Prezado ministro,
peço que antes de mais nada dispense as formalidades pomposas que acompanham seu novo cargo, bem como aquelas que acompanharam sua carreira de professor e pesquisador universitário, para que possamos estabelecer um diálogo franco e direto. Afinal, reverências simbólicas são desimportantes frente a um dos maiores – senão o maior – desafios do novo governo, justamente o que lhe cabe: a educação.
Estamos os brasileiros já muito acostumados – e fartos – com os arroubos retóricos de nossos representantes a respeito da educação: prioridade absoluta de todos os governos e até lema de um deles. Mas seguimos recebendo notícias da falência de nosso sistema educacional, do mau desempenho de nossos alunos, das más condições de trabalho de nossos professores, etc. A impressão inequívoca é a de que a suposta centralidade da educação não passa da dimensão discursiva – em português claro: conversa fiada.
Talvez por isso, senhor ministro, não nos deixemos empolgar por falas empoladas em formalidades burocráticas, nem acreditamos em anúncios de grandes planos por vir. No entanto, sabemos diferenciar um candidato de um ministro, e o momento eleitoral da administração governamental. Entenda, ministro: se aceitamos e mesmo desejamos que nossas sensibilidades políticas e esperanças sejam mobilizadas durante o período eleitoral com promessas, propostas e projeções de sonhos futuros, o mesmo não se pode dizer do pós-eleições. Agora é hora de palavras se transformarem em ações, de slogans se tornarem programas e políticas públicas, de discursos se tornarem resultados.
Todo esse preâmbulo para chegarmos ao ponto: talvez por não ter se envolvido na campanha, ministro, o senhor tenha vestido a roupa de candidato em seu discurso de posse. Só assim é possível interpretar de forma positiva e caridosa a ênfase dada e os minutos gastos pelo senhor a montar uma narrativa entre o épico e o romântico da campanha do então candidato e agora presidente Bolsonaro, no início de seu discurso de posse.
Tomando a palavra após o ex-ministro e agora secretário da educação do estado de São Paulo, Rossieli Soares, que se empenhou em enumerar os méritos de sua gestão e de seu antecessor, Mendonça Filho, ao mesmo tempo em que deixava claro o longo caminho ainda a percorrer na batalha por uma educação de qualidade no Brasil, o início de sua fala foi uma clara mudança de tom. Com o ex-ministro, pode-se concordar ou discordar, pois havia um diagnóstico referente a uma situação concreta em jogo; com o senhor, ministro, não havia muito o que discutir, pois se tratava de um “discurso da vitória” – ou, em suas próprias palavras, “da redenção de nosso país”.
Até que, finalmente, o senhor assumiu discursivamente o cargo para começar a dizer a que veio: “nossa prioridade será a educação básica”. A clareza dessa afirmação inequívoca mostra a identificação precisa do maior gargalo de nosso sistema educacional, senhor ministro. Que ela não tenha sido acompanhada por planos detalhados e explicações pormenorizadas de como superar a atual falência qualitativa da educação brasileira, não é algo grave – afinal, tratava-se do discurso de posse, do ato inaugural de uma gestão que ainda nem completou seu primeiro mês e, como dito acima, não precisamos de mais palavrório grandioso, mas de ações concretas.
Nessa sinalização, ministro, o senhor acertou em cheio. No tocante ao ensino técnico e ao ensino superior, a listagem de objetivos seguiu no mesmo caminho – correto, por sinal. Com isso, sua fala inspirou confiança aos que a acompanhavam, e abriu as portas para a maior surpresa de seu discurso: ao tratar do ensino superior privado, o senhor deixou claro o foco na qualidade dos cursos oferecidos, e adicionou “daremos especial atenção e trataremos com cuidado as ações empreendidas por fundos internacionais de investimento em educação; as formas de atuação desses investimentos devem se adequar tanto aos dispositivos legais quanto aos objetivos da educação brasileira”. Ora, nada mais nocivo à educação superior do que a crescente presença de grandes grupos empresariais que a têm tratado como mercadoria, buscando o maior lucro possível no oferecimento de cursos onde a qualidade é o primeiro item a ser sacrificado.
Seria mais uma afirmação categórica e irretocável, senhor ministro, não fosse o que veio a seguir: “não permitiremos que pautas nocivas aos nossos costumes sejam impostas ao país com a alegação de que [sic] se trata de temas adotados alhures por agências internacionais cujos representantes são burocratas não eleitos pelos povos de suas respectivas nações”. Ou seja, a ingerência internacional que mais lhe preocupa, ministro, é a suposta ação de fundações a serviço de um globalismo que rouba do povo o legítimo exercício da soberania nacional.
