Vivendo sob o totalitarismo: o fim do homem soviético

Em entrevista à jornalista Svetlana Alexievitch nos anos 1990, uma senhora russa conta a história de seu pai. Ela era soldado do Exército Vermelho e foi enviado pelo governo soviético para lutar na guerra com a Finlândia, no inverno de 1939. Sua divisão, mal preparada, mal armada e mal vestida, foi capturada pelos finlandeses. Enviado de volta à Pátria Mãe em 1940, esse soldado (e seus colegas) foi preso, interrogado e condenado a seis anos de trabalhos forçados por traição à Pátria. (Na União Soviética era crime fazer-se prisioneiro de guerra.) Sujeito ao frio, à fome e à violência dos campos de trabalho; longe dos amigos, da esposa, da filha. Uma história de injustiças e sofrimento, tão corriqueira na União Soviética, que marcou a vida dessa família para sempre. Mas esse homem voltou para casa e manteve por muitos anos um retrato de Stalin na sala da família. “Papai não tinha raiva de ninguém, ele dizia que eram os tempos que eram daquele jeito. Tempos ferozes. Nós estávamos construindo um país forte, e nós conseguimos. E nós vencemos Hitler. Era o que dizia papai…”

“O fim do homem soviético”, magnum opus da jornalista Svetlana Alexievitch, é uma coletânea de entrevistas sobre a vida nesse “país forte” que desmoronou, e um leitura maravilhosa para refletir sobre o Centenário da Revolução Russa de 1917. A primeira parte do livro, “A consolação pelo Apocalipse”, dá a palavra a homens e mulheres que nasceram e cresceram num País que não existe mais. Foram educados na crença de que viviam no melhor país do mundo, um país fundado na solidariedade e no humanismo, invejado por milhões, ameaçado por outros milhões! Os entrevistados não são figuras-chave da política soviética, e Svetlana os convida a contar sobre suas próprias vidas: seus romances, frustrações, ambições, impressões. Mas parece que não há nada na União Soviética que pudesse ignorar a política: o mais inocente causo é pontuado com referências à Guerra, ao Gulag, a Stalin, Beria, Krutschev, Brejnev, Gorbatchov… De um livro sobre a vida das pessoas comuns na União Soviética, Svetlana Alexievitch de tabela escreveu uma história do regime e sua queda. E se há uma palavra para resumir esse livro, a palavra é “sofrimento”.

[caption id="" align="aligncenter" width="241"] Link Direto para a Companhias das Letras[/caption]

Todas as histórias são doídas, todas essas vidas maltratadas. Quase todas são histórias de pessoas que, quando jovens, se engajaram em campanhas para “construir o socialismo” nos confins da Pátria, vivendo em cabanas improvisadas na taiga, viajando em trens superlotados, mas felizes.

“Nós estávamos construindo a ferrovia de Abakan-Taichet. Eles nos levaram para lá em trens de mercadorias. Os vagões tinham duas prateleiras suspensas com grandes pregos de metal. Não havia colchões nem cobertores, e usávamos a cabeça do prego como travesseiro. (…) Não havia luz [nem banheiro] nos vagões . Mas durante todo o trajeto, nós cantamos canções de komsomols…”

Para ler o livro de Svetlana, é preciso fôlego. Não só a quantidade de crueldade choca, mas também a maneira resignada com que os entrevistados falam dela. Como compreender a nostalgia que eles exprimem com relação a um regime que, segundo eles próprios, perpetrou crueldades inomináveis? Como compreender a fidelidade com relação a um ideal de sociedade cuja execução deu margem a tanta incompetência, tanto arbítrio, tanta injustiça? Para grande parte dos cidadãos soviéticos, é verdade, os bastidores do regime não eram conhecidos: os veículos de comunicação eram controlados, os professores e formadores de opinião cuidadosamente observados. Os “tribunais públicos” das primeiras décadas do regime (todos eles encenados, como sabemos), “provavam” aos cidadãos que o país estava infestado de traidores, conspiradores, espiões, e que eram necessárias ações severas para erradicar esses elementos antes que eles comprometessem o projeto socialista. E todo mundo era compelido a assim pensar, para sua própria segurança, para ficar bem com os amigos, para ficar bem com o Partido. E muita gente de fato pensava assim genuinamente, como os entrevistados de Alexievitch. Abnegados, dariam sua vida para seu País, e achavam que a vida dos outros também deveria ser posta a serviço desse maravilhoso projeto.

