14 perguntas e respostas sobre a crise do abastecimento…

1. QUAL A ORIGEM DA GREVE DOS CAMINHONEIROS E DA CRISE DE ABASTECIMENTO QUE A SUCEDEU? Um aumento contínuo dos preços dos combustíveis desde o fim do ano que se intensificou nos últimos meses.

2. QUANTO DESSA CRISE PODE SER ATRIBUÍDA À POLÍTICA DE ESTÍMULO CREDITÍCIO DO BNDES (PROCAMINHONEIRO E FINAME) À COMPRA DE CAMINHÕES? Não se sabe. Há um mecanismo causal entre o estímulo à compra de caminhões e a queda do preço do serviço de frete, bem como do poder de barganha de quem oferece o serviço. Que uma coisa afete a outra é uma conjectura válida. Mas saber quanto disso explica a greve dos caminhoneiros e a crise que se desdobrou dela é um exercício que requer análise econométrica mais detlahada de uma série de dados. Provavelmente são múltiplas causas.

3. QUE OUTRAS CAUSAS PODERIAM EXPLICAR ESSES EVENTOS? Dois candidatos óbvios são os seguintes.

(1) O aumento do nível de preço do petróleo (porque os caminhoneiros muito provavelmente não têm um problema com as flutuações diárias em si — se as flutuações fossem tais que se cancelassem entre si ao longo do mês, digamos, dificilmente se incomodariam).

(2) A política “flat” de preço das empresas de frete (i.e., invariante ao preço do diesel). Essas empresas/caminhoneiros autônomos ainda não se adaptaram ao fim da política de congelamento de preço dos combustíveis da gestão petista e à natureza internacional e volátil do preço do insumo principal dos combustíveis fósseis – refletida agora na nova política de preços de quem monopoliza o refino, a Petrobrás.

4. POR QUE O PREÇO DA GASOLINA E DO DIESEL SUBIRAM TANTO RECENTEMENTE? Por causa dos aumentos no preço do barril de petróleo. Esses aumentos foram provocados, em essência, (1) por aumentos na taxa de câmbio (R$ por unidade de dólar americano, a moeda usada nessas transações) e (2) por tensões políticas no Irã e na Venezuela, dois grandes produtores de petróleo (juntos, eles são responsáveis por cerca de 30% das reservas mundiais de óleo cru, segundo dados de 2016 da OPEC).

5. POR QUE O AUMENTO DO CÂMBIO AFETA O PREÇO DA GASOLINA E DO DIESEL? O BRASIL NÃO É AUTOSSUFICIENTE? O Brasil não é autossuficiente. Cerca de 12,5% da gasolina, e 24,7% do diesel, consumidos domesticamente são importados do resto do mundo. Como essas transações são feitas em dólares americanos, a subida do preço da moeda dos EUA aumenta o custo desses combustíveis em moeda doméstica.

6. POR QUE O PREÇO DOS COMBUSTÍVEIS VENDIDOS NO BRASIL ESTÁ MUDANDO COM TANTA FREQUÊNCIA? Porque a Petrobrás resolveu, depois que Temer assumiu e mudou a direção da empresa, adotar uma nova política de preços. Nessa nova política, o preço dos combustíveis refletiria diariamente a cotação (em dólar) do barril de petróleo no mercado internacional.

7. A POLÍTICA DE PREÇOS ATUAL DA PETROBRÁS ESTÁ ERRADA? Não. Preços têm uma função sinalizatória importante. É crucial para uma alocação eficiente de recursos que reflitam os custos de produção/oportunidade. Qualquer regulação de frequência de ajuste do preço dos combustíveis de modo a refletirem o preço do seu principal insumo é custosa para a empresa e nos leva, inevitavelmente, para uma discussão sobre custos e benefícios de “suavizar”/subsidiar preço de combustíveis – uma discussão enormemente dificultada pelo fato de que seu principal acionista é também, na prática, controlador do órgão regulador.

8. ESSA POLÍTICA É UM “FUNDAMENTALISMO DE MERCADO”? TEM ALGUMA FORMA ALTERNATIVA DE FORMAR PREÇOS QUE NÃO GERE ESSAS FLUTUAÇÕES MAS TAMBÉM NÃO PREJUDIQUE A EMPRESA? Não é. Essa é uma política de que protege as receitas da empresa, protege as receitas tributárias do próprio governo (e, portanto, o financiamento de seus gastos, muitos de natureza social) e evita distorções na matriz energética do país.

É possível conceber, obviamente, várias outras regras de apreçamento que promova alguma suavização dos preços domésticos dos combustíveis – que distribuem no tempo as mudanças de preço com custos inevitáveis que são ou internalizados pela empresa ou ressarcidos, em última instância, pelo contribuinte que é quem financia o acionista principal (ou uma mistura dos dois). Há inevitavelmente aqui um conflito entre acomodar a aversão à “saltos” no preço do combustível por parte dos consumidores e a maximização de receita da empresa.


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9. A GASOLINA E O DIESEL VENDIDOS NO BRASIL SÃO CAROS EM RELAÇÃO AO QUE SE PAGA EM OUTROS PAÍSES? Não. No caso da gasolina, por exemplo, está na posição 67 (mais cara) em um ranking com 167 países. http://epbr.com.br/o-preco-da-gasolina-e-caro-no-brasil/

10. “A GASOLINA E O DIESEL SÃO CAROS POR CAUSA DOS IMPOSTOS”. É VERDADE? Sim. Esse é um pedaço do custo. Matérias na imprensa estimam em cerca de 55% a parcela de impostos, contribuições e taxas no preço final ao consumidor. Note, todavia, que isso não é exclusividade dos combustíveis – 1/3 do preço de boa parte do que é vendido no Brasil é imposto.

