Retomando a análise de temas concernentes à educação superior no Brasil, o assunto do dia é pós-graduação. Já escrevi que a universidade não é para todos, ela é para qualquer um.[1] É uma forma de dizer que o desafio de uma sociedade democrática é garantir acesso ao ensino universitário para aqueles cujos planos de vida estiverem em consonância com os objetivos, valores e missões dessas instituições.
A pós-graduação, parte componente do ensino superior, segue a mesma lógica. Isso nos leva à pergunta: pós-graduação para quem? E também a outra, intimamente conectada: pós-graduação para que?
Em 1965, logo no início da ditadura militar, o então Ministro da Educação e Cultura, o engenheiro Fábio Suplicy de Lacerda, solicitou a um grupo de profissionais[2] um parecer sobre o estabelecimento da pós-graduação no Brasil[3]. Após uma breve introdução acerca das origens históricas, os autores já afirmam, de saída, a necessidade desse tipo de curso para o país:
“o sistema de cursos pós-graduados hoje se impõe e se difunde em todos os países, como a consequência natural do extraordinário progresso do saber em todos os setores, tornando impossível proporcionar treinamento completo e adequado para muitas carreiras nos limites dos cursos de graduação. Na verdade, em face do acúmulo de conhecimentos em cada ramo das ciências e da crescente especialização das técnicas, o estudante moderno somente poderá obter, ao nível da graduação, os conhecimentos básicos de sua ciência e de sua profissão. Neste plano, dificilmente se poderia alcançar superior competência nas especializações científicas ou profissionais.”
A existência da pós-graduação[4] se justifica, na avaliação dos pareceristas, pela complexidade, multiplicidade e amplitude do conhecimento humano – que parece evoluir, ao menos em quantidade, num ritmo exponencial. Sua principal função seria a de proporcionar aos estudantes já graduados – ou seja, de posse dos conhecimentos básicos de sua área de estudos – o acesso a “superior competência”, tanto do ponto de vista científico quanto do ponto de vista profissional, uma dupla exigência que se mostrará muitas vezes contraditória e paradoxal[5]. Essa tensão também se verifica nas três metas principais elencadas no documento: “1) formar professorado competente que possa atender à expansão quantitativa do nosso ensino superior garantindo, ao mesmo tempo, a elevação dos atuais níveis de qualidade; 2) estimular o desenvolvimento da pesquisa científica por meio da preparação adequada de pesquisadores; 3) assegurar o treinamento eficaz de técnicos e trabalhadores intelectuais do mais alto padrão para fazer face às necessidades do desenvolvimento nacional em todos os setores”. A pós-graduação no Brasil surge como “o ciclo de cursos regulares em segmento à graduação, sistematicamente organizados, visando desenvolver e aprofundar a formação adquirida no âmbito da graduação e conduzindo à obtenção de grau acadêmico”.
Esse era o quadro a partir do qual foi redesenhada a pós-graduação no Brasil, agora sob a perspectiva de um regime democrático, e não mais ditatorial. Nas últimas décadas, em especial nos governos Lula e Dilma, vimos a expansão do ensino superior público e privado no Brasil, com o número de estudantes crescendo em ritmo alucinante, o qual a qualidade do ensino e a infraestrutura das instituições não foram capazes de acompanhar. Além do agravamento do dilema qualidade-quantidade, sobre o qual já escrevi[6], foi mantida a dicotomia original acima referida: o desafio de coexistência entre mundo da ciência e mundo do trabalho nas universidades.
Imaginem um programa de mestrado e/ou doutorado. Dados os avanços científicos do campo, um estudo aprofundado requer não apenas anos de maturação (embora o Ministério da Educação venha se esforçando em reduzir cada vez mais o tempo permitido para realização desses estudos), mas também uma rotina cotidiana de pesquisa que muitas vezes impossibilita o exercício simultâneo de uma atividade profissional. Ao mesmo tempo, a natureza complexa das relações entre teoria e prática, entre ciência e técnica, requer dos estudantes uma bagagem profissional, um conhecimento em primeira mão do mercado de trabalho. Até aí, tudo bem: basta que, após a graduação, estudantes passem alguns anos no mercado de trabalho e depois voltem à universidade com dedicação exclusiva para a pós-graduação. Preciso dizer que não é bem assim que a banda toca?
Do lado do trabalho, a estrutura de progressão em muitas carreiras torna impraticável a interrupção para anos de dedicação exclusiva à formação e à pesquisa; do lado da universidade, ainda que formalmente seja facultado a quem não receba bolsa de pesquisa manter vínculo empregatício fora da universidade, as exigências materiais de leitura, produção, tempo de laboratório e domínio do campo de conhecimento faz com que – na maioria dos casos – a dedicação em tempo integral seja um pressuposto. Some-se a isso a escassa oferta de bolsas face ao número de vagas oferecidas e o baixo valor das mesmas quando comparado com a média salarial do mercado para profissionais com mesmo nível de qualificação, temos uma situação de precariedade na qual o diagnóstico é trágico: a ciência brasileira é bancada pelos pais [7]. Na prática, a pós-graduação no Brasil é majoritariamente reservada a quem tem estrutura familiar-patrimonial para se bancar total ou parcialmente (complementando com o valor da bolsa, de eventuais aulas, bicos, etc.) durante os mais de cinco anos de pós-graduação (somando-se mestrado e doutorado).
