O ano de 2017 tem sido um ano cheio de surpresas, abusando do eufemismo. Descartando rebuliços, reformas e turbulências nas Terras Tupiniquins, presenciamos a posse de Donald Trump e seus fervorosos discursos e tweets; vimos tristes e pavorosos ataques terroristas se espalharem do Egito ao Iraque, de Londres à Estocolmo; nos surpreendemos com o bombardeio norte-americano à Síria; assistimos ao desmonte institucional da Venezuela e da Turquia; esperamos o imprevisível resultado das eleições francesas e ainda o desfecho da crescente fricção entre EUA, Rússia e Coreia do Norte. Como se não bastasse, para completar o cenário de confusão mental geopolítica antes mesmo do final de abril, nos deparamos com um noticiário sobre Eleições Gerais no Reino Unido – agora que estávamos finalmente entendendo a história do Brexit (!).
O que aconteceu? Para o que acontece na terra da Rainha hoje, é preciso primeiro entender um pouco mais sobre o sistema político-eleitoral britânico. O Reino Unido é uma Monarquia Parlamentar, onde o Monarca (no caso, a Rainha Elizabeth II) é o chefe de Estado, mas possui papel não partidário e majoritariamente cerimonial, enquanto o Primeiro Ministro é o chefe de Governo, cujos direitos e deveres emanam e são objeto de escrutínio do Parlamento (no caso, composto pela Câmara dos Lordes [1] e pela Câmara dos Comuns). Em outras palavras, o Primeiro Ministro é quem manda, mas seus colegas parlamentares tem muito a apitar sobre isso.
Em termos eleitorais, os membros da Câmara dos Comuns do Parlamento (conhecidos como MPs – Members of Parliament) são eleitos por voto popular e majoritário para representar os 650 distritos eleitorais do Reino Unido. À medida que cada parlamentar eleito representa um distrito, a Câmara dos Comuns é composta por 650 membros. Ao final de cada eleição, o Monarca aprovará o líder do partido ou coalização vencedora do pleito a formar um governo em seu nome, do qual normalmente o mesmo é determinado o Primeiro Ministro. Se um partido obtiver a maioria qualificada dos assentos no Parlamento (326) poderá formar um governo majoritário cujo líder será o Primeiro Ministro; caso contrário, o partido com maior número de votos deverá formar um governo de coalizão com os demais partidos. A essa eleição de MPs dá-se o nome de Eleições Gerais.
Desde 2011 (a partir da promulgação do Fixed-term Parliament Act 2011), tornou-se obrigatória a realização de Eleições Gerais a cada cinco anos, determinando assim um tempo máximo para cada Parlamento. Entretanto, estabeleceu-se também que um voto de desconfiança em relação ao Governo atuante (conhecido como no confidence vote) ou uma maioria de dois terços no Parlamento teriam a mesma prerrogativa de estabelecer novas Eleições Gerais. No caso que vemos hoje, Theresa May optou pela segunda opção. Em 19 de abril deste ano, May conseguiu apoio no Parlamento para conduzir novas eleições antes de findos os 5 anos do mandato do Parlamento atual, do qual ela é Primeira Ministra (iniciado com David Cameron em 2015, a terminar em 2020).
Mas porque a decisão de antecipar as Eleições Gerais e qual a relação do Brexit com isso tudo? Para entender a motivação e estratégia por trás de tal decisão de Theresa May, é importante lembrar que a Primeira Ministra se tornou chefe de Governo após a renúncia de seu colega de partido (do então governo majoritário Conservador), David Cameron. Ao apoiar fortemente a campanha para a permanência do Reino Unido na União Europeia, a vitória do Brexit levou à renúncia do então Primeiro Ministro, que então declarou que o Reino Unido “precisava de uma liderança renovada para conduzir o país em direção à vontade popular – agora, diferente da sua”[2].
Apesar de também opositora à campanha do Brexit, Theresa May assumiu a posição do líder que conduziria o Reino Unido de acordo com a vontade do povo expressada nas urnas. Brexit means Brexit tornou-se seu mote, e a Primeira Ministra tem desde então focado seus esforços em provar ao eleitor britânico (e a seus próprios colegas de governo) que fará dos limões (podres) que lhe foram entregues uma limonada. Ou seja, que sairá da União Europeia sob os melhores termos possíveis, ao mesmo tempo em que manterá a condição de mercado e player global do Reino Unido em um cenário mercado pela crescente onda protecionista. Diferente do discurso de Donald Trump, May e o governo britânico atual defendem que a saída da União Europeia será marcada pela defesa das fronteiras e direitos do povo britânico sem perder a direção a uma renovada Global Britain cujo foco será “construir e fortalecer laços com antigos amigos e novos aliados” [2].
Se isso será possível ou não, são outros quinhentos. O que importa para a atual discussão é que apoiar tal discurso trouxe a nova Primeira Ministra e seu partido ao topo. Em pesquisas de intenções de voto realizadas em meados de março, o Partido Conservador mostrou-se com uma larga vantagem de 21 pontos à frente de seu maior opositor, o Partido Trabalhista, enquanto 55% da população declarou ver em May a melhor candidata para liderar o país [3]. Nesse sentido, o atual momento revelou-se mais do que ideal para a condução de novas eleições, fortalecendo sua posição como Primeira Ministra com seu próprio mandado (diferente de ter substituído David Cameron) e o Partido Conservador como governo majoritário – dirimindo, assim, a oposição interna em relação a seus planos para a saída da União Europeia. Finalmente, o fato de terem as negociações com a União Europeia apenas acabado de começar (durarão dois anos), e estando, portanto, ainda ausentes seus maiores impactos econômicos negativos, o momento atual para tal prova de aceitação parecia ter-se tornado mais do que oportuno – parecia então urgente.
Entretanto, após a dissolução do parlamento 25 dias úteis antes das eleições (período pré-eleitoral que salvaguarda decisões importantes de serem tocadas “a toque de caixa” logo antes de eleições, chamado de Purdah), May e seu partido depararam-se com uma quase que reviravolta não muito agradável. Trazendo para a discussão tópicos além do Brexit, como a diminuição do Estado do bem-estar social e os sistemas de saúde e previdenciário – soa familiar?– o Partido Trabalhista liderado por Jeremy Corbyn (atual líder da oposição na Câmara dos Comuns) ganhou os holofotes, a intenção de voto da maioria jovem do país e a vitória que parecia tão certa há dois meses tornou-se “só que não”.
De fato, a estratégia de May parecia um bom plano – fortalecer seu apoio, liderar a saída do Reino Unido da União Europeia com maior legitimidade, levar o Partido Conservador a uma há muito não vista maioria. Mas se o ano de 2017 nos ensinou alguma coisa, foi que nada no mundo de hoje é certo. Quem diria, é provável que hoje a Primeira Ministra de uma das nações mais ricas e desenvolvidas do mundo encontraria simpatia no Presidente da República das Bananas – ambos em compasso de espera.
Rachel Borges de Sá, editora Terraço Econômico
Referências
[1] A Câmara dos Lordes é a chamada “Câmara Alta” do Parlamento Britânico, que é bicameral. Seus 805 membros (número que varia de acordo com os anos) são indicados, não eleitos, e sua função é, grosso modo, revisar e analisar leis e decisões oriundas da Câmara dos Comuns – mas não tem o poder de suspender sua aprovação, com raras exceções.
[3]http://www.telegraph.co.uk/news/2017/01/17/theresa-mays-brexit-speech-full/
[4] http://www.haaretz.com/world-news/europe/.premium-1.784037
3 Comentários