Pouco antes das eleições, o economista Paulo Guedes saiu em busca de um candidato para suas ideias. Consta que tinha estudos nas mãos apontando que a sociedade clamava por alguém de fora do sistema — um “outsider”. Pensou em Luciano Huck, mas, diante da recusa do apresentador, foi ter com o pré-candidato Jair Bolsonaro, até então um folclórico deputado do baixo clero. Na primeira reunião, constataram, ambos, que partilhavam do mesmo estilo. Faltava chegarem a um acordo sobre a condução da economia. Chegaram. O então candidato prometeu que o futuro ministro teria carta branca para tocar sua agenda.
Paulo Guedes pensa o Brasil desde que retornou de Chicago. Depois de uma carreira sólida na academia e no setor privado, e de algumas rusgas até com seus pares ideológicos, chegou, finalmente, ao comando da economia. Nas primeiras falas como ministro, propôs um roteiro auspicioso e, como há muito não se via, abertamente liberal. Guedes declarava, sem meias palavras, acreditar no mecanismo de mercado. No seu diagnóstico, o dirigismo de outrora corrompera a política e destruíra a economia. O resultado era um paraíso para o rentista e um inferno para o empreendedor. Com seu estilo franco, e com a boa verve, o ministro arrebatou grandes plateias país afora.
Para reerguer a economia brasileira, as palavras de ordem eram reformas, reformas e reformas. O primeiro passo seria reformar o sistema de aposentadorias para impedir o colapso da regra fiscal suprema, o teto de gastos. O debate sobre a previdência vinha sendo travado desde o governo anterior. Em meados de 2019, a reforma foi aprovada. Num feito histórico, a proposta recebeu a chancela da opinião pública e uma larga margem de votos no Congresso. Paralelamente ao enfrentamento da questão fiscal, o entulho burocrático, responsável pela constrangedora posição do país nos rankings de facilidade para fazer negócios, deveria ser varrido da frente do empresário. Brasília monitorava tudo, minuciosamente. “Nunca uma tragédia foi tão bem monitorada”, dizia, de forma irônica, referindo-se à debacle econômica do governo Dilma.
O segundo grande passo seria a reforma do sistema tributário, outro tema que se arrasta desde tempos remotos. Num primeiro momento, as mudanças deveriam mirar a simplificação dos impostos. E lá na frente, quem sabe, com o plano todo executado, aí sim o país poderia vislumbrar a queda da carga tributária para algo como 20% do PIB, no limite do “quinto dos infernos”. Melhoradas as condições de competitividade da economia brasileira, seria então a hora de se abrir para o resto do mundo. A defesa das privatizações, em outros tempos cavalo do terrorismo eleitoral, também foi assumida de forma franca, aberta e com metas ambiciosas.
O roteiro do ministro era um libelo contra o sequestro do Estado por grupos de interesse e contra o voluntarismo cego para avaliações de impacto de políticas públicas. Guedes deu aulas seminais sobre o patrimonialismo. No discurso de posse, ousou chamar todas as coisas pelo seu nome: piratas privados, figuras do pântano político e burocratas corruptos teriam formado uma aliança para defraudar o povo brasileiro. Mais do que sugerir um orçamento apenas enxuto, ele defendia também maior transparência.
A dosagem do programa pode ser posta em discussão, mas não a sua legitimidade, sacramentada pelas urnas. No dizer do ministro, a experiência da social-democracia já tinha durado quase quatro décadas. O país merecia o revezamento, de tempos em tempos, entre a social e a liberal-democracia. Para afastar qualquer receio de autoritarismo, Guedes recorria a Karl Popper: as instabilidades recentes, e até o aumento da temperatura política havido já no começo do governo, seriam sintomas de uma democracia sólida e da dinâmica própria de uma sociedade aberta. “A sociedade aberta e seus inimigos” era, segundo declarou, o livro que tinha à cabeceira.
Eis que, de uns tempos para cá, o palavroso ministro resolveu aparecer menos. Dizia estar trabalhando nos bastidores para apresentar a sequência dos seus projetos. Nas vezes em que decidiu falar, meteu os pés pelas mãos com declarações desastrosas. Ofereceu projeções que logo foram desmoralizadas pelos fatos; e acumulou sucessivos atrasos no cronograma das reformas, por ele mesmo estabelecido inicialmente.
