Sarampo, rubéola, poliomielite e difteria são doenças que já causaram pesadelos na população. Quase todo mundo com mais de 60 anos conheceu alguma criança que morreu ou algum adulto que ficou com sequelas permanentes devido ao vírus da pólio, por exemplo. Quem tem mais de 40 anos também se lembra de uma epidemia de sarampo que ocorreu em 1986 e afetou quase 130 mil pessoas nos Brasil. Mas para a geração daqueles que nasceram a partir da década de 1980 e estão tendo filhos agora, essas doenças parecem longe mesmo até da memória. Mas, infelizmente, o cenário dos últimos anos tem apresentado relevante mudança – e para pior.
No Brasil, após termos alcançado em 2016 o status de erradicação do vírus do sarampo pela Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, boletins recentes da entidade alertam para um surto da doença, que pode levar à morte ou graves sequelas em crianças infectadas. E se você pensa que o problema se concentra em países de renda baixa ou média, está enganado. Em fevereiro deste ano, a OMS emitiu alerta mundial após surto da mesma doença, até então entendida como erradicada na Europa, que registrou um aumento de 400% de ocorrências em 15 países da região, incluindo França, Alemanha, Suíça e Itália. Nos Estados Unidos a situação também não é diferente: em 2014 foi registrado um número recorde de casos de sarampo, com 667 casos de 27 estados, o maior número de casos desde que a erradicação do sarampo fora documentada no país em 2000.
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Como era de se esperar, as razões para tal triste mudança são diversas, e o peso de cada uma é de difícil mensuração. Primeiro, temos o problema do enfraquecimento de campanhas públicas em prol da vacinação, alertando para os riscos de tais doenças e a importâncias da vacinação. Quem se lembra do Zé Gotinha, aquele simpático personagem que estampava campanhas Brasil afora sobre a importâncias da vacinação infantil? Me pergunto por onde ele anda, em anos em que rubéola e poliomielite não passam de “flashes” de livros de biologia para pais e mães do século XXI.
Aliado à crescente ausência do poder público no âmbito do que podemos chamar de “sócio imaginário” da população temos também o preocupante desabastecimento de hospitais públicos ao redor do país, que certamente influenciou o não alcance da meta de 95% de imunização recomendada pela OMS em 2017 – quando o Brasil registrou 84% de taxa de imunização, o pior número dos últimos 12 anos. Em março deste ano, por exemplo, a falta da vacina que protege crianças de 2 a 6 meses contra cinco doenças, entre elas difteria, foi realidade em boa parte do Rio de Janeiro e outros estados do país, impedindo famílias de baixa renda a imunizarem seus filhos.
Se você, entretanto, está pronto para culpar apenas o Estado por mais essa mazela atual, reconsidere sua conclusão. Em anos de redes sociais e desinformação, um outro surto acende o sinal vermelho, tendo também relevante influência para a atual preocupação em relação a surtos de doenças até então tidas como erradicadas em grande parte do planeta. Trata-se do crescente movimento antivacinação, formado por pais e educadores que defendem a não imunização de crianças por considerar vacinas inseguras ou desnecessárias.
Apesar de incipientes no Brasil (levantamento do Estado de São Paulo aponta para por volta de 13 mil pessoas no Brasil organizadas em grupos anti imunização no Facebook), tais grupos ganham força, espelhando-se em já maiores movimentos em países como Estados Unidos, e apoiando-se em grande parte na desinformação. É o caso de artigo acadêmico que relaciona a vacina tríplice viral à ocorrência de autismo, de autoria do britânico Andrew Wakefield (publicado em 1998 na revista médica The Lancet), amplamente veiculado em redes sociais. Após a descoberta de falsificação de dados para o estudo, o autor teve sua licença cassada pela Conselho Médico Britânico em 2010, mas tal informação parece não dar o mesmo ibope. De fato, teorias como a de Wakefield são fáceis de acreditar devido a correlação temporal entre a época em que essa vacina é aplicada na criança e o diagnóstico de autismo, atrelado ao fato de que a medicina ainda não entende exatamente o que causa essa doença. Nós economistas sabemos que correlação não significa causalidade e já foi mais do que provado que a vacina SCR não causa autismo, mas o mito persiste.
Mas pais devem ter o direito de não vacinar seus filhos, correndo o risco que quiserem, correto? Não – ao menos não é o caso por aqui. No Brasil, a vacinação de crianças é obrigatória, garantida por lei de 1990 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Entramos então no território de direito individual X direito social, onde prevalece o segundo. Em outras palavras, se um pai acredita ser desnecessário vacinar seu filho (por quaisquer razões), este estará indo contra o direito do filho de outrem, que assim correrá o risco de ser infectado por uma doença contraída pelo filho do primeiro – e o Estado Brasileiro entende que isso é crime.
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Para entender melhor como isso funciona precisamos explicar o conceito de cobertura vacinal. Dependendo da doença e da facilidade com que ela é transmitida, calcula-se um mínimo de cobertura vacinal para imunizar toda a população. Para que uma doença continue erradicada normalmente é necessário vacinar cerca de 90% das pessoas. Com isso, o vírus (ou a bactéria) não consegue se espalhar e ninguém fica doente. Hoje a cobertura vacinal no Brasil está em torno de 75%, valor que não é suficiente para manter todo mundo protegido. Isso acaba prejudicando mais as crianças mais frágeis e doentes, que não podem receber vacinas por questões médicas. São crianças com síndromes de imunodeficiência (que tem o seu sistema de defesa tão fraco que mesmo os vírus atenuados das vacinas podem causar doenças graves) ou crianças em tratamento contra câncer, que estão com o sistema imunológico debilitado. Uma doença como a catapora, por exemplo, que muitas vezes não é grave para crianças saudáveis, é fatal para essas crianças que não podem receber vacinas.
Dessa maneira, não vacinar não é apenas uma atitude irresponsável em relação aos seus filhos, uma vez que a vacina é a única maneira cientificamente comprovada de prevenir doenças potencialmente graves. Não vacinar é também uma atitude egoísta contra as crianças que não podem ser vacinadas e que dependem do seu gesto para viver. Todos deveriam levar esse assunto a sério: governo, pais, educadores e formadores de opinião em geral, já que essas doenças não são apenas histórias antigas que as nossas avós contavam, são ameaças reais à saúde e a vida de nossas crianças e sociedade.
Rachel Borges de Sá Editora do Terraço Econômico Renata Kotscho Velloso Médica, formada em administração pública, vive e trabalha na Califórnia.