Hoje faz aniversário a introdução do Real ao cotidiano econômico brasileiro. Tão benéfico quanto negligenciado, o extermínio da hiperinflação impactou, positivamente, tanto o balanço de pagamento das empresas quanto o poder aquisitivo dos assalariados. Neste artigo, procurarei explicar como funcionou o maior plano de combate à pobreza e à desigualdade da história do Brasil.
Itamar Franco e o PMDB
Ainda que sob a desconfiança de muitos, o então ministro das Relações Exteriores, Fernando Henrique Cardoso, com predominante apoio da imprensa, foi, em maio de 1993, ungido ao ministério do qual pediram demissão Gustavo Krause e Paulo Haddad em dezembro de 1992 e março de 1993, nesta ordem. O motivo que os levou a deixar o governo foi o mesmo: Itamar Franco.
Em retrospecto, o ex-presidente parecia não ter mesmo muito “traquejo” para lidar com os seus subordinados. Não à toa, o PSDB recomendou a Fernando Henrique que não aceitasse assumir a pasta. Na prática, o peessedebista nunca aceitou o cargo; ele soube que havia se tornado responsável pela condução da política econômica junto aos órgãos de imprensa, que anunciaram, no dia 19 de maio, que o tucano havia sido nomeado ministro da Fazenda – sem que este, na verdade, tivesse acertado sua transferência ministerial. Apesar de sui generis, este foi o maior acerto de Itamar enquanto presidente.
Assim como o partido a que era filiado, o chefe do Poder Executivo era adepto do nacionalismo enfadonho que guiou a política econômica do Gal. Ernesto Geisel entre 1973 e 1978. Além de defender a criação de mais medidas que protegessem o setor industrial nacional contra a competição externa, o então presidente opunha-se a qualquer tentativa de readequação do papel do Estado sobre a economia – notadamente, quando, em julho de 1991, na condição de presidente interino, discursou contra a privatização da Usiminas.
“Quando acabou o governo Collor, pensou-se que a privatização seria encerrada (…). Quando era vice-presidente, Itamar criticava abertamente a privatização. Fazia reuniões com Leonel Brizola em que ambos condenavam a venda das estatais.” [1]
“Não muito depois da minha volta de Nova York, ele convocou todos os ministros a uma reunião (…) entramos todos numa sala, onde ele nos mostrou um brilhante documentário sobre Franklin D. Roosevelt e o New Deal. A mensagem subliminar era que Itamar queria um plano econômico que fizesse o governo encolher o mínimo possível para construir a confiança da nação.” [2]
Diferentemente de anos recentes, nos quais o partido, ainda que sujeito a contradições fisiológicas, costuma orientar a sua bancada parlamentar a votar favoravelmente a pautas que priorizam a redução do déficit público, o PMDB, na época, era uma legenda muito pouco receptiva a ideias de matriz neoliberal. Em fins dos anos 1980, sobretudo, a palavra “austeridade” soava como palavrão aos ouvidos peemedebistas.
“No Brasil de hoje a crise fiscal, traduzida em déficits elevados (…) tornou-se o mais importante obstáculo para a retomada do crescimento econômico. (…) Sem um ajuste de caráter permanente que sinalize um equilíbrio duradouro das contas públicas, a economia não vai retomar seu crescimento e a crise deve se agravar ainda mais.” [3]
Em “3000 Dias No Bunker”, Guilherme Fiuza conta uma história que ajuda a ilustrar o anacronismo ideológico a que estavam sujeitas algumas das principais mentes do partido. No final de 1988, Ulysses Guimarães, por recomendação de Márcio Fortes, então presidente do BNDES, abriu um espaço na sua agenda para receber em sua casa Sérgio Besserman, funcionário do banco e defensor de um ajuste nas contas públicas.
Após mais de quatro horas explicando o seu plano contra a hiperinflação, Ulysses ignorou-lhe de maneira quase tão histórica quanto injusta. A fatura chegou ao peemedebista pela via eleitoral, quando o presidenciável que possuía a mais generosa das “fatias” do tempo televisivo recebeu apenas 4,73% dos votos válidos em uma época na qual não existia internet.