O país agora vive outro momento. Com a crise desencadeada pela pandemia, o script das reformas precisou ser trocado pelo improviso das medidas emergenciais, absolutamente necessárias. O ministro demorou a dimensionar o tamanho da encrenca. Caiu mais uma vez na armadilha de estimar que uns poucos bilhões bastariam para vencer o vírus. O número que se conhece hoje é muitas vezes maior.
Do próprio governo partiu, então, um projeto de retomada do crescimento que não tem qualquer aparência com os planos de Guedes e que remonta, muito mais, ao desenvolvimentismo que ele sempre combateu. Estaríamos, pois, perto do rompimento da aliança entre liberais e conservadores, como o ministro definiu sua aproximação com o capitão? Se não, a que custo a aliança poderá produzir algum fruto? Uma tal aliança, a bem da verdade, nunca houve. “Conservadores” foi a fórmula que o ministro encontrou para edulcorar o reacionarismo bruto e os maus modos dos seus aliados.
Legar um país economicamente reformado talvez seja pouca coisa para ambições do mandatário. Bolsonaro recusa a oportunidade de ser um presidente normal. Para ser um presidente normal, nem precisaria abrir mão da espontaneidade, das ideias toscas, dos preconceitos mais recônditos: bastaria não desafiar a institucionalidade e o bom senso à luz do dia, e tão metodicamente.
Em alguns momentos, o presidente flertou com a normalidade. Mas isso, em regra, foi só a antessala de um novo desatino. Antes mesmo de aprovar a reforma da previdência, no meio de um esforço de articulação, o presidente testou as instituições disparando, por mensagem de celular, uma carta contra os congressistas. Dizia que o país era ingovernável. Na semana seguinte, pediu desculpas, falou de um pacto entre os Poderes, e a vida seguiu. Estava inaugurada, assim, uma curiosa prática de governabilidade: os congressistas estendiam a mão; e o presidente esticava a corda. Gestos como esse se repetiram inúmeras vezes. Depois de cada mordida, vinha um assopro.
Fiel ao seu método, recentemente o presidente levantou suspeitas sobre o processo eleitoral que o elegeu. No meio da pandemia, achou por bem juntar-se a aglomerações e cair nos braços do seu séquito fanatizado. Um dos eventos aconteceu em frente a um quartel, onde os manifestantes, incensados pelo mandatário, carregavam faixas com pedidos de intervenção militar. Na pantomima golpista, o desrespeito à recomendação das autoridades sanitárias virou mero detalhe. E como se o ataque às instituições e a vocação demiúrgica fossem pouca coisa, agora as acusações batem à porta do presidente. Partem do ex-Ministro da Justiça, tido por muitos como reserva moral do país. Sérgio Moro acusa-o de querer trocar o comando da Polícia Federal para proteger os filhos.
No sofrido pronunciamento que o presidente fez para se defender, Paulo Guedes destacou-se por ser o único que cobriu o rosto com máscara; colocado na primeira fileira de ministros, também foi o mais econômico nos aplausos ao chefe. Se alguém ainda procura decifrar os recados do ministro naquele fim de tarde, ofereço mais uma elucubração: as máscaras dos inimigos da democracia liberal estão no chão, e já não dá para fingir que não estão. Eles nunca foram conservadores, como definiu, com excessiva boa vontade, o aliado.
Com o pilar da moralidade abalado, o ministro teve direito a um afago presidencial. O plano anti-Guedes voltou para a gaveta, de onde sempre pode sair. Seria imprudente, até para os padrões vigentes, fazer ruir o pilar do liberalismo econômico justo agora.
“Quem acredita na dinâmica de uma sociedade aberta sabe que um país não se suicida”. Isso foi o que ministro disse em 2016, quando o país ainda se recuperava de outra severa crise política e econômica. Resta torcer para que a dinâmica da sociedade aberta siga operando e impondo limites a quem quer que se apresente como seu inimigo; e para que a agenda econômica modernizadora continue de pé.
Allyson Rafael
Mestrando em Economia pela UFABC.