Para entender a diferença entre ortodoxia e heterodoxia é preciso, antes de tudo, entender o significado desses termos. A palavra ortodoxia tem sua origem no grego, onde “orthos” significa “reto” e “doxa” significa “fé” ou “crença”. Ortodoxo significa, portanto, aquele que segue fielmente um princípio, norma ou doutrina. Está claro que a origem etimológica do termo ortodoxia não é suficiente para estabelecer a diferença entre “ortodoxia” e “heterodoxia” na economia, pois um economista marxista que seguisse fielmente os princípios de Marx também poderia ser chamado de “ortodoxo”.
O que é ortodoxia?
Na economia acadêmica brasileira o termo economista ortodoxo é usualmente entendido como economista neoclássico, ou seja, aquele que compartilha o programa de pesquisa neoclássico, definido a partir de um núcleo duro de proposições e formado por alguns princípios básicos: por exemplo, a racionalidade econômica, entendida como a maximização de alguma função objetivo (não importa se bem comportada ou não), equilíbrio dos mercados como norma ou “ponto de referência” para o funcionamento do sistema econômico, entre outros.
Deve-se destacar aqui que esses princípios básicos do programa de pesquisa neoclássico são tidos como axiomas, ou seja, fazem parte da “visão de mundo” dos economistas neoclássicos, sendo aceitos como “verdades auto-evidentes” e não estando, a princípio, sujeitos a comprovação empírica. Em outras palavras, o que está sujeito ao teste empírico são as conjecturas obtidas a partir de modelos teóricos (o assim chamado “cinturão protetor”) que se baseia nesses princípios; os princípios em si mesmos não estão sujeitos a esse tipo de comprovação.
O conceito de programa de pesquisa é devido a Lakatos (1978), consistindo num conjunto de regras metodológicas que definem os caminhos de pesquisa a serem evitados e aqueles que devem ser trilhados. Nesse contexto, o programa de pesquisa possui uma “heurística negativa”, a qual define um conjunto de proposições (o “núcleo” do programa) que não estão sujeitas ao critério de falseabilidade de Popper, ou seja, que são tidas como “irrefutáveis” por parte dos aderentes ao programa de pesquisa. No entorno desse núcleo são estabelecidas diversas hipóteses auxiliares, as quais devem ser testadas contra os fatos observados.
Além da “heurística negativa”, existe também uma “heurística positiva”, que é constituída por um conjunto parcialmente articulado de sugestões de como mudar e desenvolver as “variantes refutáveis” do programa de pesquisa. Aqui se inclui uma cadeia de modelos cada vez mais sofisticados que buscam “explicar” a realidade. Na formulação dos programas de pesquisa, é de se esperar que algumas de suas variantes particulares (o “cinturão protetor”) sejam refutadas pelos testes empíricos. A função da “heurística positiva” é, portanto, de contornar esses problemas, definindo-se as regras que devem ser obedecidas na construção de novas variantes particulares do programa de pesquisa.
Para Popper, a ciência deveria funcionar com a lógica do modus tollens, tentando falsear teorias e não corroborá-las e é exatamente daí que surge seu método de demarcação. Uma teoria é científica se ela gerar previsões que sejam potencialmente falseáveis. Assim, caso duas teorias tenham passado pelos mesmos testes e sobrevivido, deve-se escolher a que gera mais previsões falseáveis, pois esta é a que tem maior conteúdo empírico. Entretanto, a lógica popperiana ainda apresenta limitações próprias ao tratamento epistemológico das ciências, já que o falsificacionismo ainda é entendido como o método mais adequado para aproximar uma teoria da verdade, um modelo considerado epistemologicamente ideal para a escolha entre teorias científicas, mas que não parece se importar suficientemente com a forma pela qual as ciências são construídas de fato.
O problema é que mesmo enquanto critério de escolha ideal, o método de Popper ainda parece racionalmente incompleto, visto que não é capaz de permitir uma superação definitiva dos impasses lógicos oriundos das aporias do empirismo. Em Popper, a dificuldade de separar o conteúdo empírico de uma teoria de seus elementos puramente teóricos quando de um teste científico se mantem, o que dificulta o teste final visto que as teorias quando colocadas à prova, são colocadas em seu conjunto, não permitindo que se saiba, a priori, qual elo da cadeia foi efetivamente falseado.