O que você pensaria se você fosse enviado à guerra em condições sub-humanas, e depois sujeito às mais injuriosas acusações de traição, forçado a confessar crimes que não cometeu, ver sua esposa e conhecidos serem presos simplesmente por fazer parte de seu círculo, comer o pão que o diabo amassou viajando em trens imundos e sobrelotados, andar entre cadáveres lutando para não se tornar um deles? O que você pensaria se sua esposa tivesse morrido nessa história? Quando Vassili Petrovitch cumpriu sua pena, foi informado que “Infelizmente, não podemos lhe devolver sua esposa. Ela morreu. Mas nós podemos restituir a sua honra”, e aceitaram o Vassili novamente no Partido Comunista. “E eu fiquei tão feliz!”, exclama o entrevistado para o horror de Svetlana Alexievitch. É praticamente a única vez em que ouvimos a voz de Svetlana no livro, ela diz a Vassili que ela jamais será capaz de compreender o que ele acabara de dizer. Um pedacinho de papel timbrado – a filiação ao Partido Comunista – foi capaz de apagar anos de sofrimento e a morte de sua mulher. A resposta de Vassili, colérica, é provavelmente o momento mais eletrizante do livro:

“Não é possível nos compreender pelas leis da lógica, minha senhora! Vocês são umas calculadoras! Vocês precisam entender uma coisa: só podemos ser compreendidos segundo as leis da religião. Da fé! No fim vocês vão nos invejar, eu lhe garanto! O que é que vocês fizeram de grandioso? Nada. Somente o conforto. Tudo por um estômago cheio… tudo pelos seus doze metros de intestino. Vocês só querem encher a barriga e se rodear de bugigangas. Enquanto eu… minha geração… Tudo o que vocês têm, fomos nós quem construímos. As usinas, as represas, as hidrelétricas… E vocês, fizeram o quê? Já nós, nós vencemos Hitler. Depois da guerra, o mero nascimento de um bebê era uma alegria! Não era a mesma alegria que antes da guerra, era outra coisa… Era de me fazer chorar!”

São múltiplas histórias de um patriotismo ainda vivo mas totalmente deslocado, gerando angústia e incompreensão. Svetlana entrevista um ex-oficial que ia receber uma homenagem em Moscou, já nos anos 1990, e para descansar da viagem se senta à mesa de um café na estação de trem. Uma jovem atendente pede para ele se retirar, pois aquela cadeira estava reservada aos clientes. O que a geração dessa atendente fez de grande? O que pensar de um ex-soldado que defendeu com coragem uma posição militar que depois se tornou mero ponto turístico; um homem que lá viu morrer dezenas de seus colegas por uma Pátria que nem sequer existe mais? Esse homem pôs fim a sua vida jogando-se sob um trem em movimento. E que tal o desespero de um general de alto escalão do regime, que apoiou o golpe de Estado de 1990 que tentou impedir que Boris Yeltsin assumisse o poder, e assim impedir o desmoronamento do Império Soviético? Uma vez que seu país não existia mais, deu fim à própria vida.

É impossível ler o livro de Svetlana Alexievitch sem sentir uma ponta de dó dessa gente honesta que deu tanto por um país e que se viram traídos. Como deve ser viver a vida toda num Grande País e descobrir abruptamente que era tudo mentira?  E pior que isso, viver uma transição atabalhoada de um sistema socialista para um sistema de mercado, ao mesmo tempo em que o país se fragmentava, o sistema político se reinventava. Nos anos 1990, uma mulher encontrou enfim emprego na casa de um russo que ficou milionário na transição. Ela afirma a Svetlana Alexievitch: “Eu não sei viver ao lado dessas pessoas. É insultante. Humilhante. E eu não consigo mais mudar. Eu vivi tempo demais no socialismo. Hoje, nós vivemos melhor, mas a vida é mais nojenta”.

Ideologia

Não que o livro seja uma apologia ao socialismo, e na verdade os depoimentos contidos no livro nem sequer são versões ignorantes ou adocicadas dos horrores soviéticos. Todo mundo que Svetlana Alexievitch entrevista fala abertamente sobre os horrores da repressão, dos campos de trabalho forçado, dos expurgos… Seria ridículo negá-lo depois de tudo o que aconteceu: já nos anos de Krutschev procedeu-se a uma “de-Stalinização” da União Soviética, com a publicação de muitos relatos de sobreviventos do Terror stalinista. O ex-prisioneiro político Alexander Soljenitsine publicou seu primeiro livro nessa época, e rapidamente tornou-se uma figura respeitada e conhecida no país e no estrangeiro. Mas ao que parece Stalin somente se tornara o bode expiatório para horrores que continuavam ocorrendo no país, e a prova maior disso é que o próprio Soljenitsine teve de exilar-se nos anos 1970 após a KGB descobrir que ele estava escrevendo um relato sobre a repressão na União Soviética, que se tornou o monumental O Arquipélago Gulag.

