A universidade vista por seus administradores: o caso da Unicamp

No final do mês passado, o reitor da Universidade estadual de Campinas (Unicamp), o físico Marcelo Knobel, deu uma entrevista à Folha de São Paulo na qual discorreu sobre a atual situação da universidade [1]. Curiosamente, a entrevista se deu no momento em que a Unicamp foi tida como a melhor universidade da América Latina, na avaliação do ranking Times Higher Education[2]um resultado a ser comemorado, mas sempre cum grano salis[3].

Dirigentes universitários ocupam uma posição privilegiada de observação não apenas da instituição que comandam, mas também do sistema de ensino superior. Portanto, da mesma forma como fiz com o reitor da USP, Marco Antonio Zago [4], passo a analisar a entrevista de Knobel para entender sua perspectiva – como dito, privilegiada – sobre as universidades brasileiras na atualidade.

A situação financeira

A situação é dramática. Temos um déficit de mais de R$ 200 milhões e não podemos nem queremos fazer demissões”. Knobel não poderia ser mais franco quanto ao atual estado das finanças da Unicamp. Assim como a maioria das universidades públicas brasileiras – para não dizer todas –, a recém-coroada melhor da América Latina vive tempos de vacas magras, e a tarefa mais urgente é a reestruturação das contas: “Quero ser lembrado pela recuperação financeira da Unicamp em um momento muito crítico para a universidade pública”, afirma Knobel.

A origem da penúria, no entanto, é mais antiga do que se imagina. Enquanto comumente se atribui a atual crise das universidades à irresponsabilidade fiscal da gestão Dilma Rousseff, Knobel aponta que, ao menos para as estaduais paulistas, o buraco é bem mais embaixo: “As três universidades públicas paulistas fizeram um esforço importante de ampliação da oferta de vagas no início dos anos 2000, com a promessa de um adicional de recursos que nunca veio”.

Knobel faz referência à pressão exercida pelo governo do PSDB (especialmente pelo falecido Mário Covas e por Geraldo Alckmin, governador à época e também agora) para que a USP, a Unicamp e a Unesp aumentassem suas vagas. Em contrapartida, foi-lhes prometida uma fatia maior do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) como repasse às estaduais, de modo que se pudesse financiar adequadamente a expansão. Esse aumento, no entanto, não veio.

Isso significa que desde o começo dos anos 2000 a trinca paulista vem lidando com o desafio de manter uma estrutura sensivelmente maior com o mesmo orçamento (em termos proporcionais). Com o bom resultado econômico do Brasil durante o governo Lula e no início do governo Dilma, o ICMS exibiu crescimento constante, de modo que a conta vinha fechando – embora o crescente gasto com folha de pagamento, resultado da contratação de docentes para lidar com o aumento do alunado, desse sinais do que estava por vir.

Resumo da ópera (trágica): o governo pressiona as universidades para que elas ofereçam mais vagas, aumentando a demanda por recursos; o governo se recusa a aumentar o repasse orçamentário para as universidades; a matemática dá conta do resto.

Perspectivas e saídas

Ao se manifestar sobre os possíveis caminhos para sair da crise, Knobel se mostra bastante equilibrado. Recusando demissões em massa como solução, buscando salvar a estrutura de ensino e pesquisa montada ao longo de décadas e com muito investimento, o reitor aponta para duas ações.

Por um lado, defende a modernização da gestão universitária, mediante uma auditoria interna e reestruturação dos compromissos assumidos. “Há alguns setores mais inchados do que outros. Hoje temos 650 contratos ativos. É preciso pensar em mecanismos de acompanhamento deles, ver quais podem ser renegociados ou não, etc.”, diz o reitor.

Por outro lado, Knobel indica a necessidade de desonerar a universidade de compromissos alheios às suas finalidades intrínsecas (especialmente ao tripé pesquisa-ensino-extensão). “Um tema urgente a resolver é o do hospital. A Unicamp tem um complexo hospitalar, atendemos uma população da ordem de 5 milhões de pessoas de todas as cidades da região”. Hospitais sustentados por universidades apresentam um paradoxo: se sua estrutura serve à realização de pesquisas, atividades de ensino e de extensão, via de regra ela também serve ao atendimento da população, desvinculado de atividades acadêmicas. Nesses casos, a universidade faz as vezes de governo e assume um fardo que caberia, antes, às secretarias de saúde. Isso não impede que a universidade atue em conjunto com o governo, servindo-se das estruturas de saúde e contribuindo parcialmente para sua manutenção.

