A má compreensão da ciência econômica no Brasil

Fale sobre ciência no Brasil e praticamente a última coisa que as pessoas esperam ouvir é economia. A maioria das revistas e canais de divulgação científica não tem nada a dizer sobre o assunto. Tamanho silêncio das vozes supostamente mais racionais da sociedade sobre uma área onde decisões irracionais têm um preço tão grande é no mínimo curioso. Como divulgador científico também já tive minha parcela de culpa nesse silêncio até recentemente, quando decidi que deveria aprender o básico. O que venho aprendendo e divulgando não só mudou minha maneira de pensar como me expôs a uma enxurrada de acusações de partidarismo político. Isso me fez refletir sobre a irresponsabilidade que é, principalmente num país subdesenvolvido como o Brasil, deixar essa área da ciência ser associada a, e distorcida por, ideólogos políticos.

O comentário mais comum que recebo quando tento divulgar conhecimentos de economia básica é, na sua versão mais educada, “por que estão pregando neoliberalismo em uma página de ciência?”. Além das acusações de direitismo, também são frequentes os conselhos para que eu “foque apenas no que é consenso científico”. E essas críticas não vêm só do público leigo como também de alguns acadêmicos e divulgadores. A implicação é óbvia: a economia que se ensina nos livros textos em todo o mundo não é ciência de verdade e sim uma mera doutrina política neoliberal de direita.

A politização é um dos maiores entraves à compreensão científica. E sem uma compreensão adequada, não é possível fazer escolhas racionais. A má-compreensão econômica é talvez a mais prejudicial de todas, pois decisões erradas podem condenar um país ao subdesenvolvimento e grande parcela da população à pobreza por gerações. Nesse artigo descreverei os principais problemas que tenho encontrado até agora: a dúvida se a economia é ciência, a prevalência do pensamento de esquerda na academia e dois mal-entendidos muito comuns em todas as ciências sociais, o relativismo pós-moderno e o mito da tábula rasa. Fecharei com um apelo aos economistas: precisamos desesperadamente de vocês na divulgação científica.

A economia é ciência?

A ciência não possui um método único. Cada área tem suas peculiaridades que impõem desafios metodológicos específicos. Mas o processo é o mesmo em todas as áreas. O cientista elabora uma teoria ou hipótese para explicar determinado fenômeno e a partir daí tenta encontrar maneiras de testá-la. Nas ciências médicas uma das maneiras mais potentes de se testar uma teoria é realizando um ensaio randomizado duplo-cego. É evidente que um experimento desses é muito difícil, senão impossível, de se realizar na economia. Essa impossibilidade às vezes é usada como argumento para rebaixar o seu status científico. Mas experimentos controlados são ainda mais raros na astronomia e ninguém acha que ela é menos ciência por causa disso.

Dado que a economia lida em última instância com o comportamento humano, será que isso não a coloca em uma categoria separada e menos rigorosa que a das ditas ciências exatas? Essa história de que existe uma divisão clara entre ciências humanas e exatas, a primeira soft e qualitativa enquanto a segunda hard e quantitativa, ainda é muito comum no Brasil mas isso nunca fez sentido. Primeiro que não há nada no fenômeno social em si que demande o uso exclusivo de métodos qualitativos. Ele é mais complexo que os fenômenos físicos, há muito mais variáveis envolvidas, mas isso é só mais um motivo para o emprego dos métodos mais rigorosos possíveis. Segundo que todo método dito qualitativo também inclui alguma forma de quantificação. Se não houver nenhuma quantificação então muito provavelmente tampouco há ciência. Essa história de que as ciências humanas ou sociais não se prestam à quantificação é uma das bandeiras do pós-modernismo, o movimento anti-ciência que mais corrompe as ciências sociais no país.

É óbvio que o grau de precisão das teorias econômicas não é tão alto quanto as da física quântica por exemplo. Mas seria um erro usar a mesma régua para medir o sucesso de áreas tão diferentes. A economia não precisa ser tão precisa quanto a física para ser útil. Basta ser melhor que um chute para que seja mais racional tomar decisões econômicas baseando-se na teoria. E não há dúvida que a ciência econômica produz muitos resultados mais precisos que meros chutes. Podemos citar como exemplo mais clássico a superioridade do livre comércio em comparação ao protecionismo. A evidência é forte e a maioria dos economistas concorda que, pelo menos no longo prazo, os ganhos do livre comércio são muito maiores que eventuais perdas no emprego. Isso pode parecer óbvio para economistas mas praticamente toda a história do Brasil foi definida pelo protecionismo. Não conheço nenhum outro caso de negacionismo científico que tenha causado maior dano que esse.

