A questão dos incentivos econômicos

Certa vez, numa cidade da Índia colonial, o governo se deparou com um problema: cobras. Na verdade, se tratava de uma infestação. A solução, pensaram os governantes, era recompensar a população pelo extermínio daqueles animais. O “prêmio pelas serpentes” estava estabelecido, uma quantia em dinheiro em troca das peles de cobras mortas. Inicialmente, a população respondeu da forma esperada. Com o passar do tempo, notou-se que a infestação se manteve, quiçá piorou. O motivo? Incentivos!

Uma parcela da população, visando a recompensa oferecida, passou a criar cobras em cativeiro. O governo, observando a ineficácia da política de recompensas, resolveu encerrá-la. Extintos os incentivos, não há motivo para criar cobras. Logo, essas foram soltas e a infestação foi agravada. Ou seja, as consequências não intencionais da tentativa de solução tornaram o problema inicial ainda pior, o chamado “Efeito Cobra”.

A história das cobras não passa de uma anedota, isso é, uma narrativa peculiar. Entretanto, a História oferece um exemplo brutal desse tipo de fenômeno, trazido à realidade por uma perversa estrutura de incentivos.

Durante o império belga sobre o Congo, no fim do século XIX e início do XX, uma das mercadorias mais exploradas pelos colonizadores era a borracha. Existia, inclusive, uma política de cotas mínimas para a extração de látex. O nativo que não alcançasse sua cota era punível com a morte. Contudo, os governantes belgas tinham uma segunda preocupação: a munição, pois, essa era custosamente importada do continente europeu e não deveria ser desperdiçada com a caça de animais, por exemplo.

Sendo assim, quando um nativo era condenado à morte por não atingir sua cota, um soldado deveria decepar-lhe a mão direita para provar que a munição não havia sido desperdiçada. Consequentemente, alguns desses soldados passaram a acumular somente mãos decepadas, deixando os nativos vivos para poupar munição. Os episódios de mutilação e desmembramento foram ainda mais frequentes quando os oficiais belgas passaram a vincular até mesmo a remuneração e o tempo de serviço dos soldados ao número de mãos colecionadas.

As consequências não antecipadas da ação social, ilustradas pelos casos mencionados acima, foram objeto de estudo do sociólogo Robert K. Merton. Segundo ele, o caráter sistêmico desse tipo de fenômeno confere complicações à análise do cientista social.

Por exemplo, uma consequência imprevista não é sinônimo de consequência indesejada. Há ainda uma primeira armadilha, já conhecida nas ciências sociais: as relações de causalidade. Dado que sem ação, não há consequência, como identificar corretamente essas relações? Além disso, as consequências para o ator e para o receptor da ação podem ser diferenciadas entre si e também são influenciadas pela estrutura social, cultura, civilização, etc.

A ação governamental, através da formulação de políticas, é relativamente propícia para análise das consequências não intencionais, pois, apresenta propósito e procedimentos explícitos. Ainda assim, uma segunda armadilha, ainda mais comum no mundo político, é a racionalização. Isso é, afirmar que determinada consequência não intencional era desejada, a partir do conhecimento post facto. Considerando o sentido da relação de causalidade, os efeitos da racionalização podem ser reduzidos através de declarações de objetivo e medidas implementadas.

À luz das considerações de Merton, podemos observar um caso brasileiro. Assim como discute Samuel Pessôa, o governo federal empreendeu uma série de políticas anticíclicas após a crise financeira de 2008. Dentre as medidas anunciadas estava o crédito subsidiado para a aquisição de caminhões. Em pouco menos de 10 anos, a frota desse tipo de veículo aumentou 40%. Grandes transportadoras expandiram seus negócios e contrataram motoristas. Enquanto isso, o número de caminhões produzidos pelas montadoras excedeu até mesmo o número de licenciamentos durante determinado período.

Contudo, a economia brasileira passou (e ainda passa) por uma de suas piores crises da história. A sobreoferta de caminhões barateou o preço do frete, prejudicando a operação das próprias transportadoras e, de forma ainda pior, os caminhoneiros autônomos. O número de caminhões nas estradas diminuiu e as montadoras encontraram-se ociosas. No fim das contas, a medida anticíclica teve efeitos procíclicos negativos. Pergunta-se, seriam as consequências não intencionais parte de uma lei implacável?

Não necessariamente. Segundo Merton, a antecipação das consequências de uma ação é limitada pelo estado do conhecimento existente. Especificamente, as ciências do comportamento humano lidam, grosso modo, com associações estocásticas. Em outras palavras, o conjunto de consequências de qualquer ação não é constante, ao invés disso, há uma gama de consequências.

O campo da estratégia militar oferece reflexões interessantes sobre o tema. Num ambiente operacional, o estudo das consequências primárias, secundárias (ou até mesmo terciárias) de uma ação se faz necessária. Embora a modelagem matemática seja útil para a solução de problemas de causalidade, não se trata da ferramenta mais adequada nesse contexto.

A conjectura de “ramificações” de planejamento, isso é, alternativas de contingência, dependem da tentativa de compreensão da natureza dos elementos em interação. Através disso, algum grau da gama de consequências potenciais pode ser identificado através de um método reprodutível.

Ainda que o tema deste artigo seja tentador para os arautos do laissez-faire ou para os zelotes do planejamento central, certos aspectos são incontornáveis. Ações, independente das intenções, podem ter consequências catastróficas. Narrativas importam, fatos objetivos também. Grandes sistemas sociais são extremamente complexos por natureza, mas, isso não isenta a utilização de métodos rigorosos para sua compreensão. Por fim, uma frase sempre merece ser lembrada: incentivos importam!

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