“Terminadas as mais de quatro horas de exposição, ele estava absolutamente calmo. Na verdade, calmo demais. Fora alguns comentários laterais, não reagira a nada do que lhe fora dito.” [4]
O desafio da credibilidade
Do final da década de 1970 ao Plano Real, a inflação acumulada foi de 13,3 trilhões por cento. Entre confiscos e tabelamentos que caminhavam à margem de uma Constituição recém-promulgada, o Brasil, em apenas oito anos, trocou de moeda cinco vezes. Por causa desse trecho histórico absolutamente anômalo, o país é recordista em substituições de padrão monetário. Nenhuma outra nação no mundo chegou a nove moedas.
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: II – propriedade privada; IV – livre concorrência.” [5]
Embora o Art. 150 da Constituição vedasse ao presidente “utilizar tributo com efeito de confisco”, o Art. 62 – que é o dispositivo constitucional que proíbe a edição de Medida Provisória que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro – só foi introduzido ao arcabouço jurídico em 2001.
À cada tentativa de estabilização que se frustrava, mais comprometida ficava a credibilidade das próximas iniciativas de combate à hiperinflação. E apesar de a literatura monetária ser, ao juízo do autor, negligente em relação ao papel que a confiança dos agentes privados exerce sobre as chances de sucesso dos planos de estabilização, os autores do Real são unânimes quanto à importância do apoio popular.
“Quem acreditou no oitavo casamento da Elizabeth Taylor? Quem acreditaria nessa nova tentativa de estabilizar a moeda brasileira?” [1]
Além dos sucessivos planos que fracassaram nos anos anteriores, outras duas dificuldades desafiavam a imaginação e criatividade dos membros da equipe econômica: a primeira delas era a presença de Itamar na presidência da República. A chefia do governo pertencer a um político tão pouco identificado com uma agenda de defesa a reformas e que já estava no seu quarto ministro da Fazenda em sete meses de exercício presidencial não ajudava em nada os economistas. A segunda adversidade estava ligada ao escasso tempo de trabalho oferecido aos criadores do Real, que tinham, se tanto, menos de meio mandato para derrotar uma hiperinflação que fecharia o ano em mais de 2400% a.a.
“[Os economistas] foram para a primeira reunião com o ministro dispostos a dar um recado, que hoje Gustavo Franco resume assim: – A gente gosta muito do senhor, senador, mas não tenha muitas ilusões. Isto aqui é o governo Itamar Franco. (…) Temos que viver um dia de cada vez, como se a gente fosse ser demitido no dia seguinte pela recusa a alguma coisa que a gente propôs.” [1]
“O fato de o FMI, após longa negociação, não ter apoiado o programa não ajudou a melhorar as expectativas de sucesso. (…) Os autores do plano não conseguiram convencer a equipe do Fundo de que o motivo pelo qual a reforma monetária poderia funcionar era que o Brasil operava em um regime de indexação generalizada de preços e salários, com a moeda e o câmbio completamente passivos (…)” [6]
De onde veio a inflação?
Os anos 70, que começaram sob a euforia das taxas de crescimento superiores a 10% a.a. combinadas a uma inflação significativamente inferior à observada durante toda a década de 1960, terminaram com graves desequilíbrios no balanço de pagamentos e uma inflação que entre o primeiro choque dos preços internacionais do petróleo e a maxidesvalorização cambial de 1979, subiu em mais de 200%.
“O Brasil importava mais de 80% do consumo doméstico de petróleo – de cerca de 10% da pauta total de importações, o produto passou a representar, abruptamente, mais de 25%.” [7]
No começo da década, quando o Brasil ainda usufruía dos benefícios decorrentes das reformas liberais introduzidas pelo PAEG sobre o seu nível de maturação tecnológica e eficiência alocativa, a produtividade anual por trabalhador subiu, por média, 7% a.a. De 1973 em diante, porém, embora o país tenha continuado crescendo a taxas elevadas, a principal fonte do crescimento passou a ser o gasto público em capital fixo – que atingiu patamares nunca antes vistos.
