A reforma previdenciária é um tema recorrente no Brasil atualmente, mas que sinalizou sua necessidade desde a aprovação da Constituição de 1988. Desde a promulgação da CF – 88, somente os ex-presidentes FHC e Lula conseguiram algum avanço – ainda que parcial – nessa área. O primeiro criou o chamado fator previdenciário, mecanismo utilizado para diminuir o tamanho do benefício concedido de forma inversa à idade de aposentadoria; trata-se de um prelúdio da idade mínima. Já o segundo, conseguiu aprovar uma reforma que diminuía as aposentadorias futuras dos servidores públicos – sendo considerada uma grande vitória à época [1].
Recentemente, o tema foi alçado mais uma vez ao centro do debate, tanto pelo ex-ministro da Fazenda, Joaquim Levy, quanto pelo atual titular da pasta, Henrique Meirelles. Mas, antes de tudo, para entendermos o que é a tal reforma da Previdência e quais as mudanças necessárias, precisamos compreender como funcionam os sistemas previdenciários, não só do Brasil, como do mundo todo.
Dois sistemas para a Previdência
No Brasil, adotamos o modelo chamado de pay-as-you-go, que era adotado também por vários outros países até os anos 90. Ao contrário do que se pensa, as contribuições de hoje não servem para custear a aposentadoria futura do trabalhador, mas sim os benefícios daqueles que já estão aposentados. Em outras palavras: aqueles que estão na ativa contribuem para bancar os benefícios dos inativos.
O problema é que esse modelo só é sustentável enquanto há poucos aposentados em relação ao número de (potenciais) contribuintes. Em outras palavras: quando a razão de dependência de idosos é baixa.
Com o aumento da expectativa de vida causado pela globalização [2], o envelhecimento da população e a diminuição da taxa de natalidade, países do mundo todo foram forçados, ainda na década de 90, a reformarem seus sistemas de seguridade social. Muitos abandonaram o sistema pay-as-you-go, e partiram para uma outra alternativa: o chamado modelo de capitalização, a fim de garantir a solvência de longo prazo do sistema. Nesse novo modelo, as contribuições são depositadas em contas individuais, o dinheiro é investido e serve para bancar o benefício futuro do trabalhador.
Previdência no Brasil
Como já dito anteriormente, no Brasil adotamos um sistema há muito abandonado – ou nem sequer adotado, em primeiro lugar – pela maioria dos países do mundo. Mas o problema não se limita a abraçarmos um modelo arcaico. Aqui, em terras tupiniquins, temos uma das previdências mais generosas do mundo. É de se imaginar que, quanto mais idosos em relação a população total, maior o gasto de um país com aposentadorias.
O grande problema é: a benevolência da Previdência do Brasil é como um saco sem fundo. Temos uma relação, no mínimo, questionável: Note que, mesmo tendo apenas 7,6% da nossa população com mais de 65 anos, gastamos cerca de 10,2% do nosso PIB com Previdência – quando o esperado seria algo em torno de 3,7%. Gastamos a mesma proporção do PIB com Previdência que a Alemanha, um país 3 vezes mais velho que o nosso. Apenas para efeito de comparação, o Bolsa Família, que atende mais de 50 milhões de pessoas, consome por volta de 0,5% do PIB.
Somos um país jovem que gasta como país velho. E não para por aí: não apenas a magnitude do gasto é espantosa, como a trajetória dele também é assustadora. O déficit estimado para esse ano – aqui desconsiderando os gastos dos governos estaduais e municipais com essa rubrica – é de cerca de R$210 bilhões. Os rombos recordes comprometem a capacidade de investimento do Estado brasileiro.
Mas por que tamanho rombo? O que leva o Brasil a gastar desproporcionalmente à sua população idosa? Nossas instituições e demografia estão no âmago dessa questão, e são capazes de nos ajudar a compreender o que se passa com a Previdência brasileira.
Instituições
Quando comparado aos países da OCDE, o Brasil tem uma das menores idades médias de aposentadoria para homens – e o mesmo vale para as mulheres. A diferença é gritante. Somos um dos países onde se aposenta mais cedo no mundo todo. Também somos um dos únicos países sem uma idade minima para aposentadoria (que, ao redor do mundo, é de cerca de 65 anos). Veja no gráfico abaixo:
Além disso, a explicação institucional também passa pelo fato de que o piso do INSS é indexado ao salário mínimo, que vem aumentando de maneira imparável nos últimos anos (seguindo a fórmula de reajuste: inflação do ano anterior + crescimento real do PIB dos dois anos anteriores). O resultado é um aumento também incessante dos gastos com aposentadorias, uma vez que, de acordo com a Dataprev, 69,3% dos benefícios pagos pelo INSS, em 2013, eram no valor de 1 salário mínimo.
Além disso, o piso da assistência social aos idosos, garantida pelo Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social (BPC/LOAS) é igual ao do INSS, de 1 salário mínimo. Ou seja: o piso para quem contribui e para quem não o faz é exatamente o mesmo! Para quem ganha pouco, qual o incentivo que se tem para contribuir, sabendo que, caso não contribua, receberá o mesmo? O resultado é um aumento da informalidade e uma redução das receitas do INSS.
Demografia
Outro fator, como já citado, é que a expectativa de vida vem aumentando, não só no Brasil como no mundo todo. E isso, obviamente, é algo para ser comemorado; significa que o brasileiro está vivendo mais e com maior qualidade de vida na velhice. Porém, essa maior expectativa de vida constitui desafio para o futuro, especialmente considerando o cenário previdenciário brasileiro atual.
