As previsões da rainha da Internet

Mary Meeker é uma pessoa atípica no Vale do Silício: em um ambiente dominado por homens jovens, essa senhora que completa 60 anos em 2019 produz o relatório anual mais esperado por empreendedores, investidores e interessados em inovação em geral.

O relatório deste ano é o primeiro que ela escreve fora da Kleiner Perkins, a empresa de capital de risco que ela foi sócia por quase 10 anos, e não decepciona. Nós do Terraço analisamos as 334 páginas da apresentação publicada no início de junho e trazemos a principais tendências da internet para vocês. O principal recado é: a competição está cada vez mais acirrada e a capacidade das empresas em coletar e analisar dados buscando personalização e satisfação dos clientes será a chave para o sucesso.

A internet hoje tem mais de 3,8 bilhões de usuário, é a primeira vez que o número de usuários atinge mais de 50% da população mundial. Mas o ritmo de crescimento vem caindo, o que pode ser notado por uma queda no crescimento das exportações de smartphones no mundo. O crescimento da participação do comércio online comparado ao comércio físico também cresceu, atingindo 15% do total de produtos comercializados, mas o ritmo de conquista desse mercado também diminuiu.

O maior espaço de crescimento ainda está na Ásia. Apesar da região já contar com 53% dos usuários, a penetração ainda é baixa (48%). Para comparar a América do Norte tem 9% dos usuários e uma penetração de 89% e a América do Sul tem 10% dos usuários mundiais com penetração de 62%. O Brasil é o quinto país em número de usuários, atrás de China, Índia, Estados Unidos e Indonésia.

Mercado Publicitário

Finalmente houve uma adequação entre o tempo que os usuários gastam em cada mídia e o valor investido em publicidade. 33% dos gastos com publicidade são feitos para anúncios para celulares, contra 18% de anúncios para computadores, o restante é dividido entre TV, rádio e imprensa escrita (a única categoria que ainda recebe mais anúncio do que o total de tempo dedicado pelos usuários: 7% dos gastos com publicidades contra 3% do tempo dos usuários).

As plataformas diferem com relação às suas estratégias para crescer sua parcela de receita de publicidade. O Facebook tem investido em personalizar os anúncios para cada audiência, o YouTube em inteligência artificial para editar e inserir anúncios automaticamente dentro dos vídeos, o Pinterest em criar catálogos virtuais e o Twitter em promover anúncios de maior relevância para cada audiência.

O fato é que o custo de aquisição de clientes online ainda é alto e não pode ficar para sempre acima do valor estimado deste cliente. A tendência também é dos anúncios ficarem cada vez mais multiplataformas uma vez que 88% dos usuários mantém algum outro aparelho na mãe quando está assistindo algum evento ao vivo, 71% olham o conteúdo relativo ao evento online e 41% mandam mensagens sobre o evento para amigos e familiares.

Tempo online

O tempo médio que os americanos ficam online atingiu 6,3 horas por dia (é mais do que os estudantes passam na escola) e pelo primeiro ano ultrapassa o número de horas médio na frente da TV. O maior tempo ainda é gasto no Facebook, mas YouTube e Instagram foram as plataformas que mais cresceram em 2018. Podcasts também tiveram um aumento expressivo, dobrando o número de ouvintes nos últimos 4 anos.

Setor Financeiro

Várias fintechs estão investindo no mercado de pessoas que não tem acesso à conta bancária. O aplicativo Square, por exemplo, emprestou um total de $ 4.5 bilhões em 2018, 58% dos quais foram para mulheres e 35% para minorias étnicas. O valor médio dos empréstimos ficou em $6.000. Inúmeras empresas duplicaram o número de usuários nos últimos dois anos: Alipay (China) com mais de 1 bilhão de usuários, Toss (Coréia do Sul) — 12 milhões, Nubank (Brasil) 9 milhões e Revolut (Europa) — 4 milhões de usuários. O potencial de crescimento é grande principalmente em locais onde a penetração do sistema financeiro tradicional é menor. No Sudeste Asiático, por exemplo, apenas 27% dos adultos possuem conta em banco.

