Mendoza, H., Kuper, J., Rocha, A., Lora, S. (2012) “Brazil’s Dutch Disease and the Auto Trade War with Mexico: Stylised Facts” In Evenett, S. Global Trade Alert Report on Protectionism (London: Centre for Economic Policy Research)

[ix] The Economist (2014) Brazilian workers are gloriously unproductive. For the Economy to grow, they must snap out their stupor. 19 April [Print edition]

[x] Tradução própria. Mosley, L. (2005:360) “Globalization and the state: Still room to move?” New Political Economy (Vol.10:3), p.355-362

 

Rachel de Sá

Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics, mestranda em Economia, Desenvolvimento e Políticas Públicas pelo IDP, e graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP. Idealizadora do canal do Terraço Econômico no Youtube, acredita que educação financeira é para todos, e sempre busca explorar a linha tênue entre ciência política e economia.

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