Embora a estratégia tenha sido extremamente bem-sucedida no seu objetivo de manter fortes taxas de crescimento, o bom desempenho econômico – que, em razão da deficiente poupança doméstica, só foi possível graças a empréstimos externos – ajudou a mascarar a “bolha” que se formava pela negligência a restrições orçamentárias cujos efeitos sobre a inflação eram amenizados pelos artifícios da indexação e da oferta de bens subsidiados por estatais.
“As autoridades brasileiras (…) não tinham qualquer preocupação quanto à sustentabilidade do crescimento econômico. (…) A consequência foi o crescimento da dívida externa, que saiu de 15% do PIB, em 1973, para perto de 55% do PIB, em 1982 (…)” [8]
“Um problema existente desde a fase do “milagre” residia no fato de que o crescimento econômico acelerado tinha como alavanca importante a capacidade ociosa das empresas. Para continuar crescendo, seria necessário ampliar o investimento, contando com novos e maiores recursos externos, pois a poupança interna era insuficiente. (…) Daí resultou porém o aumento da dívida externa (…)” [9]
Em fins de 1980, a redução da liquidez global derivada das ascendentes taxas de juros internacionais somadas ao agravamento do déficit do balanço de pagamentos provocado pelo segundo choque do petróleo, levaram o governo a uma inflexão de política econômica; esta seria somente a primeira das muitas que viriam na tentativa de consertar as trapalhadas da ditadura militar sobre a economia.
Depois de adotar políticas contracionistas, o Brasil, pela primeira vez desde que a produção interna bruta passou a ser calculada por órgãos oficiais, em 1947, entrou em recessão. Em resposta às modestas dosagens de austeridade adotadas por Delfim Netto, que além de restringir gasto público, desafrouxou o acesso ao crédito, o nível médio de crescimento caiu de 7% a.a. entre 1978 e 1980 para 2,1% a.a. negativos entre 1981 e 1983. Diferentemente do que o governo esperava, entretanto, a inflação manteve-se quase indiferente à tentativa de ajuste das contas públicas.
Em agosto de 1982, enquanto o Brasil ainda se recuperava da retração de 3,1% do PIB, o México declarou moratória da dívida externa. Ainda que os porta-vozes do governo, com ar soberbo e flertante com a xenofobia, dissessem que “o Brasil não é o México”, a equipe econômica sabia bem que, cedo ou tarde, teria de buscar um acordo com o Fundo. E o acordo aconteceu em fevereiro do ano seguinte, sob as condições de manter o pagamento da dívida externa e reduzir despesas.
A prática do FMI tem sido a de recomendar uma desvalorização cambial quando conclui que o país enfrenta um problema mais do que temporário no balanço de pagamentos [10]. Nesse caso, a desvalorização é frequentemente uma pré-condição para a formulação do programa de ajustamento [11].
“A experiência acumulada com programas do Fundo indicava também várias limitações da prescrição tradicional. Primeiro, as maxidesvalorizações do câmbio eram inflacionárias em um contexto de rigidez dos salários reais (…)”
“Em vez de repetir os métodos moderados de adaptação ao aumento de 1974, (…) muitos países desenvolvidos tomaram a decisão radical de provocar uma recessão por meio do aumento das taxas de juros. Foi o que aconteceu na Europa, nos Estados Unidos e no Japão.” [12]
Além da xenofobia presente em discursos oficiais, os militares também propuseram leis de conteúdo xenófobo. Notadamente, a Política Nacional da Informática que chegou ao Congresso em julho de 1984. Apesar de ter ido à sanção presidencial sob regime civil, José Sarney apoiou as Forças Armadas desde o golpe de 1964.
No mês em que o Brasil acordou o socorro financeiro, o governo carecia de reservas internacionais – sem as quais não seria possível saldar suas dívidas com credores externos. Para resolver o problema, a autoridade estatal desvalorizou a moeda corrente em 30%. Era uma maneira extremamente convencional de aumentar as exportações e estimular o ingresso de dólares na conta de capital do país.
