Aborto: quem pode decidir?

O que é… a vida? Perguntava Antônio Abujamra a seus convidados ao final da entrevista de seu programa Provocações na TV Cultura. Essa é uma pergunta que conseguiu extrair as mais diversas respostas: filosóficas, espirituais e científicas. No entanto, os biólogos discutem essa questão há décadas e a resposta técnica é: depende do organismo que se está estudando. Está vivo todo organismo capaz de se reproduzir usando suas próprias maquinarias celulares, como animais, plantas, bactérias e fungos, excluindo os vírus. E sua vida compreende todas as atividades realizadas do momento em que ela começa até o momento de sua morte.

Mas quando exatamente começa a vida? Segundo 81% dos adultos americanos entrevistados, os biólogos são aqueles que estão mais bem qualificados para dizer quando a vida humana começa [1]. Quando entrevistados, 95% dos biólogos responderam que a vida humana começa na fecundação do ovócito pelo espermatozoide [1]. Nesse momento uma célula única se forma, o zigoto, que vai atravessar a tuba uterina em direção ao útero, começar a se dividir formando a mórula, no útero formará o blastocisto e se implantará na parede uterina, onde o desenvolvimento embrionário prosseguirá até a formação completa da criança ao longo dos nove meses de gestação (Figura 1).

Figura 1: Estágios iniciais do desenvolvimento embrionário: da fecundação/concepção até a implantação do embrião no útero. Figura criada através da plataforma Mind the Graph.

Se a vida começa na concepção então o aborto é sempre antiético? Essa é uma questão que não pode ser reduzida apenas à discussão de se um feto é uma vida, porque existem diversos cenários onde escolhas difíceis precisam ser feitas. Por exemplo, a gravidez ectópica ocorre quando o blastocisto não chega ao útero e se implanta em um local incorreto, normalmente na tuba uterina. Esse tipo de gravidez representa 2% das novas gestações e, além de ser inviável, se não for interrompida pode levar à morte da gestante [2]. Portanto, nos casos de gestação ectópica invariavelmente a única solução ética é o aborto, seja ele espontâneo ou induzido, pois a única vida potencial é a da gestante. Esse tipo de aborto já está previsto em nossa jurisprudência atual, denominada gravidez extrauterina inviável com risco de vida à gestante. O procedimento envolve cirurgia para remover o feto e a placenta, mas em alguns casos o fármaco metotrexato é utilizado para interromper a gravidez ectópica [3].

Em 2019 a deputada federal Chris Tonietto apresentou o Projeto de Lei 2893/2019, que é um projeto de proteção à vida ou antiaborto que ainda está tramitando em 2022. Nele a deputada reconhece que o aborto é “necessário” (aspas dela) em alguns casos, como no caso de rompimento da bolsa amniótica quando feto ainda está imaturo – o que leva à uma infecção bacteriana e resulta invariavelmente na morte da criança, portanto não há potencial à vida neste tipo de gestação. Para se ter noção, a criança mais prematura que já nasceu foi com cinco meses de gestação, ou 21 semanas, com uma chance menor do que 1% de sobrevivência [4]. Mas o que a deputada sugere nesse Projeto de Lei é chocante, para dizer o mínimo: ela sugere que a gestante que tiver rompimento prematuro da bolsa amniótica deve ser tratada com antibióticos e esperar que a criança morra naturalmente e só depois retirá-la do útero materno [5]. Isso poderia levar a gestante à morte por septicemia, que é uma infecção generalizada.

Deputada federal Chris Tonietto PL-RJ | Foto: Câmara dos Deputados

No caso da gravidez ectópica, mencionado acima, a deputada sugere que o médico espere, pois em 65% dos casos a gestação evolui para aborto espontâneo e que as outras 35% gestantes restantes esperem que o quadro evolua para ruptura tubária e que o médico esteja prontamente disponível para intervir imediatamente e estancar a hemorragia. Ela chama a indução do aborto nestes casos de ‘impaciência dos profissionais da saúde’ [5]. Eu gostaria de estar exagerando, não parece possível que uma deputada federal desconheça tanto a realidade da saúde pública no Brasil para fazer tais sugestões, mas isso é quase uma transcrição direta do que está escrito no Projeto de Lei 2893/2019 da deputada.