E aqui chegamos ao ponto final de inflexão, à mudança de tom que abrirá a porta para o apelo objeto desta carta: por alguns (poucos) minutos, fez-se ouvir a voz do Ministro da Educação; infelizmente, ela foi comprimida entre a fala do cabo eleitoral, do bardo que canta as glórias da campanha, e a fala do ideólogo, que passa em seguida a anunciar o combate ao “marxismo cultural”, caracterizado pelo senhor como “uma ideologia materialista, alheia aos nossos mais caros valores de patriotismo e de visão religiosa do mundo”. Ministro, o Brasil é um Estado democrático de direito, laico e pluralista, que acolhe sem discriminação as mais diversas “visões religiosas do mundo”, inclusive visões niilistas, ateístas, agnósticas, etc. – ao menos foi isso que consolidamos em nosso pacto constitucional. Mais: o senhor foi nomeado ministro da educação, seu trabalho – de fazer inveja aos de Hércules – é o de ajudar a formular, interpretar e avaliar políticas públicas que colaborem com a melhoria do quadro educacional do país. Como educador, professor universitário – que fez, inclusive, carreira numa universidade federal – e pesquisador humanista – porque filósofo -, o senhor sabe tanto quanto qualquer outro que os problemas que emperram o desempenho da educação brasileira são profundos, complexos e vêm de muito longe, não podendo ser resolvidos com um simples ato de fé, não importa o quão forte ela seja. Promessas de atuar como guardião dos costumes legítimos do Brasil e carrasco da ideologia marxista-materialista dizem pouco – se algo – sobre o árduo e imperioso caminho rumo à virada qualitativa que nossa educação tanto precisa.
É por isso, ministro, que registro este apelo: não deixe a pasta da educação servir de trincheira na guerra ideológica que se instaurou no país. Não se coloque a serviço da tática diversiva da cortina de fumaça, de desviar as atenções da mídia e da sociedade civil para pautas de costumes, para odisseias quixotescas contra moinhos de vento imaginários, enquanto os mui reais problemas do Brasil permanecem intocados. Esse tipo de estratégia pode até provocar efeitos positivos, num primeiro momento, em áreas onde expectativas e reações a projeções virtuais são mais relevantes – como no mercado financeiro -, o mesmo não pode ser dito de sua área, ministro, a educação.
Portanto, por maior que seja sua gratidão para com o presidente Bolsonaro, lembre-se que o senhor – assim como ele, por sinal – está a serviço do país, de sua população e suas instituições. Por vezes, cumprir esse papel poderá significar ir contra a vontade e os interesses do próprio presidente, de outro(s) ministro(s) e mesmo contra suas próprias preferências pessoais, em nome do bem comum.
As diretrizes estão postas e já se deixam entrever no seu discurso: foco prioritário na educação básica, ampliação das avaliações para a correção e o aperfeiçoamento constante de políticas e programas, respeitando a série histórica estatística e as evidências factuais em detrimento de bravatas e chavões, reformulação da educação profissionalizante e qualificação do ensino superior. Em suma, precisamos trocar todos os pneus com o carro andando.
Se a tarefa não é fácil, lembre-se que o fardo não é só seu. Saiba reconhecer os méritos e legados de gestões anteriores do ministério, independentemente do partido político ao qual ela esteve vinculada. Valorize o comprometimento das servidoras e dos servidores do MEC, para que seja também por eles valorizado. É desonesto dizer que é preciso uma ruptura radical e intransigente, como se tudo o que se fez nesse ministério até hoje consistisse em erro. Deixe o “fora todos” e o “tem que mudar tudo isso que está aí” para militantes e candidatos. Trabalhe para somar, não para reinventar a roda, começando do zero, apagando os progressos já realizados e girando eternamente em falso.
Por fim, ministro, um adendo: o senhor mencionou apenas dois nomes de referência em seu discurso – Antônio Paim e Olavo de Carvalho. Seja mais Paim e menos Carvalho: prefira o engajamento e o apreço às instituições educacionais à desqualificação generalizada do establishment do fundamental e superior; prefira o debate na esfera pública a foros privados, “alternativos” e sectários; prefira, enfim, o trabalho diligente, dedicado e modesto, sempre exposto e receptivo a críticas, estranho à autopromoção laudatória e à desqualificação a priori de divergentes.
Em suma, para retomar uma lição que o senhor deve ter recebido em sua formação teológica: lembre-se de que toda virtude é silenciosa. Interpreto o silêncio reinante em seu ministério como sinal de aprendizado dessa sabedoria ancestral e faço votos de que a sobriedade e a humildade deem o tom de sua administração.
Na esperança de dias melhores, mas com receio do pior, me despeço.
Rafael Barros de Oliveira