Afinal, como dito, nosso modelo previdenciário só é sustentável enquanto houver poucos aposentados em relação ao número de contribuintes. No passado, quando foi criada a Previdência, isso era uma realidade. Mas num futuro não muito distante de hoje, o deixará de ser.
O Brasil está passando pela transição demográfica que vários países já experimentaram no passado. O chamado bônus demográfico, situação na qual a demografia de uma nação favorece o crescimento econômico (com menos dependentes em relação à população apta a trabalhar), está perto do fim. Desperdiçamos nossa janela de oportunidade. A população brasileira está envelhecendo e a população em idade produtiva (PIA) crescendo a taxas decrescentes, o que causará uma inversão em nossa pirâmide etária, como mostram os gráficos a seguir:
Veja que, em 2010, tínhamos 68,2% da nossa população em idade ativa (entre 15 e 64 anos) e apenas 7,6% de idosos (acima de 65 anos). Já em 2060, de acordo com as projeções do IBGE, teremos 60,2% de nossa população em idade ativa, contra 26,7% de idosos. Em números absolutos, teremos 2,25 brasileiros em idade ativa para cada idoso. O resultado, como explicado mais cedo neste texto, é um aumento da razão de dependência dos idosos, que nada mais é do que a população total de idosos dividida pela população em idade ativa.
Some-se tudo o que foi demonstrado neste texto aos inúmeros gargalos para o crescimento [3], e o resultado é não apenas trágico, mas catastrófico. Sem uma ampla reforma da Previdência, teremos um déficit que pode chegar 11,6% do PIB, e gastos com benefícios que podem atingir incríveis 17,8% do PIB, de acordo com projeções dos ministérios do Trabalho e Previdência Social (MTPS) e da Defesa (MD). São números completamente descolados da capacidade do erário de arcar com as contas. Somos o país que promete aquilo que jamais conseguirá entregar.
Como consequência, serão necessárias expressivas e sucessivas rodadas de aumentos de impostos e/ou endividamento do Estado, sacrificando o crescimento futuro e os investimentos que poderiam ser feitos em outras áreas. A conta simplesmente não fecha.
Como os recursos do orçamento são finitos, teremos de escolher entre abrir mão de benefícios previdenciários ou de investimentos mais robustos em setores como educação, saúde e infraestrutura.
Nossa Constituição é uma tentativa de tropicalizar o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) dos países europeus. Acontece que todos esses países primeiro se desenvolveram e enriqueceram, para só então expandirem o Estado e garantir diversos serviços públicos, programas sociais e tudo mais que a população deseja – claro, com a devida contrapartida dos impostos mais elevados. E, ainda assim, nos dias atuais, esses países vêm questionando a sustentabilidade desse modelo de Estado.No Brasil, tentou-se colocar a carroça na frente dos bois: tentamos criar um Estado padrão europeu num país muito mais pobre. Os resultados desse modelo são, pelo menos, insatisfatórios: temos deficiência – para não dizer falência – na provisão de diversos serviços públicos.
O que pode ser feito?
A assunção da existência do problema é o primeiro passo. Negar a realidade não vai controlar o gasto ou evitar um colapso total do sistema.
É impossível parar o envelhecimento da população, ainda que quiséssemos. Logo, é preciso modificar nossas instituições previdenciárias, de forma a garantir a sustentabilidade do sistema no futuro que está por vir.
A mãe de todas as medidas, a qual já foi proposta pelo Ministro Henrique Meirelles, é aprovar uma idade mínima para aposentadoria, de 65 anos, com reajuste automático vinculado à expectativa de vida da população.
Atacar privilégios é essencial, como as pensões vitalícias e o acúmulo de benefícios – coisa que o governo já vem fazendo[4]. É preciso, também, desvincular o piso da Previdência do salário mínimo, haja vista o elevado custo fiscal dessa vinculação.
Por fim, no longo prazo, poderíamos adotar um sistema de contas individuais, como aquele já descrito no início do texto, que não só é mais solvente, do ponto de vista atuarial, como também conta com o benefício de aumentar a poupança doméstica, favorecendo o crescimento futuro. Ademais, seria interessante combinar esse modelo com uma espécie de proteção aos idosos mais pobres (diferente, é claro, do que temos hoje, onde os mais pobres não encontram incentivos para contribuírem ao sistema).
Reformar a Previdência é um dos maiores desafios do governo de Michel Temer, dado o peso dela sobre as contas públicas, sob a pena de vivermos uma longa estagnação, jamais conseguirmos cortar gastos e impostos à frente, e ficarmos marcados como o país que envelheceu antes de se tornar rico. É preciso contrariar fortes grupos de interesse, pressão de sindicatos e inúmeras mentiras que venham a ser contadas no caminho. Afinal, os dados mostram que essa reforma não só é necessária, como urgente.
Precisamos de uma inflexão na trajetória dos gastos previdenciários. O Estado precisa se libertar da situação de refém de pequenos grupos de interesse, que causam grande impacto orçamentário, e tomar as medidas necessárias – ainda que impopulares – para benefício do país.
Gabriel Nemer Tenoury Graduando em economia pela Insper-SP
Notas:
[2] http://estadominimo.com/index.php/2016/07/25/um-milagre-chamado-globalizacao/
[3] http://estadominimo.com/index.php/2016/08/03/a-chave-para-a-prosperidade/