De acordo com recente estudo publicado pelo Banco Mundial em 2017 [1],as despesas governamentais cresceram em todos os níveis educacionais entre 2000 e 2014 no Brasil. Em particular, o gasto por aluno dividido pelo PIB per capita passou de 11,9% em 2002 para 21,8% em 2014. Em 2014, o Brasil como um todo passou a gastar aproximadamente 6% do PIB com educação pública, mais do que a média da América Latina (4,6%) e os países da OCDE (5,5%).
No entanto, apesar desse substancial aumento nos gastos, o mesmo estudo mostra que os resultados em termos de melhoria na educação foram decepcionantes. Ao se comparar as notas do PISA em Matemática do Brasil com seus pares em termos de despesas governamentais com educação, constata-se que ficamos aquém dos demais. Em resumo, gastou-se muito, mas obteve-se pouco resultado. A ineficiência de nossas escolas também se reflete nas elevadas taxas de reprovação (quase 40%) e evasão escolar (cerca de 25%), principalmente no Ensino Médio. Afinal, não é difícil entender o dilema do adolescente. Entre ficar numa escola que pouco lhe agrega ou abandoná-la para começar a adquirir experiência no mercado de trabalho, por mais restritas que lhes sejam as oportunidades de emprego, é razoável imaginar que ele opte pela segunda opção.
O evidente fracasso do establishment educacional brasileiro suscita o debate que, para variar, já é velho nos países desenvolvidos, mas que aqui no Brasil ainda está na infância: o Sistema de Vouchers, ou “Vale Escola”. Como é de conhecimento dos leitores deste Estado da Arte, nesse sistema o Estado torna-se apenas o financiador dos serviços de educação. Os recursos financeiros podem ser destinados às famílias em forma de um “vale” cuja validade é exclusiva para serviços de educação continuada, ou são transmitidos diretamente às escolas remunerando-as de acordo com o número de matrículas. Este sistema opõe-se ao sistema tradicional (vigente no Brasil), em que os governos (de alguma esfera) tanto financiam quanto gerenciam a operação das escolas do início ao fim: constroem ou locam o prédio, as salas, contratam professores, criam e gerenciam seu sistema de previdência, adquirem insumos e materiais, fazem a gestão das atividades pedagógicas e determinam as práticas pedagógicas.
O debate conceitual sobre qual seria o melhor dos sistemas educacionais se estende há décadas. O defensor mais ilustre e talvez mais importante dos vales foi o ganhador do prêmio Nobel de economia, Milton Friedman. Para Friedman[2] (2015), há dois argumentos em prol do sistema: em primeiro lugar, a sua distribuição criaria um “quase-mercado” de educação, uma vez que não são só as famílias rica (que podem pagar por uma escola privada), mas também as famílias pobres poderiam escolher em qual escola colocar seus filhos. Concomitantemente, haveria o surgimento de competição sadia entre as escolas pelos alunos e recursos. A maior autonomia dos pais e a concorrência entre as escolas faria com que os incentivos estivessem alinhados para uma melhor e mais eficiente provisão de serviços educacionais, o que impactaria positivamente na aprendizagem dos alunos. Em segundo lugar, escolas privadas, por serem menos engessadas do que escolas públicas, teriam mais liberdade para inovar e descobrir práticas pedagógicas mais eficazes, tanto quanto adotar práticas de gestão que se melhor adaptem a realidade das famílias que atendem.
Do outro lado, os críticos desse sistema argumentam que tal organização agravaria as desigualdades entre alunos. Enquanto os alunos mais habilidosos migrariam para boas escolas privadas, os alunos com mais dificuldades ficariam para trás, seja em escolas públicas ou privadas de baixa qualidade. A segmentação desses dois grupos agravaria o problema de aprendizagem do grupo de alunos menos hábeis por dois motivos. Em primeiro lugar, existiria o efeito nocivo dos “pares”, uma vez que, ao perderem o contato com colegas com maior rapidez de aprendizado haveria uma redução no ritmo de aprendizado dos remanescentes. Em segundo lugar, se o custo de ensinar alunos com mais dificuldade for maior, isso acabaria aumentando o custo médio das escolas que acabarem ficando com eles. Tal efeito da política de Vales poderia resultar em uma situação em que, embora alguns alunos melhorem seu desempenho escolar, outros acabem piorando e, portanto, o efeito líquido para os jovens como um todo poderia ser negativo.