Não existe justificativa para submeter a gestante a tamanho sofrimento e risco de vida, quando é certo que a gestação não é viável e a criança não vai sobreviver. Todos os anos 150 mil mulheres passam por gestações ectópicas no Brasil, algo que não é culpa delas e que não podem controlar. O que a deputada sugere é que 35% das mulheres com gestação ectópica, o que representa mais de 50 mil mulheres por ano, esperem até ter uma hemorragia para retirar o feto. O resultado dessa medida poderia ser a morte de milhares de mulheres todos os anos.

A jurisprudência atual do STF prevê a possibilidade de aborto nos casos de risco de vida à gestante, como nos casos já mencionados, nos casos de fetos com anencefalia ou resultado de estupro até a 20ª semana de gestação ou até a 22ª semana de gestação, se o feto tiver menos de 500 gramas [6]. E existem razões para a manutenção dessas possibilidades – nós já discutimos o caso do risco de vida à gestante, mas o que dizer então dos fetos com anencefalia?

Anencefalia, diferente da microcefalia, significa que a criança nasce com ausência do cérebro, o que também é incompatível com a vida. A maioria das crianças com anencefalia, quando chegam a nascer, morrem poucos dias ou meses após o nascimento e jamais serão capazes de ter qualquer experiência no mundo, pois nossos sentidos são processados pelo cérebro, que não se desenvolve nessas crianças. Da mesma maneira, quando um indivíduo hospitalizado tem morte cerebral detectada, a morte é declarada e os aparelhos são desligados, um ser humano sem cérebro não tem potencial à vida. Existe uma série de procedimentos realizados para detectar a morte cerebral, que é diferente de coma e estado vegetativo, e ninguém nunca viveu após ter morte cerebral detectada, segundo o neurologista Dr. Richard Senelick [7], a vida humana termina com a morte cerebral.

Os maiores danos no caso da anencefalia estão na saúde mental da gestante, no sofrimento psicológico e um maior risco de hipertensão, hemorragias e infecções [8]. Imagine gestar por nove meses uma criança que vai morrer dias ou meses após nascer, isso se nascer, sem sequer poder interagir com o mundo mesmo neste breve momento. Além do efeito psicológico sobre a gestante em saber que as pessoas à sua volta não podem esperar que a criança sobreviva e faça parte da família. Ao invés de comprar um berço, roupas e brinquedos, a mãe comprará uma miniatura de caixão para enterrar o bebê. É uma carga emocional muito forte para se carregar por tantos meses. Continuar ou não com a gestação de feto anencefálico só pode ser escolha da gestante.

Uma gravidez resultante de estupro pode ter um impacto psicológico ainda mais devastador que no caso anterior, ainda mais considerando que 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes [9]. Será que é justo forçar uma criança a gestar o filho de seu estuprador, sem ter as condições econômicas ou psicológicas para criar a criança sozinha, além de ter sofrido grave violência física e psicológica? A vida, a saúde mental e a dignidade humana da vítima devem ser priorizadas acima de uma vida potencial resultante de estupro, devendo ser escolha exclusiva da mulher a decisão de interrupção da gravidez. Outro ponto importante a ser considerado é o de que não podemos aceitar a ideia de uma sociedade em que um indivíduo pode escolher uma vítima e ter um filho com ela através de um estupro sem que a gestação possa ser interrompida.

