Por Victor Candido
O Estado Empreendedor – Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado, Mariana Mazzucato, Penguim Portfolio – R$44,90
“Em visita recente aos Estados Unidos, o presidente francês François Mitterrand fez um passeio pelo Vale do Silício, na Califórnia (…) Durante o almoço, Mitterrand ouviu Thomas Perkins, sócio do fundo de capital de risco que lançou a Genenthc Inc, exaltar as virtudes dos investidores arrojados que financiam os empreendedores. Perkins teve a fala cortada por Paul Berg, professor da universidade de Stanford, ganhador do Prêmio Nobel pelo trabalho em engenharia genética. “Onde estavam vocês nas décadas de 1950 e 1960, quando foi preciso fazer todo o financiamento da ciência básica? A maioria das descobertas que têm alimentado a indústria foi feita nessa época.”
Em todo o livro não existe passagem mais marcante que essa que abre o Capítulo 3. Sim este é um livro de passagens marcantes, não é um romance e sim uma obra técnica sobre economia do desenvolvimento, porém extremamente acessível aos não iniciados a ciência econômica. Ideias fortes estão por todo o livro, fortes no sentido de que Mazzucato destrói conceitos enraizados, no mainstream acadêmico de que o Estado é um leviatã burocrático, um monstro lento que só deve atuar de forma pontual a corrigir as poucas imperfeições que o mercado apresenta. Sendo esse belíssimo lugar abstrato o mercado, um ambiente onde a livre vontade de empresas e famílias interagem criando extremo bem estar social, desde que não ocorra nenhuma regulação o bem irá sempre imperar no lócus do mercado. Logo é fácil perceber a dinâmica binária no pensamento, entre Estado ou Mercado que impera no mainstream econômico atualmente.
Mazzucato começa criticando os modelos de desenvolvimento econômico mais recitados aos pupilos sentados nas carteiras das universidades – o autor desta resenha se inclui nesse grupo. Não vou discorrer sobre todos os modelos criticados pela autora, acredito que apenas os modelos Solow-Swan e do crescimento endógeno nos ajude a formar uma boa ideia. Para Robert Solow o crescimento é uma simples função que combina capital físico (K) e trabalho humano (L) de forma a gerar um certo nível de produto (Y), claro, com tudo mais constante e com retornos decrescentes a escala, o que significa que o aumento da quantidade de K ou L gera um crescimento cada vez menor em (Y), logo existe um limite no nível de produto que pode ser alcançado com essa combinação.
Y=F (K, L) a famosa função de produção.
Com tudo mais constante a função descreve uma curva com rendimentos decrescentes, então combinando K e L podemos nos ‘mover’ ao longo da curva, lembrando que do limite imposto pelos retornos decrescentes. Porém se retirarmos a pressuposição de que tudo mais constante podemos deslocar a curva ‘para cima’ e assim gerar mais produto (Y) com a mesma combinação de (K) e (L) que tínhamos anteriormente. O que desloca a curva é chegada de uma nova tecnologia, a máquina a vapor na primeira revolução industrial é um excelente exemplo de como uma nova tecnologia pode aumentar a produção (Y). Porém Solow descobriu que 90% da variação da produção econômica é explicada por esse choque tecnológico e chamou isso de resíduo da mudança técnica. Dessa forma, notou-se que 90% do crescimento então é explicado por variáveis não inclusas no modelo. Logo os teóricos foram atrás da possibilidade de incluir a mudança tecnológica ‘dentro’ da nossa função de crescimento econômico.
[caption id="attachment_2271" align="aligncenter" width="362"] A curva f(ka) nos mostra uma combinação capital trabalho, detalhe para a inclinação da curva que vai aumentando, sinal dos retornos decrescentes. A curva f(kb) nos mostra o efeito de um choque tecnológico, onde a mesma combinação da curva f(ka) pode gerar muito mais produto (y) com um a mesma combinação de K e L.[/caption]O modelo que incluía a mudança tecnológica surgiu no começo dos anos 90, a teoria do novo crescimento ou crescimento endógeno colocou dentro da nossa função o investimento em P&D (pesquisa e desenvolvimento) e o investimento em capital humano (gastos em educação e treinamento). E esses dois últimos trazem retornos crescentes a escala, ou seja, expandem o limite de crescimento ao longo da função de produção, logo podemos crescer de forma maior e melhor desde que investimentos sejam feitos em pesquisa e educação. Essa última afirmação nos parece bastante óbvia, não é? Sim, porém o modelo utiliza as novas pressuposições a cerca da pesquisa como endógenas a empresa ou seja, o empresariado é o responsável por esse novo conhecimento e não o Estado.