Produção de conteúdo

Imagem e vídeos de curta duração (principalmente o formato “stories”) apresentaram o maior crescimento. As pessoas estão cada vez mais contando histórias através de imagens. Para Meeker nós sempre preferimos o visual, os textos foram apenas um atalho. É como diz o ditado “uma imagem vale mais do que mil palavras”.

Jogos

A tendência dos jogos é ficar cada vez mais interativa e comunitária, integrando ferramentas de conversa, mensagens e vídeo chat durante os jogos, como no sucesso Fortnite.

Foi também nos jogos que o modelo de negócios “freemium” aflorou. Esse é o modelo em que existe uma versão gratuíta do aplicativo e uma versão paga premium. O modelo saiu dos games para os sistemas empresariais como Google Suite e Zoom e depois para os consumidores finais, como no caso do Spotify.

Redes sociais

Uma parcela significativa dos usuários já percebeu que está ficando muito tempo nas redes sociais e está tentando diminuir o uso: 63% dos adultos nos EUA usam algum tipo de aplicativo para controlar o tempo que passam na frente das telas e 57% dos pais tem algum aplicativo que monitora o tempo e o conteúdo que o seus filhos acessam online. Percebe-se também nas redes sociais uma preocupação crescente com privacidade e com divulgação de conteúdo impróprio.

A maioria das pessoas hoje consome notícias pelas redes sociais, 43% afirmar ler as manchetes do dia no Facebook, 21% no Youtube e 12% no Twitter.

Em relação a mau comportamento nas redes o problema também é crescente: 42% dos adultos americanos já foram xingados, 32% sofreu com a disseminação de boatos falsos sobres eles e 16% recebeu ameaças físicas através das redes sociais. Isso tem levado a um aumento da remoção de conteúdo impróprio pelas plataformas e crescimento das agências de checagem de fatos. Mesmo assim 88% dos usuários americanos adultos ainda acreditam que para eles a internet faz mais bem do que mal, e 70% acredita que o saldo para a sociedade também é positivo.

Liberdade na Internet

O número de pessoas que está usando uma internet “parcialmente livre” está aumentando, enquanto que a internet “totalmente livre” e a internet “totalmente controlada” estão diminuindo de tamanho.

Analisados os parâmetros de acesso dos usuários a internet, censura a conteúdos e monitoramento dos usuários, os EUA ainda são o modelo mais livre, enquanto a China continua muito controlada. A Índia e a Europa tem um modelo intermediário em termos de acesso e controle do que o cidadão pode ver e fazer online.

As pessoas que advogam por uma internet mais livre acreditam que isso gera um processo de amadurecimento e responsabilização das pessoas. A autorregulação pode ser uma saída: Sigal Samuel da Vox, propôs a criação de estatuto de direitos e deveres do internauta, recebendo o apoio do Jack Dorsey, fundador do Twitter.

Nos EUA, o ex-juiz da Suprema Corte, Anthony Kennedy é favorável ao livre direito de expressão e acesso a conteúdos online, para ele, a “liberdade de se expressar online é um direito básico do ser humano”. O presidente da China Xi Jinping discorda, para ele é papel do governo manter um ambiente saudável e conteúdos educativos online.

Ataques cibernéticos

A atuação de hackers vem crescendo constantemente nos últimos anos, especialmente os ataques patrocinados por governos. Eles buscam atingir informações sensíveis de centros que armazenam dados em busca de informações financeiras, dados esses que podem influenciar eleições, propriedade intelectual e espionagem industrial.

Emprego

Os empregos online também estão expandindo e hoje nos EUA 6.6 milhões de pessoas trabalham em serviços sob demanda através de aplicativos (como Uber), contra 5,4 milhões em 2017. O trabalho remoto, porém, ainda é pequeno. Apenas 5% das pessoas trabalham em casa.

Educação

Vários modelos de negócio em educação apresentaram crescimento expressivo no último ano. O Coursera aumentou o número de instituições de ensino de prestígio na sua plataforma, o Udemy aumentou o número de usuários e instrutores, o Quizlet (que é um sistema em que alunos compartilham seus resumos) atingiu 50 milhões de usuários ativos por mês e o VipKid (que é uma plataforma que ensina inglês para crianças chinesas) triplicou de tamanho em 2 anos, atingindo 600.000 estudantes.