Qual seria então o limite ético para o aborto? Apesar de defender os casos já previstos, que fazem sentido do ponto de vista lógico e ético, eu não acho que o aborto é algo desejável e nem que deva funcionar como método contraceptivo. Nenhuma mulher quer abortar, tomar essa decisão é sempre um sofrimento. No entanto, não é possível eliminar a responsabilidade pessoal de homens e mulheres sobre sua reprodução e no uso de contraceptivos, que estão facilmente disponíveis no Brasil – com distribuição gratuita de preservativos pelo governo. Existem outros métodos contraceptivos disponíveis além da camisinha, como a pílula anticoncepcional feminina e a pílula do dia seguinte. Também está em fase de testes a pílula anticoncepcional masculina que teve eficiência de 99% em camundongos e estará possivelmente disponível nos próximos anos se tiver a mesma eficácia em humanos [10]. Neste cenário, uma forte razão deve existir para justificar o aborto.

Com isso dito, é importante frisar que na maior parte das vezes a razão de uma mulher buscar o aborto é resultado de uma tragédia pessoal, seja por uma gravidez de risco, estupro ou de circunstâncias pessoais insuportáveis para gestante. Por exemplo, houve um caso de uma mulher que era atendida por aconselhamento genético na USP, pois em sua família existiam casos da Distrofia Muscular de Duchenne, uma doença progressiva e debilitante. A mulher portava uma cópia da mutação e por isso seus filhos homens teriam 50% de chance de nascerem afetados pela doença. Ela e o marido eram muito religiosos e decidiram tentar ter filhos mesmo sabendo do alto risco. Ela teve dois filhos homens afetados pela doença, uma filha normal e estava grávida do quarto filho. O marido a abandonou e a mulher desesperada utilizou um medicamento abortivo que não funcionou. Ela tentou suicídio e só então conseguiu ajuda para viajar e realizar o aborto de forma segura. Não tivesse feito o aborto, ela poderia ter se matado, junto ao feto, deixando dois filhos portadores de doença genética e uma filha sem a mãe.

Esse tipo de tragédia, em regra, afeta apenas as mulheres pobres no Brasil, pois aquelas que possuem condições financeiras podem facilmente viajar para países vizinhos em que o aborto é legalizado, como Argentina e Uruguai, onde poderão realizar o procedimento de forma segura. Segundo relatório do Instituto Guttmacher, a taxa de aborto em países com mais restrições ao aborto é muito parecida à taxa dos que são menos restritivos. No entanto, a taxa de mortalidade materna por aborto em países com leis mais restritivas é muito maior, devido à realização do aborto de forma clandestina e insegura – o que afeta principalmente as mulheres mais pobres [11].

Portanto existem outras possibilidades que devem ser consideradas para o aborto no Brasil, como é o caso das doenças genéticas humanas graves e incuráveis. Como geneticista, eu percebo que muitas dessas doenças resultam em grande sofrimento para os pacientes e seus familiares. No Chile, uma garota chamada Valentina Maureira sofria de fibrose cística desde os seis meses de idade e aos 14 anos suplicava ao governo chileno pela autorização da eutanásia para dar fim à sua dor e sofrimento com a doença. Ela nunca conseguiu a autorização e morreu aos 14 anos em decorrência de complicações de sua doença [12]. Para evitar tal sofrimento, quando houver suspeita de uma doença debilitante no feto – seja pela existência de casos na família ou alguma anormalidade observada durante a gestação, é possível realizar testes diagnósticos pré-natais para detectar doenças genéticas graves e interromper a gravidez para evitar o sofrimento da criança, pais e familiares.

É importante salientar que em países onde o diagnóstico pré-natal é realizado o número de abortos em gestantes de alto risco genético diminui. Isso porque só são interrompidas as gestações quando o feto é diagnosticado como afetado por uma doença genética e não simplesmente pelo medo da gestante de ter uma criança afetada. Ao ser atendida por um profissional de aconselhamento genético a mãe será bem-informada sobre a doença e poderá avaliar se pode dar uma vida satisfatória para a criança e assim decidir se quer continuar com a gestação.

