Capitalismo x Comunismo: a batalha do século (passado)

O problema com a maioria das discussões sobre economia e política é a insistência nos rótulos. O rótulo per se não é um problema. A dissociação entre rótulo e conteúdo, sim. O uso de termos como neoliberal, fascista, golpista, comunista e afins é uma das armas preferidas nas batalhas tribais. É assim que as palavras se tornam cascas, vazias de significado.

Vamos brincar de rotular? Começando pelo lado esquerdo: não sei, não sei, fdp, ladrão, incompetente, golpista, neoliberal, não sei, corrupto. Retirada de: Folha de São Paulo.

“Após o golpe neoliberal privatista de desnacionalização […]”

Vinícius, 42, professor universitário.

Dentre esses tantos termos saturados entre os minions, escolho dois que nem foram citados anteriormente: capitalismo e comunismo. Você, crítico das mazelas do capitalismo selvagem! Consegue me explicar de onde ele veio? Sim? Qual a origem do capitalismo? Apostaria sua vida nisso? Adianto que eu não o faria, é tolice. O capitalismo é uma força da história. E você? Alarmista da ameaça comunista? O que é comunismo? Sua vida vale tal resposta? Não é possível que uma ideia seja explicada sem sequer compreendê-la.

Sobre a primeira pergunta, o debate é intenso e foi até batizado: polêmica Dobb-Sweezy. Inúmeros acadêmicos se debruçaram sobre a questão. Um deles, Maurice Dobb, explicou a queda do feudalismo e a ascensão do capitalismo através das “relações internas” que sustentavam o sistema feudal enquanto modo de produção.

Simplificando, o importante era a soma das relações entre todo mundo que resultava naquele modo de vida. Ao longo do tempo essas relações foram mudando, assim, o modo de vida também mudou. Tinham os senhores e os servos, toda aquela história. Vários fatores se combinaram e contribuíram para essa mudança, por exemplo:

Contudo, isso não aconteceu de uma hora para outra, muito menos de forma igual em todas as regiões da Europa. Sim, amigão. Europa. Tempo e lugar importam, porém, geralmente você não considera esses fatores na sua papagaiada das redes sociais, não é? O capitalismo não chegou com o pé na porta, houve um período de transição entre feudalismo e capitalismo.

O outro lado da polêmica, representado por Paul Sweezy, faz apontamentos diferentes. A característica central do feudalismo seria o objetivo da produção: consumo próprio. Sendo assim, os recursos e os incentivos para o comércio e a criação e expansão de mercados eram consideravelmente reduzidos. É importante ressaltar que o mercado aqui não essa entidade megalomaníaca que você fala, tá certo?

Quando ler essa palavra, pense em duas pessoas: uma quer comprar e a outra quer vender. Elas se encontram, conversam, fazem negócios e fim de papo. Se você não é PhD em sociologia pela Sorbonne, deixe essa discussão de exploração do capital pra depois. Retomando, a derrocada do feudalismo e o triunfo do capitalismo, na visão do Sweezy, foi uma combinação de fatores externos, por exemplo:

Daí em diante é história, certo? Errado. O debate se estendeu, passou por inúmeras especifidades e discordâncias entre os dois. Muitos acadêmicos contribuíram para ambos os lados, outros se dedicaram a avaliar e sintetizar a discussão. O negócio tá rolando até hoje.

“Diante da atual crise do sistema capitalista global […]”

Mateus, 19, integrante do movimento estudantil.

Agora vamos para a segunda questão, seu “burguês safado”! O comunismo tem suas raízes no Manifesto do Partido Comunista, escrito por Karl Marx e Friedrich Engels. Foi ali que eles deram a letra: “a história de todas as sociedades até o presente é a história da luta de classes.” Lembrando que eles eram dois alemães vivendo na Inglaterra e o manifesto foi escrito em 1848. Tempo e lugar IMPORTAM!!!

Bom, a ideia é a seguinte: o capitalismo chegaria num estágio insustentável e a classe dominante (burguesia) seria derrotada, na base da porradaria, pela classe dominada (proletariado). Depois disso, um período de transição (ditadura do proletariado) seria necessário para que uma sociedade equilibrada, sem classes sociais, e cujos donos dos meios de produção seriam os próprios trabalhadores, fosse estabelecida.

