Sentidos de relevância: justificativas para o financiamento de pesquisas universitárias

Duas semanas atrás, quando investiguei qual a parcela de contribuição da universidade para o descaso com o qual a sociedade lhe trata, retomei uma crítica comum no meio universitário contra a imposição de critérios de utilidade às atividades científicas, sugerindo sua substituição pela noção de relevância[1]. Como prometido, passo a examinar esse conceito.

No ano passado, o governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, fez uma infeliz declaração sobre a maneira como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) aplica seu orçamento no fomento à pesquisa. Segundo o governador, a Fapesp deveria direcionar fundos para desenvolver vacinas contra a dengue, em vez de financiar teses em sociologia ou “projetos acadêmicos sem nenhuma relevância”[2]. No esclarecimento de sua assessoria, ficou claro como o governador confunde relevância com utilidade, reduzindo à primeira à segunda[3]. Em sua resposta, a Fapesp fez questão de desfazer a confusão do governador: “Pela natureza intrínseca da ciência, resultados práticos de diferentes pesquisas podem se verificar em diferentes prazos, de maior ou menor extensão. Algumas pesquisas não se realizam para chegar a resultados práticos, mas sim para tornar as pessoas e as sociedades mais sábias e, assim, entenderem melhor o mundo em que vivemos, o que é uma das missões da ciência”[4].

Como, então, pensar a relevância para além da utilidade? Pesquisas úteis, que geram resultados práticos de aplicação imediata, são relevantes, sem dúvida. Mas há outras formas de sê-lo; há outros sentidos para o termo relevância.

Comecemos pelo sentido cultural. Uma pesquisa universitária pode ter resultados relevantes para as artes visuais, para a literatura, para o cinema, o teatro e a dança. Quer sejam de natureza histórica, crítica ou conceitual, essas pesquisas contribuem não só para o entendimento teórico dos respectivos campos, mas também para a produção cultural presente e futura. É possível dizer que essas pesquisas não têm utilidade, afinal não é exato dizer que a arte serve para alguma coisa, mas parece óbvio que cultura é uma parte relevante da nossa vida em sociedade e da nossa civilização. Sendo assim, pesquisas que sirvam à relevância cultural justificam o investimento social depositado nelas.

Em segundo lugar, há um sentido de relevância social. Pesquisas podem levar à reavaliação de fenômenos sociais, de políticas públicas dirigidas à melhoria das condições de vida social, ainda que seus resultados não sejam úteis, no sentido de não gerarem “produtos vendáveis” ou soluções diretamente aplicáveis. Ainda assim, esse tipo de reflexão é imprescindível para o processo de reavaliação que, em algum momento, culminará em ações que produzirão transformações sociais relevantes – ou não, mas o ponto é que sem essas pesquisas, a maioria dessas transformações não aconteceriam. Mais uma vez, então, pesquisas que contenham relevância social também justificam o financiamento que recebem.

Há um tipo de relevância cuja justificação é um pouco mais complicada: trata-se do sentido intelectual ou acadêmico. Pesquisas podem ser relevantes para a comunidade científica, para o conjunto de pesquisadores e pesquisadoras. Nesse sentido, pesquisas que impactam o próprio campo de estudos no qual são realizadas podem ser consideradas relevantes. E isso em duas dimensões: em primeiro lugar, há pesquisas cuja importância não é delimitada por fronteiras nacionais, fazendo a disciplina avançar em nível mundial; em segundo lugar, há pesquisas que impactam o campo de estudos apenas nacionalmente, quer seja porque se tratam de importações ou atualizações vindas do estado da arte internacional, quer porque se dirigem a tradições nacionais ou tratam de discussões e assuntos nacionais. Ainda que possa haver uma disparidade de qualidade entre ambas as dimensões da relevância acadêmica, as duas importam, porque a comunidade acadêmica ou científica continua, na maioria de suas características, se estruturando a partir de um paradigma nacional, mesmo no mundo globalizado – mesmo que haja um certo grau de internacionalização na carreira.

A dificuldade posta por pesquisas que apresentam majoritariamente uma relevância acadêmica é a seguinte: como justifica-las perante a sociedade, se elas servem apenas aos membros dessa comunidade tão restrita que é a comunidade acadêmica, por que deveríamos pagar por elas? Se eu não faço parte da comunidade dos pesquisadores e pesquisadoras, dos alunos e alunas, dos e das docentes universidades, por que devo ajudar a bancar uma pesquisa que não tem nem utilidade nem relevância para mim?

A resposta para essas perguntas envolve um certo grau de fé na instituição universitária – o que é complicado, devo admitir, já que há décadas se diz que a universidade está em crise, e dado que isso é dito principalmente por pessoas de dentro da própria instituição. A esperança é que pesquisas de relevância acadêmica sirvam de inspiração para pesquisas de relevância cultural, relevância social e mesmo pesquisas úteis. No campo das ciências, pesquisas em ciência básica são de extrema importância, ainda que de utilidade imediata diminuta. Uma área como a genética, que hoje influencia do tratamento de diversas enfermidades a desenvolvimentos na agropecuária, foi inaugurada pelo monge agostiniano Gregor Mendel[5] no século XIX, que fez experimentos com duas variedades de ervilha para compreender a estrutura da transmissão de características genéticas – uma pesquisa que nem de longe possuía uma utilidade tão ampla como a que vemos na genética atual.

Uma esperança fundamental sobre a qual a universidade se sustenta é a de inspirar gerações futuras. A pesquisa e a docência hoje podem servir de inspiração para que alunos e alunas desenvolvam novas pesquisas posteriormente, cuja relevância ou utilidade ultrapasse os muros da universidade. Sendo assim, também as pesquisas de relevância acadêmica são justificáveis.

O rol dos tipos de relevância aqui expostos não se pretende taxativo, apenas exemplificativo – ou seja, a lista não está completa e pode ser ampliada com outros sentidos. Os três sentidos aqui apresentados mostram como não se pode reduzir relevância na pesquisa universitária ao sentido estrito de utilidade, embora esta seja uma das formas daquela. Essa explicação é uma forma de defender as pesquisas universitárias do ataque utilitário a que têm sido sujeitas.

Rafael Barros de Oliveira – Colaborador do Terraço Econômico

Notas

[1] https://terracoeconomico.com.br/universidade-e-sociedade-por-que-ninguem-se-importa [2] http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2016/04/1765028-alckmin-critica-fapesp-por-pesquisas-sem-utilidade-pratica.shtml [3] “A Folha confirmou a fala do governador, que disse que a Fapesp vive numa bolha acadêmica desconectada da realidade, financia estudos que muitas vezes não têm nenhuma serventia prática e gasta sem orientação maior.” [4] http://www.fapesp.br/10217 [5] https://pt.wikipedia.org/wiki/Gregor_Mendel

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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