O problema é que entre os variados efeitos de uma depreciação cambial estão o encarecimento de bens intermediários importados (a que alguns chamam de “inflação de custos”), o aumento salarial dos trabalhadores empregados em setores aquecidos pelo estímulo às exportações e dos assalariados que disputam mercado contra produtos importados. Provavelmente, se a remuneração do trabalho não fosse tão rígida e a economia, tão indexada, as adversidades derivadas da desvalorização poderiam ter sido mais brandas.
As consequências inflacionárias da segunda maxidesvalorização foram as mais severas já registradas pela literatura monetária brasileira até então. De um ano para o outro, a taxa de inflação subiu em, aproximadamente, 60 p.p. Para a infelicidade das classes mais baixas, que não tinham os seus salários protegidos pela indexação a que os ricos até entãotinham acesso, este não seria o último choque inflacionário a agravar a dramárica concentração de renda brasileira.
Da “crise cambial” alguns bons frutos foram colhidos no ano seguinte. O principal deles foi o equilíbrio das contas externas puxado pelo acúmulo de reservas internacionais derivado do aumento das exportações de bens industrializados. Além do alívio financeiro ao setor externo, a exportação ajudou a reaquecer a economia – que após ter retraído em 2,9% em relação ao ano anterior, cresceu em 5,4%. Pelo lado dos preços, na contramão do que aconteceu nas transações correntes, o problema piorou em 1984.
Em 1985, após a morte de Tancredo, José Sarney assumiu a presidência da República. Na carência da legitimidade popular a que somente um civil em nada identificado com o regime militar teria acesso, Sarney, embora tenha posto fim à conta-movimento, em 1986, em muitos momentos cedeu a pressões por aumentos do gasto público. Essa elevação dos gastos, apesar de ter impulsionado o crescimento, empurrou para cima as expectativas inflacionárias dos agentes econômicos.
“O governo militar tinha assinado várias cartas de intenções com o FMI, que promoviam uma política econômica recessiva, e isso provocou um impasse com o novo governo democrático. O FMI insistia que a nova administração aceitasse os compromissos firmados (…) e assinasse uma nova carta de intenção, adotando políticas recessivas, mas (…) a oposição criticava (…) tais políticas e a nova administração não conseguiria firmar compromissos com o FMI.” [13]
Os planos heterodoxos
Para conter a inflação, foi lançado, no dia 28 de fevereiro de 1986, o primeiro plano de combate à inflação durante regime civil: o Plano Cruzado. O Cruzado possuía como fundamento teórico a tese de acordo com a qual a hiperinflação a que o Brasil estava sujeito era de matriz inercial. Ou seja, a inflação corrente, por relação de causa e efeito, era determinada pela inflação passada.
Desse pensamento nada convencional foram extraídas duas soluções para o fim da inflação: o congelamento simultâneo de todos os preços e salários, sem que fosse necessário qualquer ajuste das contas públicas; alternativamente a esta idéia, surgiu a “moeda indexada”, que aconselhava a conversão voluntária de preços a uma moeda indexada que circularia paralelamente ao padrão monetário inflacionado. Como se sabe, a primeira solução deu origem ao Cruzado e a segunda, à Unidade Real de Valor.
Além do congelamento e do corte de três zeros, o Cruzado procurou desindexar a economia por via da extinção da correção monetária. O problema é que, simultaneamente ao fim das correções, o governo criou um sistema de “gatilho” programado para disparar toda vez que a inflação chegasse a 20%. Este dispositivo arruinou completamente a tentativa de superdesindexação.
“Os autores do plano tinham previsto um aumento de 8% no salário mínimo e 4% de abono. A proposta foi para o Palácio e voltou com 15% de aumento do mínimo e 8% de abono. E ainda havia o gatilho que dispararia quando a inflação chegasse a 20% (…)” [1]
“Fabricada pela Casa da Moeda do Brasil em calcografia e offset, a cédula de 500 cruzadoss traz Villa-Lobos e sua obra inovadora no campo da música, representando uma abertura temática do dinheiro brasileiro, ao abordar um aspecto da cultura até então inexplorado em nossas cédulas.” (MVBCB.)