N’O Arquipélago Gulag, Alexandre Soljenitsine deixa claro que sua ojeriza ao sistema soviético deriva em grande parte do fato de ele ter sido feito vítima dele. Afinal, ele próprio era um dos “filhos da revolução”, a primeira geração nascida no novo país, educado como bom marxista-leninista e um convicto defensor do socialismo! Por que esse socialista promissor se tornou uma das vozes mais demolidoras do sistema, denunciando suas injustiças, sua hipocrisia, sua lógica torta? A resposta é esse clássico de mais de mil páginas (do qual só li as duas primeiras partes…). Como se isso não bastasse, Soljenitsine também voltou-se à religião e denunciou as barbaridades cometidas contra a Igreja Russa pelo regime soviético.

Durante os anos 1980, com a perestroika e a glasnost, o Arquipélago Gulag já circulava na União Soviética, e seu autor é um personagem presente em quase todas as entrevistas do livro de Svetlana Alexievitch. Os soviéticos, cujas oportunidades de entretenimento eram severamente limitadas, eram vorazes leitores e conversadores incansáveis. Uma das nostalgias que perpassam o livro é a das conversas “de cozinha”: os papos longos regados a vodca e tabaco que se estendiam pela madrugada em quase todas as famílias russas, sobre política, literatura… Note-se que essa cultura da cozinha data dos anos 1960, quando os apartamentos familiares passaram a ter cozinhas privadas, “nas quais nós podíamos criticar o poder e sobretudo, não ter medo, pois estávamos conversando entre nós.”

Criticar o poder sim!, mas desejar o capitalismo? Almejar o fim da União Soviética? Aceitar a economia de mercado, a propriedade privada, o poder do dinheiro, a desigualdade? As razões para não gostar do capitalismo são várias, e elas são basicamente todos os clichês que um aluno de Ensino Médio é capaz de recitar no Brasil dos dias de hoje. Elas ressurgem na boca dos saudosistas da URSS com mais peso e profundidade, mas nem por isso de forma mais convincente. Afinal, é enternecedor ver alguém deprimir por ver o seu país, a União Soviética, desmoronar; é triste ver a angústia de alguém obrigado a reconhecer a derrota de seus nobres ideais socialistas. Mas o que dizer dos milhões que tiveram de perecer porque não estavam de acordo com esses ideais? E o que dizer dos milhões que tiveram de perecer, apesar de serem bons comunistas, simplesmente porque o triturador de carne humana do socialismo precisava continuar rodando?

É triste acreditar numa utopia, batalhar a vida toda por ela, e vê-la destruída do dia para a noite. Mas o que dizer de quem porta uma utopia que implica esmagar aqueles que não estão de acordo? Será que o problema era somente um homem, Stalin, como queria fazer crer a propaganda soviética de Krutschev? Claro que não, pois não era Stalin quem denunciava os vizinhos e parentes, nem era Stalin quem esmagava os testículos dos prisioneiros durante um “interrogatório”, nem era Stalin quem roubava dos zeks, os prisioneiros políticos, sua cota de comida, de água, sua correspondência, seus objetos pessoais. Ele contou com a colaboração de muita gente, que continuaram prestando seus fieis serviços para muito além da morte do Grande Líder.

O totalitarismo soviético sabia extrair dos homens o pior que neles há, e repaginar a crueldade com o discurso do bem, da igualdade e da paz. Como isso foi possível? Que tipo de doença mental foi capaz de turvar a visão de tantos homens e mulheres, tanto na União Soviética quanto no mundo livre ocidental, para aplaudir o regime soviético? E como foi possível levar a cabo tantas mortes, prisões, torturas, migrações forçadas de povos inteiros, perseguições étnicas, repressões religiosas, além da proverbial incompetência administrativa que culminou em fomes e desastres ecológicos? A resposta, para Alexander Soljenitsine, está em uma palavra, “ideologia”:

“Ideologia – eis o que confere à maldade a sua almejada justificação, e o que dá ao malfeitor a necessária força e determinação. Ela é a teoria social que o ajuda a fazer seus atos parecerem bons ao invés de maus, tanto a seus olhos quanto aos olhos dos outros, de tal maneira que ele não ouvirá reprimendas ou críticas, mas sim receberá elogios e honrarias. Foi assim que os agentes da Inquisição fortaleceram sua vontade: em nome da Cristandade!; os invasores de povos estrangeiros, em nome da grandeza de sua Pátria!; os colonizadores, em nome da civilização!; os nazistas, em nome da raça!; e os Jacobinos, em nome da igualdade, da fraternidade e da felicidade das gerações futuras.”

