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Depois de meses preparando o mercado, o Federal Open Market Committee (FOMC), análogo ao nosso COPOM, finalmente anunciou, nesta quarta-feira (20), que vai começar a reduzir o balanço do Federal Reserve (FED) a partir do dia 31 de outubro.
O Comitê, que determina a direção da política monetária dos Estados Unidos, havia declarado seu plano em junho deste ano, mas só agora explicitou uma data para o início da execução. Será efetuada a chamada desflexibilização monetária, isto é, a reversão do longo processo de afrouxamento quantitativo (QE, de quantitative easing) iniciado com a crise financeira de 2008. O processo também inclui a gradual subida da taxa de juros da economia americana.
Diante de um cenário de redução da capacidade ociosa, com o PIB previsto para crescer mais de 2% e taxa de desemprego em baixa desde 2010, o rumo que o FED tomará poderá ser essencial para conter o risco de inflação futura.
O QE foi a saída que o FED e outros Bancos Centrais de economias desenvolvidas encontraram para estimular suas economias quando as taxa básicas desses países foram a zero. As tradicionais operações de mercado aberto já não funcionavam: comprar mais títulos de curto prazo do tesouro americano não serviria para abaixar o nível dos juros nominais de curto prazo, que já estavam em seu limite inferior por razões teóricas e práticas.
Então, para tentar impulsionar o consumo e o investimento, o FED adotou uma tática não convencional inspirada na luta do Japão contra a deflação no início dos anos 2000, o QE, (em português, afrouxamento quantitativo). A estratégia consiste em comprar papéis de longo prazo de modo a diminuir as taxas de juros a eles atreladas e assim estimular a injeção de dinheiro na economia.
O efeito prático destas operações é reduzir a inclinação das curvas de juros e, assim, encurtar a diferença entre os juros pagos por estes papéis e os pagos por Treasury Notes de maturidade mais longa (spread). Essa característica do QE permitiu ao FED escolher quais mercados incentivar. As aquisições se concentraram em ativos colateralizados por conjuntos de hipotecas (Mortgage Backed Securities ou MBS) e em títulos da dívida do governo americano (Treasury Bonds), além de títulos de dívida corporativa. O objetivo era dar fôlego ao combalido mercado imobiliário e a fundos de pensão, dois segmentos que trabalham com horizontes de tempo mais alongados.
Reduzindo a taxa de juros de longo prazo, o FED afeta diretamente as expectativas dos investidores sobre o retorno dos investimentos. Uma vez que o juro de longo prazo ficará mais baixo por anos, outros tipos de investimentos serão incentivados, abrindo mais espaço para o crescimento.
As compras de ativos foram maciças e o FED mais do que quadruplicou seu balanço, que passou de US$ 1 trilhão para cerca US$ 4,5 trilhões. Mas não basta amor pela teoria, é necessário avaliar os resultados. Se o QE surtiu efeito é uma questão que ainda será respondida por estudos empíricos.
Uma preocupação que não demorou a surgir foram as possíveis consequências inflacionárias. Como o QE ampliou brutalmente a quantidade de dólares circulando na economia americana, o valor da moeda tenderia a cair, ou seja, ela cedo ou tarde acabaria se desvalorizando e o nível de preços sofreria forte pressão. Este tipo de transmissão não ocorre imediatamente, mas qualquer sinal de inflação perto da meta de 2% deveria alarmar os membros do FOMC.
A inflação demorou mais do que o esperado para encostar nos 2%, mas foi o que acabou acontecendo. No final de 2016, a variação anual do núcleo do CPI (índice de preços ao consumidor) chegou a 2.2% e, em reação, a Fed Funds Rate (taxa básica de juros dos EUA) subiu pela primeira vez em 10 anos. Na época, o FOMC não sinalizou se ou quando o QE seria revertido, por receio de que esse movimento causasse choques financeiros de proporções globais. Apenas em junho deste ano foi declarada a intenção de iniciar o que o FED chama de normalização da política monetária, que nada mais é do que a redução de seu balanço através do não reinvestimento de Treasuries e MBS vencidas.