A ideologia dentro da academia

Talvez o maior obstáculo à divulgação da ciência econômica esteja dentro da própria academia. Não conheço dados oficiais mas acredito ser razoável afirmar que predomina nas universidades a ideologia de esquerda. Isso é um fenômeno já bem documentado nos EUA, a diferença é que no Brasil a esquerda se identifica muito mais com o socialismo. A consequência disso é a proliferação de mitos e ideias pseudo-econômicas entre cientistas e divulgadores.

Um exemplo é o da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), uma nobre instituição que tem como missão “lutar pela remoção dos empecilhos e incompreensão que embaracem o progresso da ciência”. Essa mesma instituição deu palanque por dois anos consecutivos à famosa negacionista econômica Maria Fattorelli. Como se isso não fosse vexame suficiente, a entidade ainda incluiu em um de seus manifestos a reivindicação por uma auditoria da dívida pública, a maior bandeira negacionista defendida por Fattorelli. Até hoje não vi nenhuma reação da comunidade científica. A SBPC já se manifestou vigorosamente contra pseudociências como o criacionismo e no entanto se sente perfeitamente confortável em apoiar um tão ou mais sério negacionismo econômico.

Limpando a própria casa

Não sou economista então não me sinto qualificado para julgar os méritos e deméritos de cada teoria econômica. Mas como cético e ávido leitor de conteúdos sobre o assunto, vejo com desconfiança a frequente alegação de que é necessário distinguir entre os chamados ortodoxos e heterodoxos (curiosamente não vejo essa distinção ser feita no mundo anglófono). O que mais me deixa com o pé atrás são as afirmações de que se tratam de duas abordagens diferentes, com pressupostos, métodos e conclusões diferentes mas igualmente científicas. Como isso pode ser? Não existem duas físicas, duas psicologias ou duas medicinas.

A situação fica ainda mais feia quando vemos economistas usarem argumentos pós-modernos para justificar essa suposta distinção. Nesse texto, os autores argumentam que o falsificacionismo de Popper não é suficiente para eliminar teorias que não resistiram aos testes, pois é sempre possível salvá-las através de alguma modificação ad hoc. Os autores defendem uma abordagem kuhniana que enfatiza o papel das crenças inquestionáveis (dogmas) e valores dos cientistas na construção dos consensos científicos. Eles sugerem inclusive complementar Kuhn com McCloskey e Rorty, pois estes levam em conta também o papel da hermenêutica e da retórica na ciência. Já que, para os autores, as disputas teóricas na ciência são decididas menos por testes empíricos que por dogma, valores e hermenêutica, a existência de uma linha heterodoxa com dogmas distintos e alternativos aos ortodoxos estaria perfeitamente justificada.

Isso é pós-modernismo 101. Seria necessário outro artigo para tratar apropriadamente dessa questão mas resumindo superficialmente: o pós-modernismo é um movimento baseado na ideia de que a verdade é relativa, construída com base nos valores e  cultura do tempo, grupo ou local. E como valores e culturas diferentes não são, de acordo com o movimento, mais ou menos válidos as verdades diferentes que cada um constrói também não podem ser mais ou menos verdadeiras, sendo portanto todas igualmente válidas. É claro que pós-modernos dão uma roupagem muito mais colorida à essa posição, com uma linguagem rebuscada (ou inventada) mas a base é essa. Se não há como decidir qual de duas teorias alternativas é a mais verdadeira, então qualquer uma vale. Homeopatia ou antibióticos? Dá no mesmo. Essa é claramente uma posição irracional.

Além do relativismo pós-moderno, outro mal-entendido muito comum nas ciências sociais e do qual economistas também são vítimas é a crença na mente como tábula rasa. Essa é a ideia, errada é importante frisar, de que a maior parte do, ou todo, nosso comportamento e habilidades cognitivas são fruto do meio ambiente, sendo a contribuição genética/biológica mínima ou inexistente. Aqui vão dois exemplos dessa falácia em ação em questões ligadas à economia.