Fica claro para nós que o grande motor do crescimento é a inovação tecnológica, independente do modelo que escolhemos para a análise. E ai surge a pergunta que Mazzucato parece inquieta em responder: qual a origem dessa inovação? E sua reposta é simples, ela vem do ESTADO e não da livre vontade de empreendedores e investidores de risco que financiam empresas na fronteira tecnológica.
Mas o Estado não é um gigante trapalhão? Para a Mazzucato não, ele é um gigante mais com grande força no sentido de suportar a incerteza de diversos programas de pesquisa em ciências básicas, financiados com dinheiro público. Detalhe para a palavra incerteza e não risco. Incertezas não são eventos probabilísticos, logo suas chances de sucesso não podem ser calculadas, a ideia nos remete a Keynes e Henry Knight, a famosa incerteza Knightiana. Se a incerteza sobre os resultados das pesquisas é grande, porque as empresas iriam entrar nessa? Para eles é melhor esperar a incerteza se tornar um risco e assistir de perto até que a conta risco versus retorno comece a valer a pena. Logo o Estado é o promotor da pesquisa básica que pode vir a gerar novas tecnologias.
[caption id="attachment_2266" align="aligncenter" width="660"] Fonte: Mazzucato 2014, Elaboração própria[/caption]O programa espacial americano é um excelente exemplo de como o investimento do Estado em pesquisa básica nas décadas de 40 e 50 geraram inovações que permitiram o sonho de ir à lua, fora que ao longo do programa novas conquistas tecnológicas surgiram, entre elas o começo da miniaturização dos computadores, que hoje estão no seu bolso. Anterior ao programa espacial tivemos projeto Manhattan que trouxe os avanços da física nuclear e quântica para o campo prático e culminou na bomba nuclear e no primeiro reator nuclear comercial.
[caption id="attachment_2270" align="aligncenter" width="660"] Nós escolhemos ir a Lua e não o setor privado.[/caption]A mídia adora dizer que grandes empreendedores como Steve Jobs criaram produtos revolucionários que mudaram profundamente nossos modos de vida. Ok, criaram mesmo, afinal de contas o Iphone é sensacional e a Apple é a empresa mais valiosa do mundo, valendo cerca de 600bilhões de dólares. Na verdade Jobs não criou nada, ele apenas juntou diversas tecnologias criadas em programas de pesquisa governamentais, algumas inovações do Iphone foram criadas décadas antes em laboratórios do governo americano.
Outra indústria que se beneficia amplamente de pesquisas básicas financiadas pelo Estado é a farmacêutica. Marcia Angell, ex-editora da prestigiada revista acadêmica The New England Journal of Medicine, em seu livro The Truth About the Drug Companies (A verdade sobre a indústria farmacêutica) mostrou que todas as novas moléculas que poderiam ser tornar medicamentos inovadores vieram de laboratórios governamentais ou financiados com dinheiro público. Colocando em cheque a áurea inovadora que o setor tanto prega.
[caption id="attachment_2267" align="aligncenter" width="660"] Fonte: Mazzucato 2014, Elaboração própria[/caption]Se o Estado é o principal motor de inovação, então o argumento de que a maior liberalização dos mercados em conjunto com incentivos fiscais, aumentariam a inovação, perde completamente a força. E é isso que alguns governos tem feito sistematicamente, reduzindo impostos e criando créditos fiscais para que empresas invistam em pesquisa. Porém tais pesquisas são focadas, direcionadas apenas a produtos próximos de se tornarem realidade e não em pesquisa básica . Com essa atitude o Estado apenas deixa de gerar receitas fiscais, enquanto as empresas surfam a onda criada por anos de pesquisas básicas envoltas em incertezas, em uma relação quase parasitária. Mazzucato argumenta que quando bem-sucedidos, uma parte do retorno dos investimentos feitos com apoio público deveriam ser devolvidos ao governo.
O Estado Empreendedor é um livro que vai te deixar com a pulga atrás da orelha sobre tudo que você já aprendeu sobre economia do desenvolvimento e principalmente desconfortável com a disseminada ideia de que o Estado é um péssimo inovador, um burocrata ineficiente, quando na verdade as evidências sugerem o contrário. Mazzucato de fato coloca velhas ideias na berlinda e nos faz refletir profundamente ao longo de suas 263 páginas, uma leitura recomendadíssima!
Para quem ficou interessado tem esta ótima apresentação da própria Mazzucato no Ted Talks.
[embed]https://www.youtube.com/watch?v=3r1IPsldbBg[/embed]Notas:
A Companhia das Letras gentilmente forneceu um livro para o Terraço Econômico para a elaboração desta resenha por meio de uma parceria firmada entre ambas as partes.