Anatomia de um superávit: ou prenúncio dos efeitos da PEC no orçamento

Diogo Bardal* Os dados de superávit primário em janeiro de 2017 foram recebidos como uma surpresa positiva pela mídia especializada. A julgar pelo relatório “Prisma Fiscal” [1] organizado pelo próprio Ministério da Fazenda, os números de fato são muito superiores às expectativas de mercado. Em janeiro o relatório indicava na mediana um resultado primário para janeiro de R$ 3,6 bilhões. Recente relatório indicado pela Instituição Fiscal Independente (IFI) [2], órgão do senado federal recentemente criado, estimou também um resultado primário do governo central de R$ 4,5 bilhões para janeiro. O resultado foi R$19 bi, já ajustado pelo IPCA, havendo, portanto uma necessidade de explicar pelo menos R$15 bilhões que não estavam na conta da maioria das principais instituições financeiras e governamentais. Vejam a tabela abaixo:

Tomando como base as estimativas da IFI, podemos observar que as receitas estimadas foram muito semelhantes: em torno de R$ 138 bilhões. A receita líquida real, no entanto, difere em R$ 5,3 bilhões para mais. No entanto, a julgar pelo relatório do Tesouro Nacional de previsão das transferências para o mês seguinte, de dezembro de 2016, este já apontava uma transferência 10% menor em relação a janeiro de 2016. Uma simples inspeção na série histórica leva a crer que as transferências ocorrem em um nível menor em janeiro, como as previsões de mercado já apontavam.

Muito bem, sobram R$ 9,3 bilhões no caso da previsão da IFI, e R$ 15,3 bilhões no caso do prisma fiscal para explicar no lado da despesa. Uma parte disso poderá ser explicado por erros e omissões/discrepância ajustes/ajustes, que ainda não foram divulgados pelo Tesouro.

Parênteses: é responsável divulgar dados e comemorar em editoriais jornalísticos antes do ajuste estatístico, considerando que em janeiro de 2016 esses ajustes corresponderam a quase ¼ do resultado? Fechemos este parêntese.

A discriminação no lado da despesa se divide entre despesas discricionárias e obrigatórias, entre estas obrigatórias estão os gastos com previdência. Como o governo ainda não promoveu uma reforma da previdência é bem provável que estes gastos tenham sofrido poucas alterações em janeiro. No entanto há uma redução expressiva nas demais despesas obrigatórias: em janeiro de 2017 essas despesas somaram R$ 87,7 bilhões, e em janeiro 2016, R$ 90,6. Estes R$ 3 bilhões de redução se dão pela redução no valor do abono e seguro-desemprego (linha I.V 3.1) e a compensação RGPS pela desoneração da folha (linha IV 3.9).  Vejam a tabela pelo link: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/resultado-do-tesouro-nacional.

Faltam aproximadamente R$ 6 bilhões em relação à IFI e R$ 12,5 para explicar apenas em cortes das despesas discricionárias. Disso, R$ 3 bilhões são fáceis: PAC (incluso Minha Casa Minha Vida) quase zerados e demais corte em investimentos. O resto são reduções de despesas em ministérios: Saúde, Educação e Desenvolvimento Social, essencialmente, estes somam aproximadamente R$ 9 bilhões. Na tabela abaixo faz-se um exercício para detalhar os cortes que mais contribuíram para o superávit primário do mês. Como o Prisma Fiscal não revela toda expectativa de despesa em detalhe, usam-se os dados de janeiro 2016 para comparar, ficando longe apenas de alguns centavos da discrepância calculada.

Corte nos Ministérios: CORTOU ONDE?

Pode ser de interesse de alguns saber se o governo está promovendo uma redução inteligente da despesa, isto é, buscando diminuir ineficiências extinguindo programas pouco efetivos, diminuindo gastos com a burocracia estatal, enquanto busca manter aquilo que traz benefício à população. Para começar esta discussão, proponho usarmos o instrumento da execução orçamentária. Quais funções, programas e ações tiveram seu funding diminuído, e quais tiveram seu funding aumentado em relação a janeiro/fevereiro de 2016.

Olhando para a execução orçamentária atual do ministério da saúde, disponível em formato aberto aos cidadãos [3], separam-se os programas com valor de execução acima de R$100 milhões, e então fazemos a comparação do que se pagou (portanto não só despesas empenhadas) até agora, com o que proporcionalmente se pagou no mesmo período de 2016.

A partir de uma inspeção nas duas tabelas é possível obter a diferença para os programas e ações mais importantes do orçamento do Ministério da Saúde. Minha dica é que deveremos ficar bem atentos a estes programas e seus resultados nos próximos anos, principalmente agora que a emenda do teto dos gastos está em vigor:

Percebam que programas tradicionalmente relacionados à atividade burocrática (o chamado programa “administração da unidade”), ou mesmo o controverso programa “Mais Médicos”, não foram objeto de cortes expressivos. Programas como a requalificação de UBS, distribuição de medicamentos, SAMU, programas relacionados ao combate ao HIV, doenças hematológicas foram objeto de revisão de despesas.

Este exercício pode ser repetido para verificar a integridade dos dados. Basta acessar o SIOP dados abertos pelo link, e fazer suas comparações para outros ministérios. https://www.siop.planejamento.gov.br/siop/.  A metodologia de estimação foi baseada em um corte proporcional do orçamento 2016, mas uma análise mais refinada pode tomar os dados de execução mês a mês para um acompanhamento detalhado.

Da análise destes dados podemos, portanto, fazer uma breve síntese da redução “surpreendente” até mesmo para a expectativa de mercado, das despesas, contribuindo para um superávit elevado do governo central:

A discussão que se faz sobre a política fiscal no governo tem, por muitos anos, permanecido no dilema nada shakeaspereano: “gastar ou não gastar, eis a questão”. Enquanto isso, quase nada se debateu sobre métodos mais eficientes de formulação do orçamento público e de uma revisão sistemática e bem fundamentada dos gastos com os principais programas.

Ao que parece da análise preliminar dos dados, o esforço do superávit será alcançado a um custo elevado em termos de bem estar da população. Torna-se mais do que necessário uma discussão das premissas para a revisão do gasto público que será necessária para o cumprimento do teto dos gastos: uma espécie de lei de diretrizes para a revisão orçamentária nos próximos anos legitimada pelo congresso e pela população.

Diogo Bardal é mestre em economia pela Universidade de Siena, Itália

Notas: [1]http://www.fazenda.gov.br/noticias/2017/fevereiro/fazenda-divulga-prisma-fiscal-de-fevereiro-de-2017/relatorio-mensal-2017_02.pdf [2] https://www12.senado.leg.br/ifi/pdf/RAF_fev2017 [3] http://www3.transparencia.gov.br/jsp/execucao/execucaoTexto.jsf?consulta=1&consulta2=0&CodigoOrgao=36000  
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