Os próximos dias 23 de abril e 7 de maio reservam para os mercados mais alguns daqueles momentos que tanto marcaram o ano de 2016 em termos de volatilidade. Assim como o Brexit e a eleição de Donald Trump, dois eventos até então considerados como pouco prováveis de ocorrer. A próxima eleição francesa poderá trazer um novo elemento de apreensão, não somente para as consequências que esta poderá acarretar para o país, mas também para toda a Europa.
Minha preocupação com o velho continente já vem de algum tempo, por alguns motivos que, juntos, fazem partem de um só: a dificuldade de homogeneizar uma região que é heterogênea por natureza. Nas palavras do historiador Eric Hobsbawm em um de seus textos da década de 90: “é absurda a presunção de unidade quando se fala em Europa, porque é precisamente a divisão que caracteriza a história do continente”.¹
Antes de entrar no debate, um disclaimer: depois do desempenho das últimas previsões sobre eventos políticos, ficou clara a dificuldade de se fazer prognósticos neste campo. O objetivo deste texto é explicar as razões que ajudam a entender que a eleição da Marine Le Pen, subestimada por muitos, pode fazer todo sentido se considerados alguns argumentos e apresentar diferenças cruciais com os eventos de 2016.
Muitos têm caracterizado a candidata como um Trump no feminino. De fato, o grosso de sua agenda possui muitas semelhanças com a do novo presidente americano: os problemas econômicos e sociais internos seriam consequência de (1) um establishment que persiste em não atender as necessidades das camadas populares e (2) da competição desleal no comercio internacional, que estariam prejudicando a economia doméstica e a geração de empregos franceses.
Neste quesito, segundo Marine, ser membro da zona do Euro seria uma desvantagem, pois a França perde a capacidade de uma gestão da política monetária que permitiria ao país reencontrar sua capacidade de competir e de garantir os interesses nacionais (leia-se desvalorização cambial). Em suas palavras: “Temos que praticar o patriotismo econômico e o protecionismo inteligente. Um programa que o sr. Trump e a sra. May estão aplicando. Na realidade, eles estão aplicando o programa da Marine Le Pen”.²
No entanto, alguns aspectos diferenciam essas duas personalidades. O primeiro se refere ao “elemento surpresa”. Diferente do que o Trump foi, um aventureiro sem retrospecto na política, a candidata Le Pen não pode ser caracterizada desta maneira. A família Le Pen já está presente no jogo político há tempos, de modo que ela não é uma incógnita para o povo. Ela, e antes dela o seu pai, fundador de seu partido durante a década de 70, já vem há tempos plantando a semente de suas ideias pela França, sempre bem firmes em suas convicções nacionalistas. A título de curiosidade, sua sobrinha, Marion Maréchal Le Pen é atualmente deputada, eleita em 2012 aos 22 anos. O seu partido hoje possui toda uma máquina que lhe serve de suporte, sendo que a sua baixa representatividade no parlamento poderá mudar, uma vez que as eleições legislativas acontecem em junho deste ano. É desnecessário ressaltar que o seu resultado será muito influenciado por uma eventual vitória do Front National nas presidenciáveis.
O que mudou foi o cenário. Parece que agora essas ideias, que até alguns anos atrás ainda não eram bem vistas pela maioria da população, começaram a encontrar suporte empírico no que vem acontecendo no país. Entrando no segundo argumento, não é de hoje que existem duas Franças: as belas cidades, como Paris ou Strasbourg, e toda a periferia que as cercam (chamadas de banlieues). Se a crise impactou o país e a Europa como um todo, essa região sofreu em dobro com as elevadas taxas de desemprego (chega a 25% entre a população jovem), violência, repressão policial e especialmente com a xenofobia. Todo esse problema só se intensificou com a crise dos refugiados mais recente. O ato de culpar “os outros” pelos problemas intrínsecos ao próprio país sempre existiu, mas encontrou no cenário atual uma particular aceitação frente a uma política tradicional que, além de não saber dar as devidas respostas, ainda permite-se envolver em polêmicas (vide o caso esdrúxulo do cabeleireiro de Hollande, cujo salário astronômico era bancado pelo contribuinte).
A grande questão que fica é: como conciliar a convivência entre povos tão distintos em questões, não somente de valores, mas de condições de vida? A França sempre conviveu com essa problemática. De novo, ela não é nova (isso explica porque os Le Pen’s estão presentes na política há tanto tempo), porém se intensificou. Ela ultrapassou as fronteiras que “protegiam” as grandes cidades das banlieues (como foi o caso dos atentados do Charlie Hebdo e do Bataclan) e, junto com a situação econômica, delicada desde a crise de 2008, criou um grande problema que a política tradicional não soube como lidar. Para se ter uma noção desse problema de xenofobia na França, uma das discussões mais acaloradas recentemente, inclusive em debate presidencial, é sobre a proibição ou não dos chamados “burkinis”, um traje de banho que as mulheres muçulmanas usam. É por isso, por toda essa panela de pressão cada vez mais quente, que uma possível eleição da Le Pen é perfeitamente plausível. O povo está com medo e encontra um discurso forte e convicto (embora questionável) sobre os problemas da atual conjuntura.
