O tiro britânico que saiu pela culatra: os primeiros impactos da eleição no Reino Unido

Mais do que nunca, o futuro da política e da economia britânicas pode ser resumido em uma palavra: incerteza. Após o referendo da independência escocesa em 2014, eleições gerais que resultaram em uma inesperada maioria parlamentar em 2015 e por sua vez conduziram o país ao referendo que decretou sua saída da União Europeia em 2016, o Reino Unido conseguiu mais uma vez surpreender o mundo. Aquilo que parecia ser uma cartada certa da Primeira Ministra Theresa May acabou se tornando o que já está sendo chamado de “gol contra do ano” [1].

Como explicamos aqui em mais detalhes, May optou por convocar eleições gerais três anos antes da data prevista no calendário eleitoral, quando pesquisas apontavam uma larga vantagem de 20 pontos de seu Partido Conservador ante seu maior rival, o Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn. A premiê argumentava que, ante o início das complexas negociações do chamado Brexit, que devem começar este mês e se estender por quase dois anos, o país necessitava da liderança “forte e estável” que apenas uma ampla maioria parlamentar de seu partido poderia fornecer [2]. Nesta quinta-feira (08/06), o tiro saiu pela culatra quando os britânicos deram aos Conservadores de May uma vantagem de apenas dois pontos sobre o Partido Trabalhista. Devido às desproporcionalidades geradas pelo sistema eleitoral britânico (baseado em distritos), a margem de 42% a 40% no voto popular traduziu-se, respectivamente, em 318 cadeiras para os Conservadores e 262 para os Trabalhistas. Como são necessários 326 deputados para obter a maioria absoluta, o resultado foi o chamado hung parliament: uma composição parlamentar na qual o partido vencedor não consegue governar sozinho sem coligar-se (formal ou informalmente) a outra legenda – o familiar governo de coalizão para nós brasileiros.

O resultado mais imediato deste revés é que o governo “forte e estável” que May tanto esperava traduziu-se em um cenário de profunda incerteza para o país nos próximos anos. Na manhã seguinte à eleição, Theresa May anunciou que havia obtido o consentimento da Rainha para formar um governo de minoria apoiado pelo Democratic Unionist Party, ou DUP, que conseguiu eleger 10 parlamentares. Se aprovada formalmente pelo DUP, a estratégia, entretanto, dará a nova coligação apenas duas cadeiras a mais do que o mínimo para conseguir governar. Nesse contexto, pesam contra May e o recém-eleito governo esse e outros importantes fatores que guiarão o futuro de uma das mais antigas democracias do mundo.

Primeiramente, devido às distorções do sistema first-past-the-post, que costuma gerar vencedores absolutos nas eleições, o Reino Unido não tem uma tradição política de governos de minoria. Na história recente britânica, apenas duas eleições não produziram maiorias absolutas: em fevereiro de 1974, que resultou em uma minoria Trabalhista; e a de 2010, que resultou em uma minoria Conservadora que governou a partir de uma coalizão formal com os Liberais Democratas. O cenário de 2010 dificilmente deve se repetir: a discrepância de tamanho entre os Conservadores e o DUP faz com que uma coalizão formal seja praticamente inviável. Já o cenário de 1974 é desanimador para May: o governo durou pouco mais de seis meses, forçando o premiê Harold Wilson a convocar novas eleições para outubro daquele mesmo ano.

Um segundo fator de incerteza é a natureza do DUP. O partido teve origem na Irlanda do Norte em meados dos anos 1970, período marcado pela escalada do conflito entre católicos e protestantes. Fervorosamente protestante e radicalmente favorável à permanência da Irlanda do Norte no Reino Unido, o DUP é considerado o partido unionista (isto é, de oposição ao separatismo) mais radical da Irlanda do Norte. Isso gera duas potenciais fontes de problema para Theresa May. Na Irlanda do Norte, as outras 7 cadeiras no Parlamento de Westminster foram vencidas pelo Sinn Féin, partido fortemente católico e nacionalista, que defende a unificação do hoje território integrante do Reino Unido com a República da Irlanda. A proeminência política recém adquirida pelo DUP gera o risco de reacender as disputas sectárias na região, que têm se mostrado capítulo superado desde o Acordo de Belfast de 1998.

A outra fonte de instabilidade vem da Escócia, onde o partido nacionalista SNP (Scottish National Party) segue somando a maioria absoluta das cadeiras do país em Westminster. A Primeira Ministra escocesa (cujo título em inglês possui a sutil diferença de ser chamado de First Minister) Nicola Sturgeon já havia obtido em março a autorização do parlamento escocês para demandar um segundo referendo de independência, sob o argumento de que os escoceses haviam se posicionado majoritariamente contra o Brexit, e mereciam, portanto, a oportunidade de rever sua permanência no Reino Unido. Com o DUP formando a base de apoio de Theresa May em Westminster, é improvável que os nacionalistas escoceses consigam quaisquer concessões do governo central em Londres, sob o risco de estabelecer um precedente que leve o Sinn Féin a fazer demandas similares para a Irlanda do Norte futuramente. Como isso afetará as relações entre a Escócia e o resto do Reino Unido é mais uma entre as dúvidas que pairam sobre os rumos do país.