Este foi um dos problemas fundamentais que levaram Willard Quine a defender a impossibilidade lógica de se separar conhecimento analítico e sintético. Na prática, portanto, fica difícil, do ponto de vista lógico afirmar que uma teoria deva ser rejeitada por qualquer critério empírico que seja. Sempre será possível, logicamente, recuperar o conteúdo não empírico de uma teoria, revendo-a e salvando-a de uma suposta refutação. O recurso a hipóteses ad hoc, neste sentido, será sempre uma dificuldade para as pretensões idealistas da epistemologia popperiana.
É em meio a este problema que Thomas Kuhn, um dos maiores filósofos da ciência do século XX, apresenta seu entendimento sobre a evolução do conhecimento científico, a partir do conceito de paradigma. Paradigmas correspondem ao entendimento comum do meio científico sobre os seus objetos de estudo e práticas de pesquisa e sobre as formas e metodologias utilizadas na construção de suas teorias, a partir das quais os cientistas chegam aos seus resultados.
Segundo Kuhn, as diferentes ciências evoluem a partir da evolução dos paradigmas. Nos períodos de ciência normal, os cientistas se dedicam a desenvolver a ciência a partir dos valores do seu paradigma; já nos períodos de ruptura ou “revoluções científicas”, um determinado conjunto de valores e metodologias não são mais suficientes para explicar o objeto de estudo e um novo conjunto de valores, um novo paradigma, começa a surgir. Dessa forma, a evolução da ciência ocorre não apenas nos períodos de ciência normal, mas essencialmente nos períodos de ruptura. Tais períodos são necessários e inevitáveis quando novas ideias, estranhas ao entendimento comum dos cientistas, passam a determinar a construção das teorias.
Para ele, as crenças são fundamentais na construção dos paradigmas, e este talvez seja o ponto mais importante de suas ideias, pois elas determinam a forma como determinado grupo científico irá compreender e desenvolver seu objeto de estudo. Essas crenças são fundamentalmente os valores externos à ciência que fazem parte da forma de pensar dos cientistas e que serão, inevitavelmente, incorporados à ciência desenvolvida por eles. Dessa forma, Kuhn está um passo à frente de seus antecessores, no sentido de que apresenta uma interpretação da evolução das ciências que leva em consideração o papel das crenças e dos valores individuais, e que por isso entende que a busca pela “verdade” sempre estará condicionada a estes aspectos.
A forma de pensar kuhniana já aponta para uma maior abertura da filosofia da ciência em direção à hermenêutica. O entendimento de que as ciências são construídas a partir de consensos das comunidades científicas abre espaço para discutir de que forma estes consensos são construídos. Kuhn aponta para a importância da linguagem neste processo, mas não discute de fato o estudo do papel da retórica e da hermenêutica como fazem, entre outros, autores como McCloskey e Rorty, que discutem o papel desses aspectos na filosofia da ciência. De forma ampla, o entendimento desses autores é que, dada a inexistência de uma forma adequada de se chegar à “verdade” científica, e dado também que a evolução das ciências é feita por um processo de construção coletiva, conforme aponta Kuhn, a forma de transmitir conhecimento e de interpretar as informações recebidas possui papel essencial nesse processo. É a partir desses aspectos que os cientistas discutem e debatem, sendo este o meio pelo qual as teorias são construídas e a ciências evoluem.
O que é heterodoxia?
Nesse contexto e em contraposição à ortodoxia em economia entendida como a adesão ao programa de pesquisa neoclássico, a heterodoxia se define como a rejeição ao núcleo duro desse programa. Em outras palavras, os economistas heterodoxos são todos aqueles que discordam da ideia de que o núcleo duro de um programa de pesquisa deva ser construído a partir dos princípios da maximização e do equilíbrio dos mercados (ainda que este seja entendido como um simples ponto de referência). Economistas marxistas, por exemplo, acreditam que uma análise séria a respeito do funcionamento do sistema econômico deve se basear na dinâmica de conflitos entre as classes sociais, particularmente entre capital e trabalho no caso das modernas economias capitalistas.