De URSS à Rússia moderna

 A segunda parte do livro de Svetlana Alexievitch se chama “A Fascinação do Vazio”, e trata do período pós-soviético, do trauma terrível que representou a fragmentação da União Soviética em repúblicas nacionais, e da ascensão de um nacionalismo russo hoje encarnado na figura do presidente Vladimir Putin. De fato, o livro proporciona uma leitura quase mítica da mentalidade russa, na qual o surgimento de um líder como Putin, com traços autoritários e nacionalistas, não possui nada de surpreendente. Ele encarna essa visão de “grande País”, pelo qual se devem realizar grandes sacrifícios. Ele é o novo czar, tal como Stalin foi um czar vermelho. Um líder reprochável por esse ou aquele defeito, mas ainda assim um “nation-builder”, um homem que faz grandes coisas.

A União Soviética dava a seus cidadãos um (falso) orgulho de pertencer a um projeto moralmente admirável e economicamente factível. Era uma nação de muitos povos e idiomas, em que as diferenças de nacionalidade não importavam (o próprio Stalin era da Geórgia!) e onde imperava a igualdade social. Já a Rússia nascente era um país envergonhado, caótico, cheio de feridas e redescobrindo seu passado. As Repúblicas que surgiram em sua periferia (Azerbaidjão, Tadjiquistão…) degringolaram rapidamente para a guerra civil, a limpeza étnica, e a ditadura. Do dia para noite o grande país sucumbiu, e com a mesma velocidade o homem soviético, em teoria tão solidário e humano, se converteu num genocida. Uma sobrevivente desses conflitos étnicos que se seguiram à queda da URSS confessa a Svetlana Alexievitch: “eu vivi a maior parte da minha vida no socialismo e hoje eu percebo a qual ponto nós idealizávamos o homem!”. Parte das entrevistas de Svetlana é consagrada aos imigrantes tadjiques em Moscou. Ontem, compatriotas, hoje estrangeiros, discriminados e mal-quistos. Sobreviventes de uma catástrofe humanitária, têm de se sujeitar a abusos trabalhistas, ao racismo e à dureza da pobreza urbana.

Quanto Vladimir Putin afirmou que o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século XX, gerou revolta e atraiu críticas para si. Como pode alguém lamentar o colapso de um regime totalitário? Mas lendo o livro de Svetlana Alexievitch, essa frase do presidente russo ganha outro sentido, e inclusive começa a fazer sentido. Putin não se referia ao comunismo em si, ou às qualidades do regime soviético por elas mesmas: ele falava do rastro de tragédia que esse evento deixou na vida dos seus cidadãos. Da matança, do gansterismo, do desequilíbrio político e do trauma psicológico, fenômenos retratados em primeira mão e em vivas cores no livro de Svetlana Alexievitch.

O saudosismo de fazer parte de um grande país e de um grande destino é uma nota recorrente no livro de Svetlana Alexievitch, e parece também ser um ponto crucial da “alma russa”. O próprio Soljenitsine, insuspeito de simpatizar com regimes autoritários, não era exatamente antipático à figura de Vladimir Putin. Mas é certamente errado afirmar que a Rússia é uma terra de um povo saudosista, nacionalista e autoritário. O livro tampouco passa essa impressão, muito embora os entrevistados selecionados por Alexievitch sejam, via de regra, pessoas com profundas reservas ao capitalismo russo.

Claro que há na Rússia movimentos liberais que se opõem às derivas autoritárias do atual governo, assim como o governo autoritário da Bielorrússia recebe suas devidas críticas no livro de Alexievitch, que vive em Minsk. A própria Alexievitch é vista como uma intelectual “pró-Ocidente” e não pode ser acusada de apologia ao comunismo ou ao totalitarismo sob o qual viveu. Impossível de ser resumido em uma posição pró ou contra, “O fim do homem soviético” é uma investigação em múltiplas vozes de um tipo de mentalidade que por décadas foi sendo construído, e que do dia para noite se tornou um pária: o tal “homem soviético”. Os protagonistas do livro são as pessoas “comuns” que viveram e vivem as transformações de seus país, e nos dão uma versão tocante e íntima da ascensão e queda do “homem soviético”.

Livro “O fim do homem soviético”, Svetlana Alexievitch, Companhia das Letras https://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14084

Alípio Ferreira

Formou-se em economia pela EESP-FGV, onde desenvolveu sua paixão por números primos e poesia alemã. Foi editor-chefe da revista Gazeta Vargas, associação cultural formada por alunos das escolas de Administração, Economia e Direito da FGV-SP. Escreveu um artigo sobre plebiscitos suíços no Valor Econômico e foi funcionário público. Almeja glória e poder para todo o sempre. Hoje é mestrando em economia na Universidade de Tilburg, nos Países Baixos. Escreveu para o Terraço Econômico entre 2014 e 2017.
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