Grosso modo, essa era a receita de Marx e Engels para lidar com o iminente colapso do sistema capitalista. Apesar de as condições de vida extremamente precárias na época observada por eles, ainda estou esperando o colapso até hoje. Só se a tal crise estiver acontecendo há uns 170 anos…

Um adendo sobre aquilo que pensam ser sinônimo de comunismo, o socialismo, que pode ser considerado um conjunto de ideias acerca de:

O socialismo (conhecido também como “socialismo utópico”) surgiu nos séculos XVIII-XIX, entre pensadores franceses e ingleses. Alguns desses apontavam o governo como responsável pela promoção dos valores descritos acima. Marx e Engels ofereceram uma vertente específica do socialismo, o dito “socialismo científico”. Não dá pra deixar de falar que eles liam e estudavam muito, a visão de mundo do Marx era baseada em autores como Hegel (filosofia), David Ricardo (economia política) e nos próprios socialistas utópicos.

Inclusive, durante o período de transição para o comunismo, Marx defendia os impostos progressivos e a educação pública e gratuita. Uma importante observação é: entender os escritos de Marx é dificílimo, seu contexto mais ainda. Por sorte, sempre que necessário há um PhD em sociologia pela Sorbonne para aplicá-lo à análise do Brasil em pleno 2019.

“Esquerda? É tudo aquilo que não é Bolsonaro! Seu socialista, comunista!”

Jefferson, 27, programador.

Agora que já temos algum conteúdo para lidar com os rótulos “capitalismo” e “comunismo”, faço duas provocações: É difícil definir onde o capitalismo começou e onde o feudalismo terminou. Digo mais, é impossível pensar no capitalismo como algo parado no tempo e espaço, isso até Marx reconhecia. Esse sistema pode ser melhor ou pior que outra coisa, dependendo do olhar e do referencial.

Dito isso, através de generalizações podemos ver que o capitalismo não é de todo uma desgraça. O comunismo, por sua vez, apesar de as importantes reflexões sobre a distribuição da riqueza e as condições do trabalho, travou na ditadura do proletariado e não é essa coisa digna de idolatria nas redes sociais. Aliás, você já se perguntou qual a opinião do comunismo sobre você?

O capitalismo tem problemas? Obviamente. Porém, existe uma diferença entre a percepção da realidade e a própria realidade. Uma pesquisa realizada pela empresa Ipsos MORI com pessoas de 28 países diferentes ilustra algumas das percepções a respeito dos últimos 20 anos:

Estamos tratando de generalizações, essas percepções NÃO estão corretas. Destacando alguns pontos, o mundo está menos pobre, mais educado e a taxa de mortalidade infantil diminuiu consideravelmente.

O rosa é a parcela da população vivendo em condições de extrema pobreza. Diminuiu, muito.
O rosa é a parcela da população não-alfabetizada. Despencou.
O rosa é a taxa de mortalidade infantil no mundo. Queda significativa.

As percepções enganam e as mazelas do capitalismo selvagem não parecem tão certas assim, não é mesmo? Talvez criticá-lo seja um pouco de moda? Andreas Bergh, professor de economia e nascido na “socialistíssima” Suécia, acha que sim:

“É fácil para os políticos atribuírem seus fracassos ao capitalismo, e às vezes o fazem. É como um cesto de papéis onde cabem todos os problemas. Mas a realidade tem muitos outros matizes. Há alguns erros políticos que não podem ser atribuídos ao capitalismo. Acredito que a razão pela qual agora ele tem má reputação é porque em alguns países a lei não é cumprida, há corrupção ou se interfere demais na economia.”

“A tia Márcia é fascista sim!”

Gabriela, 16, estudante.

Agora vamos falar sobre o comunismo. Sim, vamos falar sobre o comunismo. Até porque lá em Cuba, por exemplo, ninguém quer falar em comunismo. A palavra nem sequer aparece no anteprojeto de reforma constitucional dos caras! Marx apostou na transição capitalismo-comunismo. Será que alguém apostou no caminho contrário? Boa pergunta. Adeus, propriedade comum dos meios de produção. Propriedade privada, seja bem-vinda! O complicado com o comunismo (e o socialismo) é querer falar demais, sabendo de menos.

depoimento do Petkovic, jogador de futebol sérvio, é muito interessante e merece reflexão. Ele viveu essas coisas e fala com conhecimento de causa:

“[…] A Iugoslávia teve comunismo, socialismo e capitalismo. Não sei qual deles é o melhor, de verdade. Tudo pode prestar, tudo pode estragar: depende dos interesses envolvidos. Não existe um sistema ideal. Para mim, o fundamental é que exista educação, respeito aos valores comunitários e à história do país. […]
Eu vivi muito bem no socialismo, mas nem sabia o que isso significava. Era criança. A ideologia é fantástica, mas, na prática, não funcionava. Um exemplo… Tenho amigos que são trabalhadores, muito profissionais. Mas também tenho os que são “boleirões”, gostam de vida boa, não querem fazer nada. Imagine se esses amigos recebessem o mesmo que os trabalhadores dedicados? Isso desmotiva quem quer trabalhar. Mas tinha emprego pra todo mundo. Essa era a parte boa do regime socialista, algo que o governo realmente tem de fazer. Criar oportunidades de trabalho. Mas, como as empresas viviam de subsídio, não importava o resultado. A produtividade era baixa. Uma fábrica que poderia operar com 3.000 funcionários tinha 30.000. Como meu pai dizia: comia a si mesmo. […]”

Aliás, ele até dá umas dicas para os brasileiros:

“Entre tantas coisas boas, um único defeito me chama a atenção: o brasileiro é muito acomodado. Aceita as coisas sem conhecer os seus direitos, sem reivindicar, sem perguntar: ‘Mas por que isso?’. O brasileiro não questiona. Por que aumentou o preço da gasolina? Por que tem que pagar taxa de matrícula na escola? Por que vão fazer reajuste e correção monetária? Baseado em quê? ‘Ah, mas é assim. Não me importa quanto vou pagar no futuro, o que importa é que agora me custa menos.’ Esse é o pensamento.”

Olha, assim como disse o Pet, o brasileiro pode até se achar muito esperto. Contudo, é preciso combinar com os russos. Afinal, o serviço secreto comunista observou o Brasil de muito perto entre 1952 e 1971 e fez alguns relatos:

“Todo o povo é educado em um espírito de desprezo para com o trabalho, o que pode se observar, por exemplo, quando as faxineiras se recusam a limpar janelas e assoalhos, o que obriga a contratação de mais faxineiras especialmente para isso […]

[…] homens e mulheres têm unhas tratadas, todos querem a qualquer preço causar a impressão de que não precisam trabalhar fisicamente […]

[…] Em plena luz do dia, um homem cortou a garganta da esposa porque a mesma não queria partir com ele para outra região do país em busca de uma vida melhor […]

Um brasileiro, ao contatar com um estrangeiro, possui uma tendência em fazer uma grande quantidade de promessas, já supondo que não cumprirá nenhuma delas. […] são pessoas preguiçosas e bem levianas, com as quais não se pode contar

Os brasileiros de classe média frequentemente surpreendem um europeu com uma longa lista de faculdades e cursos que terminaram; mas, na verdade, o conhecimento adquirido por eles é muito superficial, o que significa que no Brasil, por regra, encontramos pessoas ignorantes, que, mesmo com numerosos títulos científicos, não chegam aos pés da nossa gente com formação primária”

É como dizem: você não conhece seus super-heróis até que tenha sido decepcionado por eles.

Agora já posso concluir. O capitalismo venceu. O comunismo perdeu. Fim de papo. É assim que se faz, não é? Pode até ser verdade. Isso por si só não quer dizer muita coisa. De fato! Essas dicotomias me parecem coisa de gente, no mínimo, ultrapassada. Faço das palavras de Roberto Mangabeira Unger, as minhas:

“Eu creio que este termo, socialismo, está hoje esvaziado de sentido. Como, aliás, todo o debate ideológico no mundo. Aquele antigo conflito de estatismo e privatismo, mercado e Estado, está morrendo ou está morto e começa a ser substituído no mundo por um novo conflito. Um conflito sobre as formas alternativas da democracia, do mercado e da sociedade civil livre. Nós do Brasil precisamos participar desta nova controvérsia para construir o país. E nesse sentido, a verdadeira divisória entre os conservadores e os transformadores não é a posição a favor ou contra o Estado. A verdadeira divisória é a disposição para reimaginar e reinventar, pouco a pouco, a estrutura institucional da sociedade.”

P.S.: Só estou esperando alguém dizer que não citei a Comuna de Paris.

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