Diante desse impasse teórico, a discussão acadêmica a respeito do sistema de Vales migrou rapidamente para a investigação empírica. Surgem, então, novos problemas. A primeira dificuldade que se encontra quando se deseja avaliar empiricamente os resultados da política de voucher é saber de que tipo de voucher estamos falando? Em sua recente survey sobre os resultados dos programas de voucher ao redor do mundo, Epple, Romano e Urquiola (2017) documentam uma variedade enorme de tipos de programas. Existem aqueles executados em larga escala (como no Chile, Dinamarca, Holanda e Nova Zelândia) que englobam países inteiros ou contemplam centenas de milhares de alunos. Existem também programas de pequena escala (diversos distritos e cidades dos Estados Unidos, Colômbia e Índia) que, em geral, se restringem a uma pequena região e são focalizados, isto é, são disponibilizados para alunos pobres ou provenientes de escolas públicas ruins.
Cada tipo tem suas vantagens e desvantagens. Programas de larga escala são, em geral, difíceis de avaliar, uma vez que não se dispõe de um contrafactual adequado com o qual compará-los. Por outro lado, são apenas em aplicações de larga escala que a hipótese de desenvolvimento de um “quase-mercado” educacional, resultando em um aumento na inovação e variedade de métodos de ensino, poderia ser avaliado. Os programas de pequena escala, muito embora, não sejam capazes de provocar revoluções educacionais, como pretendia Friedman (2015), possibilitam investigações mais detalhadas acerca do impacto que uma política de voucher tem no aprendizado dos alunos participantes. Os trabalhos que testam os efeitos empregam técnicas econométricas que exploram o carácter tipicamente aleatório do programa na admissão dos alunos.
Outra questão da qual programas divergem, de acordo com Epple, Romano e Urquiola (2017), diz respeito ao grau de discricionariedade que as escolas que participam do programa podem contar para selecionar os alunos. Se elas podem exigir testes de admissão ou não e se elas podem exigir quantias adicionais na mensalidade (que excedem o valor do voucher) ou não. Se a seleção de alunos bolsistas feita pelas escolas privadas for a mesma que ela faz para alunos normais, então é possível que ocorra o fenômeno que os críticos do programa apontam e que é conhecido na literatura como “cream skimming”. As escolas privadas poderiam escolher apenas os melhores e mais motivados alunos, características que, em geral, tendem a estar associadas a renda e melhor background familiar. Nesse caso, a política focalizada estaria, pelo menos em parte, “errando o alvo”. Os alunos mais vulneráveis, aqueles que talvez fossem os que mais se beneficiassem do programa, não poderiam desfrutar do programa da mesma forma que os menos vulneráveis.
Nesse ponto, os programas de larga apontam para a mesma direção. Tanto no Chile [3] quanto na Suécia [4] as evidencias indicam que há uma grande migração e interesse de indivíduos de renda média, enquanto na Suécia os dados sugerem que as primeiras a se instalar selecionam os alunos mais habilidosos para entrar. Essas evidências provocam questionamentos a respeito dos efeitos indiretos do programa sobre os alunos que permanecem nas escolas públicas. Uma das grandes preocupações é que os estudantes não selecionados estejam fadados a ficar em escolas públicas – por não terem sido aceitos em nenhuma escola privada participante do programa – ou alocados em uma escola privada de qualidade inferior.
