Poucos meses atrás, o filósofo Ruy Fausto, filósofo e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), publicou pela Companhia das Letras seu livro Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução. Nele, Fausto se propõe a realizar o hercúleo “trabalho de reconstrução teórica e prática” da esquerda brasileira, que se assemelha a “um homem perdido na floresta”, como se lê logo na introdução do livro.
A obra é resultado de uma série de textos que Fausto publicou, entre outubro do ano passado e fevereiro último, na revista Piauí, que foram reformulados, expandidos e acrescidos de seções inéditas. Esses textos foram respondidos, também naquela revista, pelo economista Samuel Pessôa, gerando um raro caso de debate intelectual de alto nível, interdisciplinar e – acima de tudo – respeitoso, entre dois intelectuais de opostos ideológicos.
Há muitas entradas possíveis no livro de Fausto, mas chamo a atenção das duas que, provavelmente, interessarão mais às leitoras e aos leitores do Terraço Econômico
Economia: uma disciplina incontornável
Filósofo de formação, com doutorado na Universidade de Paris-Sorbonne e décadas de docência na Universidade de Paris-Nanterre, Fausto encara de frente a tarefa colocada nos primeiros parágrafos da introdução: “A crítica econômica é o grande desafio”. Trata-se, pois, de reconstruir um discurso político de esquerda que não menospreze o lugar e a importância da economia; em outras palavras, a promessa é de não a subordinar à mítica vontade política.
Mais: Fausto pretende encarar a economia sem simplificações grosseiras, submetendo seu programa ideológico (no bom sentido) às exigências da produção e distribuição de riquezas numa sociedade democrática e complexa. “Ela [a economia] é de uma tecnicidade particular. E assim, o que fazer quando não se é economista? Deve-se renunciar a toda referência aos problemas econômicos? Essa é a norma de certos críticos sérios, mas ela é insatisfatória. Nas condições atuais, uma crítica alérgica a toda referência à economia é insignificante”.
Fazer uma (nova e atualizada) crítica da economia política que não se traduza em negação da esfera econômica – esfera de valor autonomizada, se quisermos lembrar Max Weber – é uma necessidade que Fausto aponta, mas cujas exigências ultrapassam os limites e propósitos do livro, como o autor bem reconhece. No entanto, o diagnóstico de época não pode esperar até que se produza uma teoria melhor; é a esta tarefa a que Fausto se dedica.
Honestidade intelectual
O livro de Fausto é, acima de tudo, produto das inquietações de um intelectual radicalmente honesto, daqueles que leva a sério qualquer objeção que lhe é apresentada, que busca reconhecer méritos nos adversários e falhas nos aliados, que não foge ao ônus da prova nem transforma o que deve ser demonstrado em pressuposto. Isso se reflete, antes de mais nada, na estrutura do livro: o primeiro capítulo é dedicado às patologias da esquerda, o segundo, à direita no ataque e o terceiro, na melhor tradição dialética, à crise das patologias e à crise da esquerda.
Só depois de confrontar-se com o passado e o presente de sua tradição político-ideológica, e com as tradições alternativas e rivais, Fausto se sente autorizado a apresentar seu programa propositivo – pois não se trata, como o subtítulo elementos para uma reconstrução deixa claro, apenas de crítica negativa. A leitora ou o leitor desavisados poderão contabilizar a obsessão com que o autor critica tudo e a todos e a aparente relutância em distribuir modestos elogios a um pensador ranzinza e paranoico, mas está longe de ser o caso: Fausto se esforça para medir com a mesma régua da exigência conceitual e do compromisso com o real tanto a colega Marilena Chauí quanto o distante (em vários sentidos) Olavo de Carvalho, pesa na mesma balança os louros que concede a setores progressistas da classe média brasileira, a pequenos grupos autonomistas franceses e à socialdemocracia sueca.
Retomando a melhor tradição marxiana, aplica-se na leitura sobretudo dos representantes de correntes de pensamento diversas à sua. Afinal, como criticar (no caso da economia) e reconstruir (no caso da esquerda) aquilo que, primeiro, não se conhece bem? Nesse caminho biográfico-intelectual, Fausto arruma brigas com todos, à direita e – principalmente! – à esquerda, em nome do dever auto-imposto de honestidade.
Vejamos qual o saldo resta para a esquerda e quais as rotas se lhe oferecem sob esse prisma e essas exigências.
Balanço da esquerda: entre o negativo e o positivo
Fausto diagnostica explicitamente três patologias que acometeram a esquerda em sua história: autoritarismo, adesismo e populismo. “Minha hipótese é a de que um eventual trabalho de reconstrução deve começar pela percepção de que, por diferentes razões e sob diferentes formas, vivemos nos últimos cem anos um período de alienação radical do projeto de esquerda em relação ao que ela representou na origem, e deveria continuar representando” – é o que se lê logo na abertura do capítulo dedicado às patologias.
Mas que a leitora e o leitor não se deixem, novamente, enganar, pensando que Fausto busca retornar a uma pureza ideológica que só existe no conforto da poltrona do filósofo: “Não se trata de trocar o movimento real por um ideal. Trata-se de combater infecções de ideias que prejudicam o movimento”. O autor pretende buscar, na concretude da esquerda histórica, elementos positivos que sirvam de alicerce à reconstrução.
Para ele, a esquerda viável precisa ser: antiautoritária, compromissada com a democracia e a liberdade; anticapitalista, não cedendo à tentação de buscar reformas marginais no interior do sistema; antipopulista, assumindo um discurso com pretensão de verdade em detrimento do discurso religioso que cultua a personalidade carismática ou autoritária do grande líder – submetendo-se, antes de mais nada, ao crivo dos fatos. Ademais, soma-se a exigência de uma agenda ecológica, tão ausente na esquerda do século XX e do início do século XXI.
É, sem dúvida, um equilíbrio difícil, como se percebe pela hesitação de Fausto em diversas passagens do livro. Não fica clara a proposta principal de seu anticapitalismo: uma economia com propriedade privada mas sem mercado, ou ao menos um mercado onde o grande capital seja “neutralizado”. O autor está ciente disso, e promete mais de uma vez esclarecer essas nebulosidades num próximo livro. Ainda assim, é um alento ver um respeitado e experimentado intelectual de esquerda enfatizar com tanta propriedade o caráter imprescindível de compromissos democráticos e ambientais.
Os dois anexos do livro são respostas de Fausto às críticas de Pessôa. Longe de desqualificar o interlocutor, o filósofo busca explicitar as divergências entre suas posições e aquelas do economista. Caso raro: dois reputados acadêmicos de disciplinas e extremos ideológicos distintos se encontrando no debate de ideias. Um exemplo a ser cultivado.
Por tudo isso, o livro Caminhos da esquerda merece ser lido e bem-recebido. Especialmente por aqueles que discordam política e ideologicamente de Fausto. Trata-se, sem dúvida, de uma valiosa contribuição ao debate nacional.