Um Adam Smith pra te fazer feliz

Terraço Econômico | Alípio Ferreira Cantisani How Adam Smith can change your life, Russ Roberts, Portfolio Penguin, R$85

“Como Adam Smith pode mudar sua vida?” Parece mais um título de livro de autoajuda americano que almeja vender em pílulas adocicadas a mensagem complexa de um grande autor. E é isso mesmo, não se iluda. Mas antes de fazer seu muxoxo de intelectual erudito, dê uma chance a essa obra magnífica do capitalismo: o consumismo de ideias! Esqueça por um instante o quanto você sabe sobre Adam Smith, cujas obras você leu no original em escocês, e abra seu coração à prosa deliciosamente fácil e coloquial de Russ Roberts.

Não que ele seja uma pessoa qualquer. O autor é economista do Hoover Institution, renomado centro associado à universidade de Stanford, na Califórnia. Possui um PhD em economia pela Universidade de Chicago, sob supervisão de ninguém mais ninguém menos do que Gary Becker. Hoje, Roberts é âncora de um excelente podcast semanal chamado EconTalk, no qual ele convida intelectuais de várias áreas para discutir seus livros e artigos em nível bastante aprofundado de detalhes.

Quem acompanha, como eu, os podcasts que ele publica toda segunda-feira, já reparou que semana sim, semana não, ele arranja um jeito de enfiar a Teoria dos Sentimentos Morais de Adam Smith na conversa. Seu jeito de introduzir o assunto é sempre o mesmo: “Adam Smith, na Teoria dos Sentimentos Morais, diz que todos nós queremos ser amados e amáveis…

O resto, inclusive o seu livro “Como Adam Smith pode mudar sua vida”, são variações e versões sobre esse tema: sobre essa diferença sutil entre ser amado e ser amável, entre ter e merecer, entre ganhar e conquistar. É a diferença, como lembra Roberts no seu livro, entre Bernard Madoff e Warren Buffet. Em dado momento ambos eram amados, admirados, temidos. Mas só um deles podia pôr a cabeça no travesseiro à noite e dormir o sono dos justos.

[caption id="attachment_4562" align="aligncenter" width="300"] O livro que está na boca do povo[/caption]

Queremos ser amados e merecer ser amados. Isto é, queremos ser pessoas realmente boas, queremos ter uma visão positiva sobre nós mesmos. Mas temos um defeito de fábrica: nossa capacidade de julgar nossos próprios atos é turvada pelo nosso enorme desejo de que eles sejam bons, amados e amáveis. “Nosso desejo de ser amáveis pode ser tão forte que ignoramos toda evidência em contrário. Podemos cair na armadilha de pensar que somos amáveis, quando na verdade não somos” (p. 76).

Para ter uma vida boa e merecê-la, é preciso ser vigilante. Quem crê em Deus intuitivamente possui a noção de que se está sendo vigiado a todo momento. Nossos atos são julgados por alguém, por mais que o façamos secretamente. Smith generalizou essa ideia na concepção do “espectador imparcial”, uma espécie de versão externa de nós mesmos que está espionando a todo momento nossos passos, espiando por cima dos nossos ombros cada uma de nossas ações. Ser uma boa pessoa exige treinamento: é preciso cultivar essa capacidade de se criticar e ajustar o comportamento. Mas mudar em que direção?

Para muita gente, Adam Smith é o filósofo que justificou moralmente o egoísmo. Na Riqueza das Nações, Smith argumenta que  a busca individual pelo auto-interesse leva a resultados socialmente desejáveis, exibindo ceticismo quanto a pessoas que agem em nome do “bem comum” e que querem mudar o mundo. Mas é errado dizer que Smith fez apologia ao egoísmo. As pessoas são autocentradas por natureza, mas esse é antes um pressuposto de sua teoria do que um objetivo moral da vida.

A Riqueza das Nações argumenta que essa natureza autocentrada induz prosperidade e bem-estar social. A Teoria dos Sentimentos Morais é um passo adentro da cabeça do indivíduo. Não, Smith não acredita que a boa vida seja a vida do homem ganancioso, egoísta e rico. Para o escocês do século XVIII, “ o que pode ser acrescentado à felicidade do homem que está em boa saúde, não possui dívidas e tem uma consciência tranquila?” (p. 78). Mas o que é essa consciência tranquila, o que é essa vida virtuosa?

