Em meio a notícias tão mais “quentes” como o histórico fim da Guerra entre as duas Coreias, passa quase despercebida uma perigosa novela em nossa Câmara dos Deputados: a votação do projeto de lei que altera o cadastro positivo de crédito (PL 441/17). Por se tratar de projeto de lei complementar, a aprovação requer maioria absoluta da Casa, ou seja, 257 parlamentares – algo que favoráveis a proposta ainda não conseguiram atingir. Após sucessivos adiamentos, a seção na qual seria então discutida a proposta no último 26 de abril fora novamente encerrada com o registro de gritos, insultos e discursos acalorados, mas sem a votação.
Até aí, não parece nada de novo – mais um projeto de lei para ser adiado ou mesmo não aprovado no Congresso brasileiro. Porém, o atraso e a possível não aprovação desta medida seriam verdadeiras perdas para a sociedade e economia brasileiras. Expliquemos o porquê.
Encaminhada à Câmara pelo Senado, a PL 441/17 altera regra já existente desde 2011 sobre o cadastro positivo de crédito de pessoas físicas (ou seja, consumidores), tornando seu registro automático para todo cidadão na ausência de pedido explícito para sua exclusão do sistema – ao invés de necessitar da manifestação pró-ativa do consumidor para registro (sistema existente atualmente). Em outras palavras, a não ser que você explicite que não queira, uma pontuação de crédito (o chamado score) sobre você estará disponível para instituições financeiras, de modo que tal informação possa ser usada para subsidiar operações de crédito à você. Deste modo, o registro deixa de ser o que é hoje na prática, um cadastro negativo, e passa a ser de fato um cadastro positivo.
Como apontado pelo próprio relator do projeto na Câmara, a alteração do cadastro positivo é uma das principais medidas para viabilizar a expansão sustentável do crédito e a redução do spread bancário (diferença entre o quanto o banco paga ao aplicador para captar recursos, próximo a Selic, e o quanto cobra para emprestar o mesmo dinheiro) no país. A aprovação da mudança na lei tem o potencial de injetar até R$1 trilhão na economia em até três anos, de acordo com a Gestora de Inteligência de Crédito (GIC), além de ser apontada por diversos especialistas como uma propulsora da competitividade no setor bancário – dando espaço para potenciais players inovadores e menores, como plataformas online.
Isso ocorre porque a medida a medida reduz a chamada assimetria de informação no mercado creditício. Mas o que seria isso?
Assimetria de Informações
Segundo a Teoria de Contratos, diferenças informacionais existem em toda transação entre uma parte que se compromete a pagar pela prestação de um serviço e outra que se compromete a prestar o serviço. Tais diferenças incluem o quanto aquele que está pagando sabe sobre aquele que está recebendo, e se este que recebe terá real capacidade de executar o serviço para o qual está sendo pago.
Trazendo para o caso dos empréstimos bancários: quem empresta dinheiro não tem informação completa sobre a capacidade de pagamento daquele que pega o recurso emprestado e, portanto, reflete essa incerteza no custo do seu empréstimo ao consumidor. Ou seja, quanto mais aquele que empresta (o contratado) recebe informações sobre a capacidade de pagamento do que quer pegar emprestado (o contratante), menos arriscado torna-se realizar o empréstimo – e menores serão os juros.
Nesse contexto, parece que todos ganham com essa medida e que, portanto, a medida enfrentará quase nenhuma oposição, correto? Como tudo em política, a resposta não é tão simples assim. De fato, importantes grupos de interesse, assim chamados pela teoria política, saem perdendo consideravelmente com uma mudança desta natureza, em especial grandes bancos e cartórios.
Opositores
O primeiro e importante grupo de potenciais perdedores com a aprovação da mudança são instituições financeiras com grande concentração de mercado. Com a pontuação de crédito publicamente disponível sobre bons pagadores, outras instituições financeiras como fintechs tornam-se capazes de oferecer melhores produtos financeiros a estes clientes de maneira espontânea, aumentando a competição no setor bancário e fazendo com que instituições consolidadas sejam obrigadas a entrar na competição a partir da diferenciação dos juros cobrados de seus melhores clientes.
Hoje a situação é inversa a isso: os clientes são os que acabam brigando pelos melhores juros nos diferentes bancos. No ano de 2017, quase 80% de todas os depósitos estiveram concentradas nos quatro maiores bancos – um dado alarmante, que indica a alta concentração de nosso sistema financeiro, uma vez que esta cifra era de menos de 55% há dez anos.
Já o segundo importante grupo de interesse que tem a perder com a proposta é a indústria de cartórios. O motivo é de fácil explicação, uma vez que negócios desta natureza auferem parte de seu lucro justamente a partir da conferência da condição de pagamento de empréstimo dos agentes. Passando esta informação a estar publicamente disponível, tal serviço se tornaria obsoleto, sendo provavelmente aos poucos extinto.
Nesse sentido, não surpreende a ferrenha campanha já iniciada por representantes deste setor contra a medida, apontando para os riscos de um suposto fim do sigilo bancário. Uma verdadeira desinformação, facilmente desmistificada em uma primeira leitura mais detalhada da proposta em discussão na Câmara dos Deputados, já alterada após intensas discussões entre técnicos do Banco Central e do Ministério da Fazenda, organismos de defesa ao consumidor e deputados – que inclui, entre outros dispositivos de proteção ao sigilo de dados, o requerimento de autorização prévia do cadastrado para o acesso a informações mais detalhadas, como histórico do tomador de crédito.
Por fim, diante de fatos, projeções e esperneios, torna-se simples concluir que, apesar de a proposta ser naturalmente passível de possíveis mudanças para aperfeiçoamento assim como qualquer outra, o brasileiro tem muito mais a ganhar do que a perder com o novo cadastro positivo – torçamos, então, para o fim deste capítulo na novela do Congresso e a votação (e aprovação) da PL 414/17. Ficaremos contentes em, mais uma vez na agenda microeconômica, parabenizar os envolvidos.
Caio Augusto – Editor do Terraço Econômico Rachel Borges de Sá – Editora Terraço Econômico