“Houve também excepecional expansão monetária com o fim do imposto inflacionário. Como se acreditava que o congelamento de preços não poderia ser mantido indefinidamente, houve antecipação de compras de mercadorias. Formavam-se estoques, aproveitando as reduzidas taxas de juros então praticadas (…). A demanda interna cersceu vigorosamente, pressionando a capacidade produtiva e provocando escassez de mercadorias e ágio nos preçøs que estavam congelados.” [13]
“O Plano Cruzado baseara-se na concepção de que a inflação brasileira era inercial, e não causada pelo financiamento do déficit público através de expansão monetária. Este diagnóstico revelou-se um equívoco, decorrente de uma confusão entre os conceitos de inércia inflacionária e inflação inercial. O fenômeno da inércia inflacionária caracteriza-se pela tendência da velocidade de elevação dos preços a perpetuar-se, em virtude de mecanismos de indexação que corrigem automaticamente diversos preços — como salários, tarifas públicas e taxa de câmbio — com base na taxa de inflação passada. Em todo processo inflacionário há um certo grau de inércia que, freqüentemente, mantém a inflação em nível superior ao necessário para financiar o déficit público; mas o que caracteriza uma inflação como (puramente) inercial é a permanência de inflação na ausência de desequilíbrio fiscal.” [14]
Após as eleições gerais em novembro e a acachapante vitória do PMDB nas urnas, Sarney pôs fim ao plano no começo de 1987. A escassez de reservas provocada pela expansão da demanda doméstica em combinação com a excessiva apreciação cambial e iliquidez internacional havia sido tão grave que ao peemedebista não restou alternativa se não a de declarar a moratória da dívida externa em fevereiro.
Ainda que corretamente contestada, a suspensão unilateral do pagamento da dívida externa nada mais foi que a consequência do completo esvaziamento de divisas estrangeiras. A causa para que o Brasil tenha se tornado inadimplente foram os esquecidos expansionismos fiscal e monetário combinados a uma demoníaca política de administração de preços sob regime de câmbio fixo. Foi esta combinação introduzida pelo Plano Cruzado que derrubou o nível de reservas cambiais pela metade e impediu que o país honrasse seus compromissos externos.
Em junho, Luís Carlos Bresser Pereira lançou o denominado “Plano Bresser”, que embora tenha restringido mais o crédito que o seu predecessor, também partia do equivocado pressuposto de que a inflação era puramente inercial. Este grosseiro erro de diagnóstico levou Bresser a congelar preços por noventa dias e adiar a correção do déficit operacional imprudentemente negligenciado pelos programas econômicos civis.
Ainda que, por via da desvalorização cambial, o programa tenha elevado um pouco o nível de reservas, a necessidade de economizar divisas estrangeiras fez com que o governo deixasse de suprir o mercado interno – o que agravou problemas de desabastecimento.
O primeiro plano de combate à hiperinflação sob a vigência constitucional de uma Carta Magna democrática foi o pouco lembrado “Plano Verão”. Lançado no dia 14 de janeiro de 1989, o terceiro e último plano elaborado por economistas subordinados a Sarney, assim como os planos Cruzado e Bresser, diagnosticou a hiperinflação como um fenômeno estritamente inercial. A resposta a esse entendimento comprovadamente errado foi a de congelar preços e câmbio em paralelo com depreciação cambial, desindexações e correções de tarifas.
