O jornal alemão semanal Die Zeit publicou na semana passada uma séria de textos sobre a profundíssima questão: “quem sou eu?” e especialmente “quando eu sou realmente eu?” Traduzimos um interessante texto publicado nessa edição, de autoria do jornalista Burckhard Strassman.
Coro das vozes interiores: murmúrios, xingamentos, risadinhas. Uma delas me alerta: “comece agora finalmente a escrever, amanhã é o seu prazo!” Outra, sedutora: “Onde estava escondido o chocolate mesmo?” A terceira, mais sensata: “Seria bom instalar o novo software”. “Vai dar uma volta! Olhar umas saias…”, grita uma quarta – esta vem das profundezas. “Olá, vou te pedir pela última vez: você pode levar o lixo lá para baixo?” Essa foi uma voz exterior, e eu a conheço – é a voz da minha mulher. Eu não a havia ouvido bem por conta do intenso palavrório de minhas vozes internas.
Essas vozes internas – um sentimento instintivo ou “piloto automático interno” – são conhecidas também como sinônimo da própria “intuição”. Pessoas menos delicadas descreveriam o fenômeno como “eu sinto no meu fígado”. Porém, a voz interior é algo particularmente importante para as mulheres e suas revistas. Nos escritos dos mestres espirituais e gurus. No mercado de coaching, profissionais de energia e cura quântica. Entre psicólogos e pesquisadores do cérebro. E para os psiquiatras. Todos esses inundam as livrarias com seus conselhos. Nesses tempos avessos crenças ou superstições, a voz interior nos dá uma forma de orientação, representa um resto de irracionalidade de nosso sinistro passado…
Mas para mim é um enigma entender como as pessoas realmente conseguem considerar a voz interior como o último golpe de sabedoria, como conselheira nas horas de desespero, no jogo da loteria e na escolha da mulher certa. Quando eu paro para me escutar, eu basicamente ouço um monte de ruído. Opiniões contraditórias e exigências se sobrepõem: a consciência pesada, a inércia, as frases de comercial de TV, o anjo da guarda e o homenzinho do ouvido. É possível que uma decisão inteligente e útil derive de tal estardalhaço?
[caption id="attachment_1438" align="aligncenter" width="300"]No caso da princesa norueguesa Martha Louise, a voz interior apareceu na forma de anjo. À revista Gala, ela relatou seu despertar. Na época ela lia um livro sobre anjos. “De repente percebi uma presença agradável e me senti acolhida de uma forma que nunca havia me sentido antes. Tudo cheirava a rosas”. Em seguida a princesa percebeu quão oca e absurdamente estressante era a vida na corte, casou-se em 2002 com um escritor, abdicou de seu título e renunciou até mesmo a seu salário. Ela fundou uma “escola de anjos”, que ensina crianças a falarem com seu anjo da guarda. Além disso, escreve livros sobre anjos e ganha muito mais do que recebia nos tempos na corte.
Nós aprendemos: quem quer se aproveitar de vozes interiores deve ter a capacidade de escolher uma e calar todas as outras – talvez as mal-humoradas ou críticas. O que diriam os seus pais? O que será que os jornais vão escrever sobre isso? Vou ser pobre? Afinal, anjos existem? Comi algo que não deveria? Martha Louise ignorou todas essas questões, e graças à voz do anjo ela mudou sua vida.
No caso de minhas poucas verdadeiramente importantes decisões de vida – começar a faculdade, largar a faculdade, começar um relacionamento, terminar um relacionamento, comprar um carro, abandonar o carro – eu sempre agi como a princesa. Com a diferença que eu não ouvia nenhuma voz de anjo. Mas tal como ela eu me deixei levar, numa névoa de sussurros admonitórios (especialmente as objeções mais sensatas), por uma repentina “intuição”, à qual eu creditei absoluta validade. Olhando retrospectivamente, eu atingi uma taxa de acerto de aproximadamente 50 por cento. Eu poderia também ter jogado um dado.
O resultado medíocre deriva do fato que a voz interior baseou-se numa base de informações insuficiente em todos os casos mencionados. Quem não tem cinco profissões, não é um Don Juan nem é um ás do volante geralmente não pode esperar muito de sua própria intuição. Não é o mesmo no caso de inúmeras decisões diárias que nós temos que tomar continuamente. Nesses casos, a voz interior e a intuição nos guiam relativamente bem. Quem precisa tomar uma decisão pode ou ativar seu potencial de raciocínio, ou então ir dormir com o problema na cabeça. O segundo método em geral conduz a melhores resultados.
A boa intuição se baseia no tesouro que deriva da experiência prática, longamente depositada nos porões da Racionalidade. Um goleiro, por exemplo, pode até mesmo treiná-la, se ele praticar milhares de vezes como a bola voa até o gol. Em algum momento ele saberá prever intuitivamente a curva já no momento do chute. O casamento também é um bom exemplo: depois de certo treinamento dá para saber intuitivamente em que casos você não terá a última palavra.
Nesse trabalho de experiência prática raramente nós percebemos uma coisa: Imagine que estou no supermercado diante da prateleira de geleias. “Pegue a geleia artesanal!”, clama a voz saudosa daquele sabor caseiro. “Experimente essa nova, estupidamente cara, geleia inglesa”, murmura a voz aventureira. A intuição, porém, escolhe a marca barata do supermercado. Ela age à revelia do coro das vozes interiores. Discussão desnecessária. Primeiramente, ela conhece o estado da sua conta corrente. E em segundo lugar, todo mundo compra a geleia mais barata.
É impressionante notar quão frequentemente a intuição se deixa levar facilmente pelo mainstream. Os psicólogos e neurocientistas interessados pelo processo de tomada de decisão sabem por quê. A razão pela qual nós raramente agimos de maneira original e individual é simples: preguiça de pensar. Pensar envolve esforço, trabalho cerebral custa muitas calorias. Nós preferimos poupá-las à medida que aceitamos sem checar coisas que já foram pensadas.
Assim são as minhas idas ao supermercado, não importando se eu estou comprando comida, material de escritório ou quinquilharias: nem um pouco originais. Quase sempre me baseio em amigos ou vizinhos. Ou então nos ditados sobre como economizar.
A voz interior ou é tão inteligente quanto um dado ou então uma maria-vai-com-as-outras oportunista. Mas há também as situações excepcionais. Digamos, os momentos de anjo.
Uma vez eu passei alguns dias numa ilha deserta no Pacífico. Ela era totalmente cercada por corais pontiagudos. Eu estava de pé na praia e fitava desejoso o horizonte. Eu queria muito nadar naquele mar. De repente uma voz interior me disse forte e claramente: “pula na água!” Mas não havia ninguém. Eu pulei na água mesmo assim, e encontrei meu caminho através dos corais.
Essa não foi uma decisão aleatória de impulso. Eu também não era nenhuma maria-vai-com-as-outras em tal situação. Tampouco havia alguma base de informações em mim. É bem capaz que tenha sido Deus em pessoa que falou.
Burckhard Strassman
Texto publicado em 13 de agosto de 2014 no jornal Die Zeit
(tradução: Alípio Ferreira Cantisani)