O primeiro começa com um erro factual muito comum. Nesse artigo, a autora alega que existe uma diferença significativa na renda de homens e mulheres. Ela usa como evidência um levantamento do IBGE que, segundo ela, encontrou que mulheres “deixam de ganhar 25% da remuneração dos homens, pelo mesmo serviço”. Só que ao checar a fonte dessa informação, o leitor verá claramente a explicação de que essa diferença foi calculada com base no “rendimento habitual médio mensal de todos os trabalhos” (página 1, infográfico) e não do mesmo serviço.

Esse erro é tão comum e resistente aos fatos que Christina Hoff Sommers, ela mesma uma feminista, o incluiu em uma lista de 5 mitos feministas que não morrem. O problema com esse mito é que mesmo depois de corrigidos os erros factuais muita gente não acha plausível que mulheres possam fazer escolhas que as levem a ganhar menos em média que homens. Para essas pessoas, a única explicação possível é que fatores externos estariam determinando as decisões das mulheres. Além de um tanto condescendente, esse raciocínio é baseado na falácia da tábula rasa.

Por trás dele está a premissa de que homens e mulheres nascem cognitivamente iguais. Sendo assim, qualquer disparidade nas escolha feitas pelos sexos só pode mesmo ser explicada por alguma disparidade no meio ambiente, como educação e estereótipos de gênero. O problema é que não nascemos cognitivamente iguais. Existem diferenças biológicas marcantes entre homens e mulheres tanto no nível cerebral quanto comportamental. Sabemos que muitas dessas diferenças são inatas porque são observadas em várias culturas, em animais evolutivamente próximos como chimpanzés e porque tendem a conformar-se com o esperado para uma espécie com a nossa história evolutiva. Logo, não é nenhuma surpresa que mulheres façam em média escolhas profissionais diferentes das dos homens. Surpreendente seria ver exata paridade sexual em todas as profissões. As culturas mais igualitárias da atualidade não só não conseguem esse feito como nelas os sexos diferem ainda mais nas escolhas profissionais e na personalidade que em culturas menos igualitárias.

Voltando ao texto em questão, a presunção da tábula rasa está claramente implícita na forma como a autora lida com essa diferença observada na média salarial. Ela primeiro cita um estudo para mostrar que a diferença não pode ser completamente explicada por critérios objetivos (ou seja, não poderíamos descartar a possibilidade de discriminação) e depois sugere duas intervenções culturais para incentivar mulheres à fazer escolhas mais igualitárias. O estudo que ela cita não é ruim mas tem uma limitação crucial: os autores não levaram em conta as profissões escolhidas por cada sexo [1]. Sem levar isso em consideração não é plausível falar em discriminação como possível determinante de qualquer diferença salarial. Quanto às intervenções culturais que ela sugere, reduzir a dupla jornada e educação igualitária, ambas partem do pressuposto de que não são as mulheres que estão tomando decisões conscientes e racionais baseadas no seus gostos e inclinações parcialmente biológicos, e sim que a educação sozinha estaria condicionando suas escolhas (de forma a privilegiar os homens).

O segundo exemplo vem de um texto escrito pela equipe do Por Quê?, um site de economia. Aqui os autores são ainda mais explícitos em sua crença na tábula rasa. Eles consideram difícil precisar o quanto as escolhas ocupacionais são ditadas por herança cultural mas “chutam” que deve influenciar “muito mesmo”. Se ao invés de chutar os autores tivessem gasto algum tempo familiarizando-se com a vasta literatura sobre psicologia diferencial, talvez eles não teriam feito a bizarra inferência a seguir. Ao analisar um gráfico com as diferenças no desempenho no exame de matemática do PISA, no qual percebe-se claramente que na grande maioria dos países (63%) meninos vão melhor que meninas, eles curiosamente concluem que isso mostra que é “incorreta a história de que meninos têm ‘por natureza’ maior aptidão para matemática”! De fato meninos não levam absoluta vantagem em matemática, muito depende da sub-área e do tipo de teste realizado, mas obviamente não se pode tirar a conclusão que eles tiraram do gráfico em questão. Nos testes como o PISA, onde as questões não são diretamente relacionadas com o que é ensinado na escola, meninos de fato saem-se em média melhor que meninas.