“Do lado ortodoxo [do Plano Verão], desvalorizou-se a taxa de câmbio em 18%, passando um dólar a valer mil cruzados e, em seguida, criou-se uma nova moeda, o cruzado novo, equivalente a mil cruzados; reajustaram-se tarifas públicas (telefonia: 35%, energia elétrica: 14,8%, gasolina: 19,9%); adotou-se uma rígida política monetária, com limitações ao crédito e taxas reais de juros que atingiram cerca de 14% no primeiro mês (…)” [14]
Em março de 1990, Collor assumiu a presidência com uma inflação que fechou o mês em mais de 80% e o ano anterior em 1972,91%. No dia seguinte a sua posse, o primeiro presidente eleito diretamente desde 1960 congelou ativos financeiros tais como a conta-poupança e a conta-corrente das pessoas. Era uma tentativa de reduzir a liquidez do mercado e conter a expansão da demanda doméstica.
“Em 15 de março de 1990, Fernando Afonso Collor de Mello tomou posse como presidente do Brasil. Anunciava a pretensão de combater a inflação, a miséria e a corrupção com o tom pretensioso que caracterizava o seu discurso, afirmou: “só tenho um tiro para matar o tigre da inflação”. [15]
Além do confisco, Fernando Collor procurou restringir a demanda elevando alíquotas tributárias, corrigir o déficit público cortando benefícios e isenções fiscais concedidas pelo poder público. Apesar de úteis, as medidas foram insuficientes para tirar o Brasil do vermelho.
O choque de repressão de demanda, embora tenha derrubado a inflação de 82,39% para 15,59% em abril, não foi suficiente para conter o processo inflacionário, que apesar da queda a que se assistiu entre os anos de 1990 e 1991, voltou a acelerar fortemente a partir de 1992. Sob o ângulo da estabilização, o chamado “Plano Collor” não deu certo porque, além de incompleto, partia do princípio de que a “procura” decorria do elevado estoque de títulos de curto prazo, quando, na verdade, a relação entre inflação e moeda ocorre em função do fluxo dos meios de pagamento criados pela autoridade monetária.
Apesar dos importantes avanços em direção ao ingresso do Brasil às principais cadeias globais, desafiando o lobby industrial nacional, Collor, após os primeiros sinais de que fazia efeito seu choque contra demanda interna e que o Banco Central não conseguia vender títulos prefixados, editou, ao final de janeiro de 1991, um novo plano contra o aumento dos preços: o Plano Color II.
O plano, apesar de possuir uma ou outra característica de cunho ortodoxo – entre elas, uma leve redução do número de estatais -, foi, na prática, mais um plano de congelamento de preços e salários. No caso específico do Plano Collor II, além do tumulto sobre contratos privados causado pela desindexação, o governo absorveu e financiou dívidas estaduais por via da expansão monetária.
Após algumas conturbações envolvendo ligações espúrias entre o então presidente e Paulo César Farias, tesoureiro de sua campanha, terem sido postas a público, um processo de impeachment foi instaurado contra Fernando Collor. O final dessa história todos conhecem: o ex-presidente renunciou ao cargo e o entregou, permanentemente, a Itamar Franco, desde 2 de outubro, presidente interino.
Plano Real
O primeiro dos desafios por parte do poder público era corrigir o déficit orçamentário, cuja estimativa para o ano seguinte correspondia a quase ¼ das receitas públicas federais – o que significava, na época, aproximadamente, 20 bilhões de dólares. O segundo desafio relacionava-se à elaboração de um indexador suficientemente capaz de eliminar a “inflação expectacional”. O terceiro, a reforma monetária, que, há exatos vinte e seis anos, daria vida ao Real.
Para resolver o déficit público, além de o governo ter vendido alguns ativos de valor – o principal deles, com toda a certeza, a Companhia Siderúrgica Nacional – criou o Fundo Social de Emergência. O FSE, diferentemente do que sugere o nome, não era um fundo; era um meio através do qual 20% das receitas constitucionalmente vinculadas perdiam destinação específica e ficavam “livres” para uso do ministro da Fazenda.
Depois que as receitas foram desvinculadas, a equipe iniciou, em fevereiro, a mais ambiciosa e controvertida fase do plano: a URV. A Unidade Real de Valor era uma quase-moeda; um indexador que, além de servir de referência para alinhar preços relativos, coordenava expectativas inflacionárias.