Também devem ser considerados os casos de pobreza extrema e incapacidade de prover condições financeiras para o desenvolvimento e alimentação da criança, levando ao sofrimento pela fome. Na ausência de moradia, condições sanitárias e com a criança desprotegida do ambiente. Em razão de incapacidade emocional ou psicológica para levar a gestação adiante e cuidar da criança, como a depressão e tendências suicidas. E casos de incesto, que têm risco significativo de nascerem crianças com doenças genéticas graves. Uma vida permeada por profundo sofrimento físico e psicológico do nascimento à morte é algo desejável?

O último ponto a ser discutido sobre o aborto trata de qual etapa do desenvolvimento embrionário é aceitável que a gestação seja interrompida. Como e onde traçar o limite? O entendimento atual do STF é que até a 20ª semana ou 22ª semana com menos de 500 gramas é permissível. Mas eu proponho que o melhor parâmetro para estabelecer esse limite é o do sofrimento, tanto da gestante quanto do feto. E em que estágio do desenvolvimento embrionário o feto começa a sentir dor? É na 20ª semana que o sistema nervoso completa seu desenvolvimento e é quando os receptores e estruturas necessárias para sentir dor estão presentes por todo o corpo do feto [13, 14]. Minha opinião é a de que o abortamento da gestação seja limitado à 19ª semana, sempre que possível, para evitar a possibilidade de sofrimento fetal.

Por fim, a decisão sobre o aborto deve ser sempre acompanhada de atendimento psicológico, pois a decisão por realizar o aborto também pode ter efeitos negativos sobre à saúde física e mental da mulher. Além disso, antes de qualquer decisão, a mulher deve ter sempre acesso à informação sobre os riscos do aborto e as alternativas existentes, como a adoção – seja entregando a criança para adoção ou para um parente ou casal amigo que deseje adotar a criança. E deve ser informada sobre a ajuda oferecida pelos órgãos públicos e a comunidade da cidade onde vive, que a beneficiaria caso optasse por ficar com a criança, minimizando assim as chances de arrependimento.

Igor Neves Barbosa
Mestre em Genética Humana. Doutorando no Instituto de Biociências da USP, trabalha com doenças genéticas humanas.


Notas Explicativas

1.            Jacobs, S.A., Biologists’ Consensus on’When Life Begins’. Available at SSRN 3211703, 2018.

2.            Bernardes, L.S., et al., Gravidez ectópica tubária gemelar unilateral: Relato de caso. Revista de Medicina de Minas Gerais, 2018. 28(5).

3.            Dulay, A.T. Gravidez ectópica. 2020; Available from: https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/problemas-de-saúde-feminina/complicações-da-gravidez/gravidez-ectópica.

4.            Millward, A. World’s most premature baby defies sub-1% survival odds to break record. 2021; Available from: https://www.guinnessworldrecords.com/news/2021/11/worlds-most-premature-baby-defies-sub-1-survival-odds-to-break-record-681851.

5.            Chris Tonietto, F.B., PL 2893/2019. 2019.

6.            Ferreira, J.D., Direitos Reprodutivos: “ABORTO LEGAL”. 2018.

7.            Wilson, J., Why brain dead means really dead, J. Christensen, Editor. 2014.

8.            Cristião Fernando Rosas, D.D., Thomaz Gollop. A gestação de anencéfalos traz riscos e complicações para a saúde da mulher. 2012; Available from: https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/dsr/pautas-direitos/a-gestacao-de-anencefalos-traz-riscos-e-complicacoes-para-a-saude-da-mulher/.

9.            IPEA. Crianças e adolescentes são 70% das vítimas de estupro. 2014; Available from: https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/3490-criancas-e-adolescentes-sao-70-das-vitimas-de-estupro.

10.          Presse, F., Pílula anticoncepcional masculina atinge 99% de eficácia em camundongos, dizem cientistas. 2022.

11.          Singh, S., et al., Abortion worldwide 2017: uneven progress and unequal access. 2018.

12.          Pérez, D.M., Morre a menina chilena que pediu a eutanásia ao Governo. 2015.

13.          Minnesota, If You Are Pregnant: Information on fetal development, abortion and alternatives. 2019.

14.          AURÉLIO, M., ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 54 DISTRITO FEDERAL. 2012.


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