As táticas de coerção e silenciamento contra a mostra LGBT não nasceram com os conservadores
Provocando o debate LGBTQ na arte brasileira, a mostra – considerada “antropofágica” (um Oswald de Andrade versão radical chic) – era composta por 264 trabalhos de 85 artistas.
https://www.facebook.com/isradecastro/videos/10155762922058628/No estilo selfie já consagrado pela direita digital tupiniquim, dois caras invadiram a mostra, armaram um alvoroço em cima de pouco mais de meia dúzia de obras – umas de conteúdo adulto (apresentando sexo explícito e/ou zoofilia), outras iconoclastas (abordavam a idolatria católica, religião avessa à homossexualidade), e uma questionando a construção do gênero na fase infantil (o que é questionável mas, após uma sessão de lisergia reacionária, foi convertida em um ato de pedofilia). Confira:
https://www.youtube.com/watch?time_continue=2&v=SfDHc_p_ywAApós o enxame conservador, a exposição poderia ter se tornado um recorde de público.
Talvez a única pessoa sincera dentro dessa bagunça toda, o curador da mostra, Gaudêncio Fidelis, completamente surpreso, disse em entrevista ao O Globo:“Já fiz duas bienais do Mercosul, nunca tinha visto algo parecido […] As manifestações foram muito organizadas e se debruçaram sobre algumas obras muito específicas, que não dão a verdadeira dimensão da exposição. […] Esses grupos (de críticos) mostraram uma rapidez em distorcer o conteúdo, que não é ofensivo. As pessoas estão indignadas (com o cancelamento), com razão. Mais de 1,4 mil pessoas foram à abertura da mostra. Foi muito celebrada.” (grifo meu)
Cerca de um milhão de reais foram captados pelo Santander, através da Lei Rouanet, para a realização do evento. Ainda que o uso de dinheiro público para uma mostra ofensiva possa ser um debate duradouro e válido… o banco já anunciou que irá devolver todo o dinheiro.
Linchamentos virtuais, sensacionalismo flagrante e depredações públicas. Cá entre nós: essa tática não lhe parece familiar?
Anote aí: os extremos do espectro político se aproximam em suas práticas. Esse é o ensinamento de uma das mais interessantes proposições políticas do século XX, a Teoria da Ferradura. Elaborada pelo escritor francês Jean-Pierre Faye, ela diz que, conforme mais distantes do centro, ambos os extremos tendem ao autoritarismo. Ela também propõe que a distância entre os extremos é muito menor que a de cada um deles ao centro.
Seria como pegássemos a linha esquerda-direita e a entortássemos, a fim de aproximar as pontas. Plasticamente, o resultado seria próximo ao formato de uma ferradura – daí o nome da teoria
E se eu te disser que o Queermuseu não foi o primeiro evento artístico de 2017 comprometido por autoritarismo político?
No final de maio, o festival Cine PE, em Pernambuco, sofreu boicote de um grupo de cineastas que achava incabível que existisse um filme de direita na competição: “O Jardim das Aflições”, documentário de Josias Teófilo sobre o filósofo conservador Olavo de Carvalho. Após um mês de atraso e sem qualquer concorrência, o filme conservador ganhou os prêmios de Júri Oficial e Júri Popular.
Como é possível “gerar inclusão e reflexão positiva”, elevando a “condição humana” no meio de uma guerra política? Como é possível uma “pluralidade, alicerçada no profundo respeito” se essa pluralidade de fachada se resume a uma tropa de socialistas e conservadores (e liberais de araque, como o MBL) lançando frases de efeito uns aos outros, denunciando os males da verdade e do amor, querendo estender seu poder às estrelas? https://www.youtube.com/watch?v=a677GavT2aMComo será possível gerar respeito por “cada indivíduo” se cada um deles pode se ofender pessoalmente com qualquer coisa que se diga? Seria possível ao Santander, em sua mostra LGBT, agradar a todo mundo: LGBT, católicos, feministas, liberais, socialistas e conservadores? Talvez o principal ponto do “liberalismo das ruas” é chegar à óbvia conclusão de que isso é impossível.
Como é impraticável que uma mensagem atraia a todos, é importante que tenhamos o maior número de discursos possíveis, acompanhados de um mecanismo que garanta a todas as vozes seu pleno exercício, sem represálias: a liberdade de expressão.
É por isso que a liberdade de expressão é uma vacina contra autoritarismos de qualquer natureza – ou desculpa, seja tolerância religiosa ou igualdade de gênero. Quem tenta mexer nesse jogo, seja agora ou mais tarde, sofrerá as consequências.
O que torna essa história em algo lamentável é que esse movimento de ataque, baseado em vitimismo, moralismo e lacração, partiu da esquerda. Ela abriu a caixa de pandora anitiliberal e ressucitou os reacionários das catacumbas mais profundas.
Só que tem um problema: minorias são minorias. Quando a esquerda parte pro grito, ela perde.
Lucas Goldstein Jornalista e radialista. Atualmente é responsável pelo setor de vídeos do Terraço Econômico
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