“(…) foi criada a Unidade Real de Valor, uma unidade de conta plenamente indexada, que evoluía de acordo com a variação “pro rata dia” de um conjunto formado pelos três índices de preços mais utilizados no Brasil: Índice Geral de Preços de Mercado, Índice de Preços ao Consumidor Amplo e Índice de Preços ao Consumidor. (…) A URV era tão-somente uma unidade de conta, não desempenhando, portanto, a função de meio de troca: a URV não circularia paralelamente ao cruzeiro real, moeda em uso à época.” [16]
Embora a reprodução do Rentenmark alemão fosse indexada a variáveis de preço nacionais, o BCB comprometeu-se a, toda vez que a paridade entre a URV e a moeda americana ultrapasse US$ 1, reservas seriam vendidas para que, assim, se preservasse o valor da moeda virtual. É evidente que essa estratégia tinha custo elevado. No entanto, seria de uma ingenuidade sem precedentes acreditar uma hiperinflação que chegou a mais de 4922% a.a. de junho de 1993 a junho de 1994 poderia ser resolvida de graça.
Em maio de 1991, sob a competente e esquecida administração econômica de Marcílio Marques Moreira, o Brasil, em decorrência de um bem sucedido acordo com o FMI, conseguiu acumular reservas internacionais, que, somadas aos capitais externos que ingressaram ao Brasil com o aumento das taxas de juros feitos pelo então presidente do Banco Central, Pedro Malan, foram suficientes para que o plano funcionasse.
Em primeiro de julho de 1994, a URV deixou de ser apenas unidade de conta cotada em contratos e passou a desempenhar todas as funções monetárias: reserva de valor, unidade de conta e meio de pagamento. De um mês para o outro, a inflação caiu de 47% para 6,84% e nunca mais – até o presente momento -, voltou a patamares hiperinflacionários.
Notas
[1] Leitão, Míriam. Saga Brasileira, A Longa Luta De Um Povo Por Sua Moeda, Rio de Janeiro, Editora Record, 2013, pág. 249.
[2] Cardoso, Fernando Henrique. O Improvável Presidente do Brasil, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2006, pág. 223.
[3] FUNDAÇÃO ULYSSES GUIMARÃES, Uma Ponte Para O Futuro, 2015.
[4] Fiuza, Guilherme. 3000 Dias No Bunker, Rio de Janeiro, Editora Record, 2017, pág. 55.
[5] Constituição Federal. 1988.
[6] Bacha, Edmar. Belíndia 2.0, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2012, pág. 141.
[7] Bacha, Edmar; Falcão, Joaquim; De Carvalho, José Murilo; Trindade, Marcelo Fernandez; Malan, Pedro; Schwartzman, Simon. 130 anos: Em busca da República, Rio de Janeiro, Editora Intrínseca, 2019, pág. 171.
[8] CARVALHO, José Carlos; De Oliveira Filho, Luiz Chrysostomo; Malan, Pedro; Bonelli, Regis. De Beíndia Ao Real, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2018, pág. 115
[9] FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil, São Paulo, Editora Edusp, 2001, pág. 275.
[10] ROBICHEK, E. Walter. Programação financeira: acordos de stand-by e programas de estabilização. FMI, janeiro de 1971.
[11] Bacha, Edmar. Belíndia 2.0, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2012, pág. 79.
[12] Caldeira, Jorge. História da Riqueza no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Estação Brasil, 2017, pág 570.
[13] Luna, Francisco Vidal; Klein, Herbert. História Econômica e Social do Brasil, São Paulo, Editora Saraiva, 2016, pág. 249.
[14] Fragelli, Renato. Verbete temático: Plano Verão.
[15] Vieira, Fernando; Agostino, Gilberto; Roedel, Hiran. Sociedade Brasileira, Uma História, Rio de Janeiro, Editora Record, 2012, pág 829.
[16] Modenesi, André. Regimes Monetários: Teoria e a Experiência do Real, São Paulo, Editora Manole, 2005, pág. 307.
Rafael Rosa