Knobel acerta duplamente: ao reconhecer a necessidade de enxugar a estrutura da universidade e ao direcionar esse movimento de modo a proteger tudo que for essencial a seus fins – pesquisa-ensino-extensão.

Uma crise de cérebros

Por fim, o reitor da Unicamp levanta aquela que é, para ele, a consequência mais grave da crise: a fuga de cérebros. Dois são os vetores dessa força centrífuga – um interno e um externo.

No plano nacional, os docentes e pesquisadores não só encontram melhores oportunidades financeiras no setor privado, o que seria previsível, mas também nas universidades públicas federais. Isso porque o teto salarial nas universidades estaduais é o subsídio do governador (R$ 21 mil em São Paulo), enquanto nas federais o valor máximo é o salário dos ministros do STF (R$ 33 mil)[5]. “Já temos casos de concursos sem nenhum candidato, de gente que se demitiu (…) Falar que na universidade são pagos supersalários é falácia. O risco que temos com a questão do teto é seríssimo. A universidade pública como lugar de excelência está em risco”.

No plano internacional, claro, a questão se agrava. Mesmo universidades públicas têm, em muitos países, flexibilidade salarial, o que as permite atrair, com polpudos salários, a elite da pesquisa e da docência em diversas áreas do conhecimento – isso para não falar na estrutura de pesquisa que oferecem. Abrir mão dessa capacidade é abrir mão da excelência, como bem apontou Knobel.

Impressiona também a sensibilidade com a qual o reitor lida com a questão. Questionado sobre a pertinência de reivindicar a possibilidade de salários mais altos na atual situação econômica, Knobel propõe o seguinte exercício de pensamento: “Precisamos mostrar com clareza o que teria acontecido se uma universidade como a Unicamp não tivesse sido criada. (…) há 14 anos, criamos nossa agência de inovação (…). Desde então, já são 500 [empresas] ‘filhas’ da Unicamp, que geram R$ 3 bilhões por ano. Isso sem falar na formação de recursos humanos que vão atuar em todas as áreas. Se pensarmos no hospital, a não existência da Unicamp significaria um colapso no sistema de saúde”.

Knobel nos mostra que, quando se trata de educação, ciência e tecnologia, as perdas de médio e longo prazo ultrapassam e muito as economias no curto prazo. Uma política estratégica para o setor precisará combinar, na dose certa, responsabilidade orçamentária e investimento ininterrupto. Em artigo publicado na Gazeta do Povo, apontei como temos visto tudo, menos isso no atual governo[6].

Se a situação é desanimadora, ao menos podemos depositar nossas poucas esperanças em figuras como Marcelo Knobel, que engrossam o coro em defesa da educação, da ciência e da cultura brasileiras.

[1] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/08/1913597-situacao-financeira-enfrentada-pela-unicamp-e-dramatica-afirma-reitor.shtml
[2] https://www.timeshighereducation.com/world-university-rankings/2017/latin-america-university-rankings#!/page/0/length/25/sort_by/rank/sort_order/asc/cols/stats
[3] https://terracoeconomico.com.br/quem-servem-os-rankings-universitarios
[4] https://terracoeconomico.com.br/universidade-vista-por-seus-administradores-o-caso-da-usp
[5] Dois lembretes importantes: 1) a porcentagem dos docentes e pesquisadores que atinge o teto é pequena, dada a estrutura piramidal das carreiras; 2) os subsídios citados são nominais, antes da soma dos famosos penduricalhos – tanto governadores quanto ministros do Supremo recebem muito (mas muito) mais do que isso ao final do mês.
[6] http://www.gazetadopovo.com.br/educacao/educacao-sem-horizontes-como-o-corte-do-orcamento-prejudica-ensino-e-pesquisa-8fm20t1j65j4binv3xbgj2qt5

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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