Os autores ainda terminam o artigo com outro inferência ainda menos digna das suas normalmente ponderadas análises econômicas: “não parece ser coincidência que entre os 10 países onde as meninas vão pior em relação aos meninos, 8 sejam de tradição latina”. Essa é mais uma tentativa de corroborar a “intuição” deles de que “vivemos num país machista, no qual as mulheres são normalmente tratadas como se estivessem no degrau debaixo”. Se o Brasil é um país machista o que sobra para a Algeria, Emirados Árabes, Malásia e Indonésia, países de maioria muçulmana que apesar disso estão entre os 11 onde as meninas vão melhor em relação aos meninos? Além de ser bad science, isso se parece muito com raciocínio motivado de ativista político-ideológico.

O que fazer?

Longe de mim querer dizer a economistas como fazer economia. Minha intenção aqui é meramente oferecer um pouco da minha experiência como divulgador científico que se aventurou em águas econômicas desconhecidas. Se a minha experiência for de fato representativa, há muito o que fazer e poucos fazendo. A divulgação científica tem um buraco econômico que precisa urgentemente ser preenchido.

Provavelmente o mais difícil será superar o preconceito ideológico da academia brasileira. E superá-lo é essencial para que a economia seja cada vez mais associada à ciência pelo público leigo e não mais à política. O exemplo americano e de outros países altamente desenvolvidos mostra que é possível ser de esquerda sem acreditar em pseudo-economia (ou pelo menos era até recentemente). Talvez o que melhor funcione aqui seja salientar sempre que possível o importante papel positivo de um sistema de bem-estar social dentro do livre-mercado. O próprio Hayek não se opunha na teoria e a prática mostra que um estado de bem-estar contribui não só para diminuir a pobreza como para melhorar o funcionamento do próprio do livre mercado. As evidências não corroboram o ideal libertário de ausência de estado.

Quanto à influência do pós-modernismo e da tábula rasa, a economia provavelmente não sofre mais com essas moléstias que o resto das ciências sociais e pode, portanto, aprender com a experiência delas. Há muito material sobre isso e meus favoritos são Popper, Sokal e Pinker.

Por último, economistas divulgadores que procuram inspiração podem, caso ainda não conheçam, estudar o modus operandi da comunidade cética internacional. Me refiro principalmente à prática do debunking: identificar e desmontar afirmações pseudocientíficas e argumentos falaciosos. Material é o que não falta no discurso político nacional. A crença mercantilista de que é melhor exportar que importar, a ideia de que é preciso proteger a indústria nacional, que o valor do salário é definido pela boa vontade do empregador, que estatais garantem que o interesse público prevaleça sobre o privado, que a melhor maneira de proteger o trabalhador da exploração é através de abrangentes leis trabalhistas são apenas alguns dos mal-entendidos econômicos propagados por políticos, pelas redes sociais e pela mídia. Por serem estes problemas que não afligem países desenvolvidos, eles geralmente não fazem parte da pauta cética internacional, fato que, creio, também contribuiu para gerar a percepção errada de que esses tópicos não tem consensos científicos. Só porque Carl Sagan não fala nada sobre eles no Mundo Assombrado pelos Demônios não quer dizer que eles fogem do escopo da ciência. Dado o contexto brasileiro, corrigir esses mal-entendidos é, na minha opinião, muito mais necessário e urgente que desmontar pela milésima vez homeopatia e astrologia.

André Luzardo

Criador e editor-chefe do Raciocínio Aberto. Pesquisador postdoc em Ciências Cognitivas na Boston University (USA). Doutor em Ciências da Computação pela City, University of London e Matemático pela University of Edinburgh (UK).

Notas

[1] O estudo encontrou que apenas 6.7% (página 14) da diferença salarial entre homens e mulheres não pôde ser explicada pelas variáveis que foram controladas. E que variáveis são essas? Idade, educação, estrutura familiar, tempo de serviço, etc. E a variável “tipo de serviço” foi avaliada? Não! Me parece óbvio que um professor de ensino fundamental ganha menos que um médico ou um advogado, qual seja o tempo de serviço. Se mais mulheres que homens escolhem ser professoras que médicas ou advogadas, haverá uma diferença salarial considerável entre os dois sexos. Sem controlar esse fator importante a conclusão mais plausível é que esses 6.7% de diferença são provavelmente explicáveis por escolhas profissionais distintas entre os sexos. E de fato é exatamente isso que inúmeros estudos tem mostrado nos EUA e Europa.

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