Que isso se trate de uma distorção e de uma injustiça, parece não haver grandes dúvidas. Numa sociedade democrática, a distribuição de bens comuns (como saúde, educação e direitos) não deve depender da posição econômica de um indivíduo, mas de uma conjunção entre necessidade e capacidade. Trata-se, afinal, de uma democracia, não de uma plutocracia.
Como corrigir esse quadro? Bem, duas soluções se apresentam de bate-pronto: aumentar o valor e a quantidade de subsídios de pesquisa; flexibilizar as exigências para permitir dedicação parcial e exercício profissional simultâneo. Nenhuma delas satisfaz, porque ambas sacrificam um dos objetivos da pós-graduação, quer seja o aprofundamento científico, quer seja a capacitação profissional. No primeiro caso, embora se ganhe em qualidade e dedicação exclusiva à ciência e à academia, perde-se em contato com o mercado profissional, o que resultará em doutoras e doutores que vivem no mundo da teoria e não são capazes de transferir seus conhecimentos para as exigências da vida prática. No segundo caso, perde-se em rigor intelectual, criando doutoras e doutores que conhecem apenas superficialmente – assim como estudantes de graduação – seus objetos de estudo, ocasionando a substituição do ideal de scholarship pelo padrão bacharelesco novecentista, retrógrado e ultrapassado.
Pode-se pensar em parcerias e simbioses entre universidades e empresas, tornando mais fluidas as fronteiras entre ciência e trabalho. Para além de questões éticas de direcionamento de pesquisas e distorções de modelos através de lobby econômico (exemplo clássico: a influência da indústria farmacêutica em departamentos e laboratórios universitários), essa solução não parece dar conta do problema quando não vem acompanhada de um redesenho radical dos programas, mesmo nos países mais economicamente desenvolvidos onde essa alternativa vem sendo tentada há tempos (proponho um experimento: digite no Google life outside of academia, non-academic jobs for PhDs ou alternative careers for graduate students).
Por fim, um caminho possível, no qual venho insistindo em outros textos, é o da pluralidade institucional, ou seja, o oferecimento de múltiplas vias de formação para diferentes objetivos de vida e carreira. Essa solução levanta outros problemas: é impraticável pensar em um currículo ou um programa para cada uma das milhares de trajetórias biográficas a que dá ensejo uma sociedade democrática; há o risco de engessamento e compartimentalização das múltiplas trilhas, criando escolhas sem volta e matando o ideal de formação que anima essas pesquisas avançadas.
O Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014)[8] estabelece os desafios a serem enfrentados pelo sistema educacional brasileiro nos próximos anos. Como resolver as contradições e paradoxos aqui apresentados numa direção condizente com essas metas? Eis a pergunta de bilhões de reais – em investimentos, financiamento e retorno econômico, científico e cultural – e preciosos décimos e centésimos de desenvolvimento humano[9].
Rafael Barros de Oliveira Notas:[1] https://terracoeconomico.com.br/universidade-e-universalidade-universidade-nao-e-para-todos-e-para-qualquer-um
[2] Foram eles: Almeida Júnior, Newton Sucupira, Clóvis Salgado, José Barreto Filho, Maurício Rocha e Silva, Durmeval Trigueiro, Alceu Amoroso Lima, Anísio Teixeira, Valnir Chagas e Rubens Maciel.
[3] http://www.capes.gov.br/images/stories/download/avaliacao/avaliacao-n/Parecer-977-1965.pdf
[4] Neste texto, focarei na pós-graduação stricto sensu, em razão de seu vínculo essencial com a instituição universitária. Seguindo o próprio texto do parecer: “Cursos pós-graduados de especialização ou aperfeiçoamento podem ser eventuais, ao passo que a pós-graduação em sentido próprio é parte integrante do complexo universitário, necessária à realização de fins essenciais da universidade”.
[5] A contradição não se resolve pelo estabelecimento da distinção entre pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) e lato sensu (especializações, MBAs, etc.). Embora o foco científico seja relativizado nos cursos de especialização, o mesmo não pode ser dito das exigências do “mundo do trabalho” em muitos mestrados e doutorados. Isso não é um erro, mas gera problemas, como se verá.
[6] https://terracoeconomico.com.br/o-curioso-caso-de-bipolaridade-das-universidades-publicas-brasileiras
[7] http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2016/07/ciencia-no-brasil-e-bancada-pelos-pais.html
[8] http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13005.htm
[9] https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dndice_de_Desenvolvimento_Humano