Mas é bom ter emmente que parte da tributação que incide sobre combustíveis fósseis é de natureza “pigouviana”, isto é, é um imposto que visa corrigir em alguma medida as externalidades (ambientais, sobretudo) causadas pelo consumo desses combustíveis. Logo, parte desse imposto é economicamente desejável mesmo.

11. “DONOS DE POSTOS ESTÃO SUBINDO O PREÇO DA GASOLINA POR CAUSA DA GREVE”. ISSO É INJUSTO? FAZ SENTIDO? “Injustiça” é um conceito meio opaco, alienígena, em economia. Logo, esse é um tipo de julgamento que a profissão não costuma fazer. Dito isto, aumentos bruscos de preço em resposta a crises de abastecimento provocados por desastres naturais ou, no caso dos combustíveis em discussão, por greves e bloqueios de estrada são relativamente comuns – um fenômeno conhecido como “price gouging”.

A subida de preço faz todo sentido econômico. Não é exatamente claro em cada caso quanto do aumento de preço é uma (necessária) compensação pela maior dificuldade de fornecer o bem (cuja cadeia de distribuição foi afetada pelo evento desastre ou greve), e quanto é produto de “oportunismo” de ofertantes transitórios que não estão preocupados com as repercussões de médio prazo para o futuro do negócio que a insatisfação com a subida de preço entre muitos consumidores pode ter.

De toda forma, o fato é que qualquer resultado será insatisfatório em alguma dimensão – bens que não mudam de preço mas que desaparecem dos locais de venda (demanda alguma sendo atendida) ou bens que estão sendo vendidos mas a preços bem maiores (gerando insatisfação de uma forma – preço maior – ou outra – alguma demanda “preço-represada”).

12. CONTROLAR PREÇOS É UMA BOA SOLUÇÃO? De forma alguma. Como aludido na questão acima, qualquer impedimento ao livre funcionamento do sistema de preços (no caso, ao aumento de preço) vai deixar sem solução um problema de escassez causado pelo deslocamento repentino de demanda diante de uma oferta dada de mercado – cujos produtores podem aumentar as quantidades vendidas mas não aos preços vigentes antes do evento (desastre/greve).

O gráfico abaixo no post – curvas de oferta e de demanda que indicam as intenções de compra e venda de consumidores e distribuidores de combustível para vários níveis de preço – ilustra essa ideia.

13. DAR SUBSÍDIO E OUTROS BENEFÍCIOS É UMA BOA FORMA DE RESOLVER A CRISE? Não. Não há uma razão econômica para que a elevação de custos com combustível provocado pela alta do preço do petróleo seja repassada de forma indiscriminada, e “por fora” do mecanismo de preço, para o contribuinte. Qualquer subsídio é ruim, em essência, por três razões:

(1) “Desfaz” ao menos parte da correção de externalidade a que serve a tributação sobre esse tipo de consumo.

(2) Distorce os padrões de consumo de combustíveis (logo, a matriz energética do país), privilegiando o consumo de combustíveis fósseis em detrimento de opções ecologicamente mais amigáveis.

(3) “Socializa” custos de forma provavelmente regressiva — dado que são programas sociais e de investimento os candidatos mais prováveis de serem cortados para acomodar os recursos com o programa de subsídio.

14. O QUE A AGÊNCIA REGULADORA DO SETOR (ANP) PODE FAZER? Fora a questão de possível “captura” da agência regulatória pelo regulado (Petrobrás), dado a influência óbvia do acionista principal (a união federal) sobre a direção da agência, a regulação de monopólios desse tipo é conhecidamente difícil por causa de dois tipos de problemas.

Um é o problema de “inconsistência temporal” do regulador: ele gostaria de garantir uma certa taxa de retorno para incentivar a Petrobrás, ex-ante, a fazer uma série de investimentos, mas uma vez que esses investimentos são feitos, o regulador tem um incentivo a reduzir essa taxa de retorno (como quando a gestão petista impôs controle de preço dos combustíveis como forma de ajudar no controle da inflação).

O outro é o problema de “risco moral” do regulado: antecipando o problema de inconsistência temporal do regulador, a empresa toma uma série de decisões, não-observáveis pelo regulador, visando a redução de gastos – o que frequentemente provoca uma deterioração da estrutura e da qualidade do produto/serviço oferecido.

A solução usual passa por uma combinação de adoção de “mecanismos de compromisso” com uma certa taxa de retorno do negócio e o estabelecimento de critérios de eficiência/produtividade.

O quanto de um ou outro problema vai ser atacado de fato vai depender da atitude mais ou menos amigável à empresa da classe política no poder. É possível dizer, por exemplo, que os anos petistas no governo federal foram pouco amigáveis à Petrobrás (o que tende a ser pior para o problema de inconsistência temporal), ao passo que os anos recentes da gestão Temer estão sendo mais amigáveis à empresa (o que tende a ser pior para o problema de “risco moral”).

 
Sérgio Almeida

é professor de Economia da FEA-USP e PhD em Economia pela University of Nottingham na Inglaterra.

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