As incertezas no campo político são refletidas diretamente no cenário econômico, que será outro grande desafio para o frágil governo de May. Ensaiando piora desde a vitória do Brexit há um ano, a economia britânica já mostra os primeiros sinais de fraqueza, reflexo da incerteza político-econômica do país – o Reino Unido registrou crescimento de 0,2% do PIB no primeiro trimestre de 2017, ficando atrás da média de seus vizinhos europeus, e longe de seus históricos rivais Alemanha e França, com 0,6% e 0,4% respectivamente. Ao mesmo tempo, com ou sem Brexit, fantasmas estruturais como a baixa produtividade (atualmente, 16% mais baixa do que a média do G7 [3]) e a desigualdade regional teimarão a assombrar o governo na ausência de políticas econômicas de longo prazo, capazes de dirimir o saudosismo daqueles que se sentem prejudicados pela globalização, comércio e tecnologia.

Neste contexto, a dose adicional de instabilidade atrelada à nova composição do parlamento alimenta ainda mais a incerteza econômica. No dia seguinte à eleição, a libra esterlina registrou sua maior desvalorização desde outubro, voltando aos níveis registrados logo após o referendo do Brexit [4], refletindo a desconfiança do mercado. A desvalorização da moeda também tende a elevar o índice de inflação, que após anos girando em torno de zero, já chegou ao patamar de 2,7% em abril deste ano, impulsionado pelos preços mais altos das importações [5].

Finalmente, como cereja do frágil bolo doméstico, o Reino Unido ainda enfrentará as negociações com a União Europeia que dizem respeito à saída britânica do bloco, marcadas para começarem ainda esse mês. Altamente dependente de exportações para seus vizinhos continentais (que respondem por quase 45% do PIB britânico [6]) e com um governo enfraquecido, o Reino Unido arrisca tornar-se presa ainda mais fácil para negociadores do lado europeu, para quem a incerteza é bem-vinda à medida em que tentam usar o exemplo britânico como escudo contra o moral hazard – em outras palavras, para sinalizar a todos os membros que abandonar o projeto europeu não será tão simples assim.  Nesse contexto, o bloco europeu parece mais unido do que nunca. Donald Tusk, presidente do Conselho da UE, já deixou claro: março de 2019 será o prazo final das negociações, além do qual qualquer atraso pode arriscar a conclusão de um acordo com o bloco.

Durante toda a campanha eleitoral, May evitou dizer qual seriam seus objetivos e estratégias nas negociações – dando a entender, no entanto, que o cenário mais provável era um hard Brexit, envolvendo o corte total de vínculos com a UE, incluindo a saída do mercado único. O resultado seria uma nova relação comercial baseada nas regras da OMC, com a súbita elevação de tarifas. Este cenário, potencialmente desastroso para uma economia amplamente dependente do comércio com a Europa, pode ao menos ter ficado menos provável após o pleito da semana passada. Além de contar com uma base de apoio tênue, May também dependerá de um contingente de novos deputados Conservadores eleitos para representar distritos da Escócia, onde o desejo majoritário é pela preservação de vínculos com a UE. De fato, a nova composição ministerial de May já faz pressão por uma saída mais branda. [7]

Se este possível cenário de soft Brexit vier a se concretizar, a desastrosa eleição convocada por May poderá ainda se mostrar uma benção para o futuro econômico do país. Enquanto isso, o país, a Europa e o resto do mundo aguardam – sabendo que, ao menos pelo futuro próximo, a única certeza é a incerteza.

Beni Fisch, Colaborador Terraço Econômico

Rachel Borges de Sá, editora Terraço Econômico

 

Referências

[1] http://www.dailymail.co.uk/news/article-4586396/Social-media-EXPLODES-shock-exit-poll.html

[2]https://www.indy100.com/article/theresa-may-strong-and-stable-conservative-party-general-election-2017-7696966

[3] Project Syndicate   

[4] https://www.ft.com/content/ebe31884-2802-3178-88ff-847fb2d09912

[5] https://www.ft.com/content/a55933f2-3bc5-11e7-ac89-b01cc67cfeec?mhq5j=e3

[6] https://fullfact.org/europe/uk-eu-trade/

[7] https://www.ft.com/content/e79e9f26-4f67-11e7-bfb8-997009366969?mhq5j=e3

Rachel de Sá

Mestre em Economia Política Internacional pela London School of Economics, mestranda em Economia, Desenvolvimento e Políticas Públicas pelo IDP, e graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP. Idealizadora do canal do Terraço Econômico no Youtube, acredita que educação financeira é para todos, e sempre busca explorar a linha tênue entre ciência política e economia.
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