Para complicar ainda mais a discussão, os efeitos de segregação podem ser amenizados se as escolas públicas mudarem seu comportamento na presença da nova concorrência (escolas que admitem vouchers). A literatura empírica documenta algo nesse sentido. Na Suécia, por exemplo, nas regiões em que havia maior disponibilidade de vagas via Vales percebeu-se também uma melhora no desempenho global (GPA) dos alunos das escolas estatais, bem como em testes padronizados. Já nos programas de pequena escala avaliados no Canadá [5] e Estados Unidos [6], uma série de características foram percebidas. Primeiramente, a proximidade das escolas privadas com vales afetava o desempenho das escolas estatais nos testes padronizados. Segundo, que as escolas públicas passaram a alocar mais recursos nas séries mais próximas dos testes padronizados, haja vista que o baixo desempenho nesses testes por dois anos consecutivos na escola tornaria os estudantes elegíveis aos Vales no ano seguinte. Em terceiro, verificou-se também um aumento na proporção de escolas públicas com graus mais elevados nos testes um ano após a entrada do programa de Vale na região.
Saindo dos efeitos indiretos, pode-se discutir qual os resultados sobre a qualidade acadêmica dos estudantes que participam do programa. Nesse tópico, há que se separar os tipos de efeitos para identificar melhor os resultados. Em termos de efeitos médios para os participantes, os programas de Milwaukee [7] (EUA) e Bogotá e Cali 8] (COL) apresentaram aumento nas notas médias dos alunos em testes padronizados de 0,3-0,5 desvios-padrão (d.p.) e 0,21-0,22 d.p., respectivamente. Já os programas de New York [9] (EUA), Washington D.C. (EUA) e Dayton (EUA) apresentaram resultados apenas dentre os estudantes afro-americanos, mas não em termos de notas médias de todos os participantes. Outro resultado digno de nota é o aumento das matrículas no Ensino Superior para os egressos dos programas de Washington [10] D.C. (EUA) e New York [11] (EUA), nos quais foram verificados aumentos de 12% a 21% e 7%, respectivamente.
Outra característica relevante a respeito dos programas diz respeito ao valor do voucher. Se ele for pequeno demais e não puder ser completado pela família, poucas escolas terão o incentivo de entrar no programa. As poucas que entram podem ser qualidade ruim. Um aumento no valor das bolsas para famílias pobres no Chile impactou positivamente no aprendizado [12].
A questão do valor da bolsa levanta outro problema, que é o controle de qualidade envolvido na seleção de escolas participantes. Embora o mercado tenha capacidade de disciplinar escolas de péssima qualidade – fazendo-as entrar em falência por causa da concorrência – ainda sim existe uma grande assimetria de informação entre os pais que matriculam os filhos e a qualidade da escola. Talvez os pais descubram tarde demais que a escola é ruim [13], revelando apenas posteriormente terem pago custos elevados demais.
A ampla variedade, design e escala de programas de voucher faz com os resultados identificados devam ser avaliados com parcimônia. Não é prudente utilizar um caso em particular seja para defender a existência do programa, seja para argumentar contra sua implementação. Os resultados sistematizados por Epple, Romano e Urquiola (2017) mostram que os diversos programas de voucher variam bastante nos resultados em função das mudanças nas características do design.
Em suma, o sistema de voucher, apesar de ser considerado uma política “inovadora” no Brasil, já foi implementado em diversos lugares do mundo, sob diferentes designs, em países com os mais diferentes contextos. O programa de Bogotá e Cali, por exemplo, existiu na Colômbia entre 1992-1997 com resultados positivos durante o auge da escalada da guerra entre narcotraficantes que assolou o país. Em termos de política pública ou iniciativas privadas de sistemas de voucher (como o caso de Andhara Pradesh (IND)), o fato é que os exemplos internacionais sugerem que sua aplicação no Brasil deve começar com programas-piloto, os quais sejam passíveis de análises com metodologias robustas. O que certamente não podemos fazer é continuar alocando cada vez mais nossos escassos recursos em modalidades de ensino que teimam em não funcionar. Pode parecer clichê, mas não custa lembrar que repetir a mesma coisa esperando resultados diferentes é a definição de insanidade.
Guilherme Stein é Doutor em Economia, EESP/FGV e pesquisador da FEE Gabriel Picavêa Torres é Mestre em Economia, PPGE-EA/UFRGS