Desenvolvimentismo no capitalismo de compadrio

O artigo do professor e ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad na edição 129 da Revista Piauí [1] atraiu significativa atenção quando de sua publicação – a postagem na página da revista no Facebook recebeu mais de 1700 likes, número superior à sua média. Alguns leitores viram no texto a repetição do discurso oficial do Partido dos Trabalhadores com pitadas de ressentimento pós-derrota eleitoral, enquanto outros compartilharam o texto em suas redes, tratando-o como excelente relato de memória política.

Mas reduzir o texto a uma coletânea de lamúrias ou a uma descrição perfeita da confusa realidade política nacional não é relevante. Há passagens do artigo que, se isoladas, podem se parecer com uma ou outra dessas classificações.

O que há de mais importante no texto é uma crítica da estratégia desenvolvimentista dos últimos anos. Trata-se de um aceno por não ser uma verdadeira autocrítica das decisões do partido, mas sim uma hipótese inserida em meio a longos parágrafos, mas não levada adiante. Ela se encontra por volta do último quarto do artigo, quando Haddad define dois modelos “ideais” de desenvolvimento para o país: o de FHC, baseado no incentivo à entrada de capital estrangeiro e fé nas vantagens comparativas de determinados setores econômicos (como a agricultura); e o de Lula baseado no incentivo à formação de uma indústria de capital nacional com capacidade de competir no exterior (segundo qualificações do ex-prefeito). O problema, segundo Haddad, é que a estratégia de Lula enfrentaria o risco do patrimonialismo brasileiro ou do capitalismo de laços/compadrio.

Após definir o patrimonialismo segundo as lições de Raymundo Faoro, entretanto, Haddad não se aprofunda na análise do que poderia ter dado errado com o modelo de Lula, passando a criticar o Poder Judiciário em sua tentativa unilateral de resolver problemas políticos. Mas é justamente na avaliação de como deve se dar a estratégia de desenvolvimento econômico do Brasil nos próximos anos, após um período de recessão, que reside a questão mais importante para qualquer proposta política que se pretenda séria.

A despeito da importância do tema, o debate nacional parece travado. O desenvolvimentismo com base na criação de “campeões nacionais” tem recebido constantes críticas, seja pela revelação de delações que atestam que a concessão de crédito barato pelo BNDES muitas vezes endereçava interesses políticos, seja por seu próprio (de)mérito econômico enquanto causador de juros mais altos [2]. Ao mesmo tempo, abandonar o projeto de desenvolvimento da indústria nacional e rezar para que o livre mercado tire o país do subdesenvolvimento parece contrariar a evidência empírica estrangeira consultada [3]. O estímulo à indústria, afinal, foi o caminho de alguns dos últimos países a alcançar destaque no capitalismo global [4].

É nesse ponto que a deixa introduzida por Haddad pode ser aproveitada: o desenvolvimento pelo fomento à indústria (via concessão de crédito ou não) esbarra no patrimonialismo brasileiro, elemento sociológico, e não propriamente econômico. A estratégia da última década de tentar criar campeões nacionais em setores estratégicos ignorou (ou ao menos subestimou) a capacidade de um capitalismo de compadrio enraizado impedir que qualquer ganho econômico fosse efetivamente compartilhado com a sociedade, permanecendo unicamente nos bolsos daqueles com trânsito na esfera política. Nota-se o impedimento à socialização destes ganhos econômicos nos próprios índices de atividade da indústria: após um vertiginoso crescimento a partir de 2003, o setor industrial retornaria aos mesmos patamares verificados neste ano em fevereiro de 2016 [5].

O exemplo mais dramático desse cenário até o momento possivelmente foi a JBS, que após receber montantes elevadíssimos de crédito barato, corromper agentes públicos e causar um terremoto político, simplesmente transferiu seus ativos para fora do país – não sem antes maximizar seus ganhos com operações de câmbio envolvendo um novo gênero de “insider information”.

O Brasil não é socialmente igual aos países asiáticos, que incentivaram suas indústrias por meio de planejamentos econômicos específicos e partindo de estágios de industrialização distintos, ainda que a superação do subdesenvolvimento seja um desafio comum. O problema que se lança, portanto, é: se vale a pena insistir no modelo de desenvolvimento dos últimos anos, como evitar um novo fracasso causado pelo elemento patrimonialista?

“Criminalizar” o BNDES ou outras modalidades de política industrial não me parece vislumbrar grandes perspectivas de desenvolvimento nacional. Por outro lado, abrir as torneiras do crédito e esperar que no final o capitalismo brasileiro será igual ao do mundo desenvolvido se mostrou equivalente a tentar apagar um incêndio com gasolina. Solucionar esse imbróglio do desenvolvimento depende não só de transplantar propostas econômicas para o país, mas também de implementar incentivos a boas práticas empresariais.

É possível que nos próximos anos vejamos uma atenuação dos problemas decorrentes do patrimonialismo por meio da reação de autoridades e empresas que passaram a investir no compliance concorrencial [6] e anticorrupção. Mas a pauta de como desenvolver o país sem esbarrar no patrimonialismo tem a urgência da discussão em debates de presidenciáveis nos próximos anos. Se o modelo vencedor for a manutenção do fomento à indústria, será preciso apresentar um plano de desmonte do capitalismo de compadrio – do contrário, a sociedade continuará sofrendo no futuro próximo.

  Yan Villela Vieira – Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pós-graduando pela Escola de Economia de São Paulo (FGV/EESP)   Notas:

[1] Fernando Haddad, “Vivi na pele o que aprendi nos livros”, disponível em http://piaui.folha.uol.com.br/materia/vivi-na-pele-o-que-aprendi-nos-livros/.

[2] Por exemplo, artigo publicado no Terraço Econômico: Vitor Wilher, “Mais BNDES para alguns, mais juros para todos”, disponível em https://terracoeconomico.com.br/mais-bndes-para-alguns-mais-juros-para-todos.

[3] Esse argumento foi recentemente desenvolvido em artigo publicado na Folha: Laura Carvalho, “Criminalizar BNDES não é caminho para expansão inclusiva e sustentável”, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2017/06/1889033-criminalizar-o-bndes-nao-e-caminho-para-expansao-inclusiva-e-sustentavel.shtml .

[4] Esse argumento se encontra no imaginário econômico compartilhado, estando presente, por exemplo, no recente diálogo de Samuel Pessôa com um interlocutor anônimo publicado na Folha: “Um debate sobre Previdência”, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2017/06/1890117-um-debate-sobre- previdencia.shtml.

[5] Ver os dados publicados pela Confederação Nacional da Indústria em: http://termometro.portaldaindustria.com.br/indicador/producao.

[6] A articulação recente de empresas e autoridades para disseminação do compliance tem chamado a atenção da comunidade jurídica, tendo sido recentemente descrita em artigo de Eduardo Caminati Anders e Guilherme Teno Castilho Missali, “Programa de Compliance Concorrencial”, disponível em https://jota.info/artigos/programa-de-compliance-concorrencial-22022017.

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