Quais são as alternativas? Até a virada do ano, o líder nas pesquisas para o primeiro turno era o François Fillon, ex-primeiro ministro que tem como lema de campanha promover um “choque liberal”, com flexibilização das leis de trabalho, reforma da previdência, contenção de despesas, redução no número de funcionários públicos, menor poder aos sindicatos, etc. (soa familiar?). No entanto, no fundo, ele representa mais do mesmo. Segundo Marine, Fillon é a velha direita liberal em defesa dos interesses de sua categoria e, antes mesmo do escândalo em que ele se envolveu recentemente (acusado de dar empregos fantasmas a familiares quando estava no governo), já vinha caindo nas pesquisas por não representar nada de novo. Fillon é o establishment. Durante a semana do escândalo, ele perdeu em duas frentes: o seu capital pessoal, pois não conseguiu sequer vencer a dúvida da acusação, perdendo sua imagem de homem da integridade, e também o seu capital político, pois até então era dada como certa sua ida ao segundo turno.
Já o Macron, candidato impulsionado pelo vácuo promovido por Fillon e com fortes chances de ir ao segundo turno, é uma espécie de reconstituição desse liberalismo econômico. Até dois anos atrás era desconhecido. É jovem e energético. Fez carreira na iniciativa privada, foi banqueiro na Rothschild e tornou-se ministro da economia de Hollande. Para se diferenciar, é crítico da direita e da esquerda. Ele tenta passar a imagem de que não é uma coisa nem outra, porém fica difícil emplacar um discurso de alternativa ao sistema sendo que ele é fruto do mesmo. Macron, assim como Fillon, também defende as mesmas reformas econômicas, embora seja um defensor mais contundente do Euro.
O fato é que, tanto Macron quando Fillon, representam justamente tudo que a Marine ataca. Enquanto todo o discurso alternativo é pautado em reformas dolorosas em um momento já complicado, Marine terá a seu favor, seja qual for seu adversário, uma exemplificação completa de tudo o que critica.
Agora, por que Marine causa tanta apreensão no mercado financeiro? Levando em consideração que a França é um país que patina no terreno econômico desde a crise de 2008/2009, com já elevado nível desemprego, relação dívida/PÌB de 96% e um déficit nominal de 3,60% (fonte: Tradingeconomics), são no mínimo preocupantes as consequências que uma saída do Euro e um retorno ao Franco poderão trazer à 5° maior potência econômica do mundo. Dadas essas condições, a França suportaria um alto patamar de juros, causados pela pressão inflacionária que a desvalorização cambial acarretará, e pela elevação dos prêmios de risco? Este é talvez o ponto que mais diferencia, e preocupa, o caso francês do norte-americano. Além disso, quais seriam as consequências que uma saída francesa da zona do Euro traria para o bloco?
A problemática francesa é especialmente importante no contexto europeu, pois, embora a Europa possa sobreviver sem o Reino Unido, é difícil imaginar que ela o possa fazer sem a França. Os ingleses nunca participaram ativamente da Europa. É forte dizer isso, mas nunca houve uma relação de pertencimento europeu, especialmente na Inglaterra, e sim uma relação de interesse comercial junto a um bloco econômico, diferentemente do caso francês, um dos membros fundadores. A zona do Euro poderia sobreviver após um impacto ainda maior?
De fato, o precedente causado pelo Brexit deixou graves sequelas quando, ao invés de se posicionar firmemente sobre o caso, a União Europeia passou a discutir ao mesmo tempo, a saída do Reino Unido e o que fica de acordo. Ou seja, o motivo inglês de sair do bloco se tornou uma chantagem para renegociar pontos que não os interessavam. O que deveria ter sido levado mais a sério, algo grave para que não se tornasse um efeito dominó, acabou mostrando o problema de liderança europeia que ficou anestesiada frente ao que aconteceu. Desde 2008, com a crise do euro de 2011, além dos eventos recentes do Brexit, referendo Italiano, eleições francesas, crise de refugiados e terrorismo, a única coisa que a Europa fez foi gerenciar crises. Foi uma pura e simples gestão técnica.
A Europa nunca precisou tanto de uma liderança, até então personificada na imagem de Merkel, em risco de ser derrotada na próxima eleição alemã, também este ano. A sua força e disposição para responder a crises foi a única coisa na qual confiamos desde 2008 e o que vemos é que a força para responder a crises marginais não vai ser a mesma. Parece que a Europa esqueceu o projeto europeu original, que era de criar uma região forte política, econômica, militar e culturalmente para fazer frente às competições que um mundo globalizado impõe, e ficou obcecada pelas diferenças internas. A Europa cai sobre si mesma e comete erros que levou essa mesma área a vários momentos delicados ao longo da história.
Para terminar, vale a pena refletir sobre essas declarações recentes de Martin Schulz, candidato às eleições alemãs e membro do parlamento europeu, num debate sobre o futuro da Europa realizado no ano passado em Roma : “A Europa é uma promessa, mas uma promessa que não foi cumprida (…).O sonho de um só estado Europeu, de uma só nação Europeia é uma ilusão. Nós devemos aceitar isso e viver em uma Europa com diferentes moedas, com diferentes forças políticas. A pior coisa é não querer enxergar isso.” ³. Seria resignação?
Lucas Ribeiro – Graduando em Economia pela Universidade Federal Fluminense e analista buy side em uma gestora de recursos do Rio de Janeiro. Fontes: ¹ http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0510200815.htm ² http://www.lepoint.fr/politique/marine-le-pen-affirme-que-trump-et-may-appliquent-son-programme-18-01-2017-2098083_20.php ³ http://www.lesoir.be/1201743/article/actualite/union-europeenne/2016-05-05/martin-schulz-l-europe-est-une-promesse-qui-n-pas-ete-tenue