Roberts divide seus capítulos como se seu livro fosse realmente um guia passo-a-passo rumo à boa vida. Por exemplo: Capítulo 5: Como ser amado? Capítulo 6: Como ser amável? Capítulo 7: Como ser bom?, etc. Apesar do approach didático, o livro infelizmente não dá nenhuma fórmula matemática e infalível para responder a essas perguntas. Ao invés disso, provê-nos com uma envolvente lista de exemplos e conceitos. As três grandes virtudes que Smith cita são prudência, justiça e benevolência, cada uma das quais discutidas de forma relativamente extensa por Roberts. Além disso, ser uma boa pessoa exige tato, exige autocrítica, exige empatia, e exige cultivar tudo isso continuamente. Não é fácil, exige abdicações, e exige escolhas.

Ora, não se poderia esperar conselho diferente vindo de um economista. Para Roberts, a Teoria dos Sentimentos Morais também é um livro de economia!

Uma aluna minha me contou uma vez de um professor que lhe dissera que economia é o estudo de como aproveitar ao máximo a vida. Muita gente pode achar essa definição absurda, mesmo aqueles que estudaram economia. Mas viver é fazer escolhas. Aproveitar a vida ao máximo significa escolher bem e sabiamente. E fazer escolhas – isto é, estar consciente de que escolher um caminho implica abandonar um outro e estar inteirado de como minhas escolhas podem afetar as escolhas de outros –, esta é a essência da ciência econômica” (p. 13)

[caption id="attachment_4563" align="aligncenter" width="294"] Russ Roberts (Foto: Hoover Institution)[/caption]

Smith não era psicólogo nem orientador vocacional. Sua preocupação não era com a felicidade ou sucesso individual, mas com uma sociedade melhor. Aqui, a perspectiva que ele adota na Riqueza das Nações não é tão distante da adotada na Teoria dos Sentimentos Morais, ao menos na leitura de Roberts. Da mesma forma que é a ação autointeressada de cada agente econômico que impele o bom funcionamento dos mercados e o progresso econômico, é também a ação virtuosa de cada indivíduo que faz as sociedades melhorarem.

É essa tentativa constante de ter empatia para com o próximo, respeitar seus limites, buscar ser cordial, gentil e justo, que vai reforçando o tecido social e criando uma situação de harmonia. Na leitura de Roberts, foram décadas e séculos de reiterado comportamento virtuoso que criaram a “confiança” entre pessoas na qual algumas sociedades podem contar e outras não.

Roberts relata quando, ao alugar uma casa de um estranho durante um fim de semana, combinou que deixaria o pagamento em dinheiro sobre a escrivaninha. A faxineira pegaria o dinheiro e o daria ao proprietário. O que garante que ele deixaria o dinheiro? O que garante que a faxineira entregaria o dinheiro? O que garante sequer que um ladrão não entraria na casa para roubar o dinheiro? Mas o proprietário confiou. Em seu orgulho exibicionista, Roberts declara ser “uma vantagem fabulosa viver numa sociedade na qual pessoas resistem à tentação de explorar as outras, mantêm sua palavra e honram suas promessas e contratos, mesmo quando não fazê-lo implica um benefício de curto-prazo” (p. 193).

Para fazer uma sociedade melhor, comece cuidando do seu próprio quintalzinho. O mundo não será melhor por conta dos grandes atos heroicos, mas pelo acúmulo de milhões de pequenos atos cheios de bondade e empatia, que juntos e reiterados constroem a harmonia social. Esse lugar-comum é também a conclusão desse delicioso livro de Russ Roberts, mas ao chegarmos ao último capítulo, essa platitude já possui um sentido muito mais profundo. Uma citação tocante de George Eliot, pseudônimo da escritora inglesa vitoriana Mary Ann Evans, resume essa mensagem modesta e potente. Sua personagem Doroteia não era famosa, e sua vidinha foi vivida sem que muita gente se apercebesse de sua bondade.

Sua natureza, tal como o rio de onde Ciro extraiu sua força, se esvaiu em canais que não possuem nome algum na terra. Mas o efeito de sua existência sobre aqueles em volta dela era incalculavelmente difuso: pois o bem crescente do mundo depende em parte de atos não-históricos; e se as coisas não estão tão ruins para você e para mim como poderiam estar, deve-se em parte ao número de pessoas que viveram fielmente uma vida desconhecida e repousam hoje em túmulos abandonados” (p. 199).

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