Nesse paradigma, a racionalidade individual – maximizadora ou não – é irrelevante para o entendimento do funcionamento do sistema econômico. Além disso, a definição de posições de equilíbrio – sejam elas temporárias, nocionais ou apenas atratores – são também vistas pelos adeptos do programa de pesquisa marxista como exercícios inúteis, dado que o que importa são as “leis de movimento” do sistema capitalista. Já economistas (pós-)keynesianos não discordam da necessidade de basear a análise econômica no suposto de racionalidade individual, mas acreditam que a incerteza que permeia o ambiente econômico torna impossível a análise das decisões individuais a partir do suposto de maximização de uma função objetivo.
Num contexto de incerteza, dizem os economistas pós-keynesianos, o comportamento dos agentes é baseado em convenções ou rotinas que não só simplificam o processo de tomada de decisão, como ainda permitem aos agentes econômicos lidar com o fato inescrutável da extrema precariedade e incompletude do conjunto de informações sobre os quais decisões racionais devem ser tomadas. O papel da moeda, por exemplo, e da demanda por liquidez adquirem, nesse contexto, importância fundamental para explicar o funcionamento do sistema econômico; algo que a principio parece não fazer sentido para o programa de pesquisa neoclássico.
Essas divergências entre os programas de pesquisa (ou incomensurabilidade para usar um jargão mais kuhniano) são diferenças no núcleo duro, ou seja, naquela parte dos programas de pesquisa que não são falseáveis no sentido de Popper e que, portanto, não estão sujeitos ao crivo do teste empírico. A refutação empírica só pode ser aplicada às conjecturas desenvolvidas a partir dos modelos teóricos construídos segundo as regras metodológicas definidas pelo núcleo duro. Daqui se segue que ainda que fosse possível rejeitar empiricamente todas as conjecturas desenvolvidas a partir de todos os modelos teóricos construídos até hoje segundo a lógica do programa de pesquisa neoclássico, ainda assim não poderíamos afirmar que o referido programa de pesquisa foi rejeitado pelos dados. Na melhor das hipóteses poderíamos dizer, seguindo Lakatos, que o programa se tornou degenerativo.
Se os programas de pesquisa não podem ser rejeitados com base em testes empíricos, pois são constituídos a partir de um núcleo duro não refutável; então a única atitude cientificamente honesta e politicamente democrática é aceitar, conviver e incentivar o pluralismo teórico. Com base na informação que temos hoje não podemos dizer que daqui a 100 anos o programa de pesquisa neoclássico continuará hegemônico na comunidade científica, seja no Brasil ou no exterior. Não podemos descartar, portanto, a possibilidade de que esse programa de pesquisa entre numa trajetória degenerativa, ou seja, que em função do acúmulo de anomalias que não podem ser explicadas a partir de modelos construídos segundo a metodologia definida pelo núcleo duro, o referido programa comece a recorrer a hipóteses ad hoc para explicar a existência de tais anomalias.
Existem sinais importantes de que isso já está acontecendo com o programa de pesquisa neoclássico, mas certamente trata-se de um tema que demandaria outro texto. Em suma, para concluir, não é verdade que a diferença entre ortodoxos e heterodoxos no Brasil ou no mundo se resuma ao uso ou não de testes empíricos para aceitar ou refutar conjecturas. A diferença entre ambos os grupos se baseia em diferentes “núcleos duros” os quais não estão sujeitos a comprovação empírica. Nesse contexto, a melhor política será sempre “deixar que mil flores floresçam no campo” e deixar que o tempo, Senhor da Razão, decida quem deve prosperar e quem deve desaparecer.
Paulo Gala
É graduado em Economia pela FEA/USP. Mestre e doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-EESP) de São Paulo, onde leciona desde 2002 e coordenou o Mestrado Profissional em Finanças e Economia de 2008 a 2010. Pesquisador visitante nas Universidades de Columbia em Nova Iorque e Cambridge na Inglaterra nos anos de 2004 e 2005.
José Luis Oreiro
É graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992), mestre em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1996) e doutor em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000). Atualmente é professor adjunto do departamento de economia da Universidade de Brasilia (FACE/UNB)