Hoje, 59% das pessoas da geração Z referem ter o Youtube como a principal ferramenta de estudo. Na plataforma do Youtube em 2018 houve 200 milhões de visualizações de conteúdo sobre livros (os “booktubers”) e 4,5 bilhões de visualizações de vídeo “how-to” que ensinam a fazer alguma coisa.

Imigração

Os estrangeiros continuam sendo uma fonte importante para a liderança dos EUA no mercado de tecnologia. 60% das empresas mais valiosas do setor foram fundadas por imigrantes ou por filhos de imigrantes, gerando 1,9 milhões de empregos. Hoje, 14% da população americana é composta por imigrantes, um percentual que está se aproximando do mais alto da história, 15% em 1910.

Saúde

Estamos finalizando o processo de digitalização da saúde, pelo menos no que tange o prontuário médico. Quase 100% dos prontuários dos EUA hoje são feitos em computador. Em termos de inovação na áreas alguns modelos de negócio que estão tendo sucesso são a colaboração online de médicos (Doximity), mercado para escolha de escolha de médicos e agendamento de consultas (ZocDoc), concierge de medicina em que o paciente consegue uma consulta rápida (Solv) e várias empresas de telemedicina.

Nos EUA, mais 3 milhões de consultas foram realizadas online por plataformas de telemedicina em 2018 (o modelo ainda é proibido no Brasil…) e mais de 80% dos hospitais tem algum serviço de telemedicina para atendimento pré e pós-hospitalar.

As grandes empresas de tecnologia sabem que o potencial de inovação no setor de saúde é enorme e tem investido na área. A Apple tem apostado no desenvolvimento de wearables (como o relógio que controla passos, frequência cardíaca e outros parâmetros de saúde), o Google tem investido em modelos de inteligência artificial para diagnóstico e a Amazon em modelos de automatização de controle e entrega a domicílio de remédios de uso contínuo.

China

O relatório termina com uma seção especial sobre a internet na China. Os jogos são o grande motor do desenvolvimento da Internet chinesa. Foram dos games que saíram modelos de negócios em áreas não relacionadas como moda, viagens, entretenimento, varejo e pagamentos. Até filantropia tem plataforma de jogos. Um modelo de gamificação conseguiu envolver 500 milhões de usuários em um projeto colaborativo que plantou 100 milhões de árvores reais.

Outra tendência na China são os chamados super apps, que consolidam vários aplicativos. Por exemplo, existe um app em que o usuário tem todos os sistemas de entrega de comida em casa podendo assim comparar preços e tempo estimado de entrega de diferentes serviços, ou aplicativos em que você pode acessar diversas lojas, ao mesmo tempo, com um único sistema de pagamento.

E por fim, no mercado de comércio online, a moda na China é vídeo ao vivo feito por influencers em que os produtos mostrados podem ser comprados diretamente do aplicativo com apenas um clique.

A conclusão final é que apesar do ritmo de crescimento ter diminuído e a competitividade aumentado, ainda há muito espaço para inovação. Determinadas indústrias devem mudar radicalmente de cara em pouco tempo, como, por exemplo, a indústria automobilística que pode passar de um modelo de propriedade para um modelo de assinatura de veículos.

O mesmo pode acontecer com eletrodomésticos em que o cliente passará a alugar um produto quando precisar e não mais comprar. Com a disseminação dos assistentes de voz, como Amazon Echo e Google Home e vários outros produtos capazes de coletar dados, as empresas saberão cada vez mais sobre nós e a discussão sobre ética e moral na Internet deve ficar cada vez mais acalorada.

Acesse o relatório completo da Mary Meeker: Internet Trends 2019

Renata Velloso

Se de médico e louco todo mundo tem um pouco, Renata tem muito. Logo após se formar em Administração Pública pela EAESP-FGV, trabalhou no mercado financeiro com passagem pelo Citibank, Chase e JPMorgan. Certo dia, cansada da vida boa e rica no ar condicionado, resolveu abandonar tudo para ir estudar Medicina na Unicamp, onde se formou em 2010. Atualmente, além de ser bela e recatada, trabalha com projetos de inovação na área de saúde no Vale do Silício na Califórnia e também é autora do Criando Unicórnios, um livro de empreendedorismo para jovens e adolescentes.

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