Isso significa que o FED simplesmente vai deixar vencer as dívidas para enxugar a liquidez. Atualmente, todos os papéis que vencem são reinvestidos, de maneira que o balanço permaneça estável.
Para evitar gerar turbulências, o processo de normalização será ordenado, gradual e previsível. Isso porque em outros momentos em que o FED alterou a sua política monetária maneira brusca, houve efeitos colaterais negativos nas outras economias mundiais.
Inicialmente, o FED deixará vencer US$ 6 bilhões de Treasuries e US$ 4 bilhões de MBS durante três meses, sendo o restante reinvestido. A cada três meses, o teto para o valor de papéis que vencerão será elevado. O limite de será de US$ 30 bilhões/mês para as Tresuries e de US$ 20 bilhões/mês para MBS. A estratégia será aplicada a partir do dia 31 de outubro para as Treasuries e a data para as MBS será anunciada dia 16 de outubro.
Há quem diga que o FED não precisaria fazer todo este esforço, apesar de a economia dos EUA estar aquecida e ter atingido algo muito próximo do pleno emprego (4.9% em 2016, com previsão de queda para 4.4% este ano). Alguns economistas suspeitam que o QE apenas mascarou uma profunda deflação e que hoje a inflação teria uma tendência mais baixa do que no período pré-crise. Esta suposição de inflação estrutural mais reduzida não é infundada: os avanços tecnológicos e o outsourcing têm diminuído custos, e a inflação efetiva, que vem sendo baixa há vários anos, afeta diretamente as expectativas de inflação, contribuindo para uma inflação menos expressiva em períodos subsequentes.
Algumas evidências apontam nessa direção. No mercado de Treasury Inflation Protected Securities (TIPS), que são títulos indexados à inflação, observamos que os juros reais de investimentos realizados são bastante baixos, mesmo para TIPS de 30 anos. Além disso, os prêmios de alongamento para Treasuries de 10 anos, títulos pré-fixados que embutem prêmios de risco de inflação, estão caindo para níveis de 1961. Os dois fatos parecem indicar que não há, entre os investidores, preocupação com a inflação no longo prazo.
No entanto, ainda que admitamos a hipótese de inflação futura controlada, há dois importantes fatores a considerar que pesam a favor do plano do FOMC. O primeiro é o risco que o investidor foi incentivado a tomar sob os juros baixos que vigoraram durante os últimos anos. Empréstimos de má qualidade voltaram a se avolumar e uma taxa de juros mais elevada impediria, em parte, que esse risco continuasse a se disseminar. Felizmente, a desflexibilização tem esse efeito, pois cria um vazio na demanda por Treasuries e MBS. Tanto é assim que, após o anúncio do FED, os juros a 2 anos subiram de 1.38% para 1.45%. A Goldman Sachs já prevê que os juros a 10 anos aumentarão em cerca de 20 pontos-base em 2017, subindo gradualmente até 2021.
Em segundo lugar, o QE também se deu para estabilizar o sistema financeiro, e não apenas para controlar os níveis de emprego e preços. Nesse sentido, a pesada intervenção pode ter distorcido a alocação de recursos, favorecendo ativos mais tradicionais e inibindo a inovação destes instrumentos. Em última análise, o QE poderia estar atrasando mais ainda o crescimento. Mesmo que os juros subam, a aposta é que os níveis continuarão suficientemente baixos para que a economia aproveite esse impulso adicional e mantenha um ritmo de crescimento sustentado.
Esta é uma excelente notícia. Em tempos em que o crescimento global caminha para uma maior sincronia e em que não há praticamente nenhum país avançado com crescimento negativo ou deflação, é poderoso o ânimo que a maior economia do mundo pode oferecer para que o mundo não saia tão cedo desta rota.
Para o Brasil, os efeitos da normalização do balanço do FED são de extrema importância. A subida de juros nos Estados Unidos e o enxugamento da liquidez global impactam a alocação de recursos por parte dos investidores do mundo inteiro. Qualquer movimento na direção de restringir a política monetária americana significa uma possível desvalorização do real.
Porém, o Brasil passa por um momento em que a sua agenda doméstica importa mais que os movimentos monetários de outras nações. Isso fica como assunto para outro post.
Talitha Speranza Editora do Terraço Econômico