Zebras, azarões e bolhas na internet

  • Eu é um outro – Arthur Rimbaud
  • O termo zebra talvez faça parte do cotidiano brasileiro mais em seu sentido figurado que denotativo. Dar zebra é sinônimo de azar, de surpresa, de resultado inesperado, uma vez que o animal não está na lista dos 25 que compõem a cartela do jogo do bicho. Dos jóqueis, vem o termo azarão, de função semântica próxima, significando o cavalo em quem ninguém aposta, aquele em cujas possibilidades de vitória os especialistas menos confiam. Quando o azarão Leicester venceu o campeonato inglês da temporada 2015-2016, pobres dos britânicos, que não tiveram à disposição o léxico que lhes permitisse dizer: deu zebra!

    2016 nos brindou com algumas das maiores zebras e dos maiores azarões na política dos últimos anos. Os votos a favor do Brexit, a vitória de Donald Trump, a rejeição – para posterior aceitação – do referendo de paz na Colômbia e alguns resultados em pleitos municipais no Brasil contrariaram as expectativas de especialistas, de institutos de pesquisa e de setores do mercado. Diversas análises foram produzidas, na tentativa de curar a ressaca dos milhões ao redor do mundo que se perguntavam após cada um desses eventos: como isso foi possível? Ou, mais precisamente: como não fomos capazes de prever isso? Para os apocalípticos, ainda: como deixaram isso acontecer?!

    Para além das muitas explicações envolvendo fatores econômicos, sociais, antropológicos, culturais, demográficos e o que mais a que se tenha direito, uma estratégia de abordagem de nossa frustração com nossa (falta de) capacidade preditiva que me chamou bastante a atenção foi o foco no chamado “viés cognitivo” (cognitive bias). Trata-se de “um padrão de distorção de julgamento que ocorre em situações particulares, levando à distorção perceptual, julgamento pouco acurado, interpretação ilógica, ou o que é amplamente chamado de irracionalidade[1]. Tomemos um exemplo para compreender melhor a definição do conceito: o viés de confirmação (confirmation bias) é a tendência para buscar ou interpretar informação de maneira a confirmar nossas preconcepções e pré-conceitos. Imaginem o seguinte caso: eu acredito que advogados, por conhecerem as imperfeições dos mecanismos de aplicação de leis, cometem mais violações de trânsito do que não-advogados. Por acaso, enquanto eu expunha essa teoria a um amigo na mesa de um boteco, posta na calçada, um carro furou velozmente um farol vermelho. Viramos a rapidamente a cabeça, meu amigo e eu, a tempo de enxergarmos um adesivo na traseira do referido veículo, onde se podia ler as letras O.A.B. “Ahá! Está vendo? Eu disse!”. Que meu advogado infrator esteja perfeitamente na média estatística de outras profissões, pouco me importa: o que me interessava era provar que eu estava certo, confirmar um preconceito, uma teoria, uma superstição.

    Na era da comunicação digital, esse fenômeno é catapultado a proporções globais. Devido a algoritmos escritos para nos mostrar precisamente o que queremos ver, muitas vezes somos levados a crer que nossa crença ou opinião é partilhada….bem, por todo mundo! Se a cada vez que abro meu perfil no Facebook ou minha conta no Twitter dou de cara com variações sobre o tema, com discursos consonantes sobre uma paleta variada de assuntos, é perfeitamente razoável e racional inferir que todos – ou pelo menos a avassaladora maioria – pensam como eu. Minhas visitas ao feed servem apenas para confirmar o que eu já sabia, o que eu já achava.

    Elementar, pessoal, temos um culpado! Alto lá, não tão rápido. Esses algoritmos não causam o viés de confirmação; antes, é a existência do viés de confirmação que motiva a configuração desses algoritmos. No (restrito) âmbito das pessoas interessadas e envolvidas com política, além das graves consequências dessa distorção cognitiva, há um elemento particular digno de nota.

    No decorrer dos debates sobre globalização no século XX, emergiu a frase de impacto pense global, aja local. De origem controversa[2], a frase conclama a nos servirmos da internacionalização e expansão dos meios de comunicação para coletar informações e experiências sem a restrição de fronteiras, de modo que possamos aprender com o mundo e intervir de maneira mais eficiente e qualificada em nossa realidade local – cidade, bairro, rua, escola, ambiente de trabalho, família, etc.

    Uma das revelações das bolhas confirmatórias da internet é que entendemos a frase ao contrário. Impacientes e enviesados demais para nos abrirmos a novas hipóteses, novas experiências e a evidências que nos façam rever posições prévias, o que fazemos não é pensar a partir do mundo, mas projetar nossa perspectiva singular nele; há uma presunção de que meu ponto de vista é universal e que todos concordam comigo – como se sabe, todo mundo concorda que, qualquer pessoa de bem pensa, qualquer ser humano normal acha, etc.

    Para completar a tragédia, invertemos também o outro lado da equação: ao invés de procurarmos trazer um pedacinho de mundo para nosso quintal, estamos empenhados em transformar o mundo num gigante quintal nosso. Em vez de atacarmos um problema local munidos de relatos e dados colhidos a partir de experiências distintas, estamos preocupados em revolucionar a ideia de cidade, transformar o conceito de universidade, inovar na forma de fazer política, o que, no fim das contas, significa uma tentativa retórica de vender nosso mundinho para os outros.

    Na hora de fazer previsões? Bem, todo mundo pensa como eu, enxerga a vida e o mundo como eu, então o resultado só pode ser este. E quando as coisas não acontecem como esperávamos? Bando de ignorantes, como puderam escolher outra possibilidade?! Afinal, o inferno são os outros, como diria um velho filósofo francês[3].

    O grande desafio cognitivo que a atualidade apresenta é a necessidade de ampliar e manter sempre abertas as perspectivas, os diagnósticos e os quadros de análise, para que haja lugar para as múltiplas formas de vida que se manifestam numa sociedade plural e democrática. Sem essa inclusão, será impossível impactar de maneira positiva e satisfatória o cotidiano de pessoas diversas entre si; sem essa inclusão, não há como atingir os fins da política.

    Em vez de presumir que o outro pensa como eu, devo me forçar a ter em mim um pouquinho de outro(s) em mim. Devo olhar para minha visão de mundo, para minha opinião sobre um determinado fato, assunto ou situação e me perguntar: o que está faltando? O que estou deixando de fora? Além de aumentar a efetividade na proposição de ações, medidas e soluções, trata-se de um exercício radical de empatia e alteridade.

     

    Rafael Barros de Oliveira – Colaborador do Terraço Econômico

      [1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Vi%C3%A9s_cognitivo [2] https://en.wikipedia.org/wiki/Think_globally,_act_locally#Origins_of_the_phrase [3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Paul_Sartre

    Rafael Barros de Oliveira

    Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.
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