A crise da ciência econômica

Não se pode dizer que a ciência econômica sempre está em contato com a realidade [1], pelo contrário, essa ciência pode se tornar mais um empecilho para o avanço de nossa compreensão. O futuro economista, porém, enxerga nela um possível caminho para a correção das injustiças brasileiras. A típica universidade oferece ao estudante uma formação abrangente, mas não um vislumbre do abismo. A ciência econômica enfrenta uma quebra de paradigma. O economista, antes ingênuo, está desencantado. Sua ciência, uma farsa?

Arrogância & Cegueira

Ao considerarmos o estado da ciência econômica até meados da primeira década do século XXI, tudo estava bem. O período de bonança só se tornou possível após as turbulências macroeconômicas da década de 1970, na qual temos o emblemático caso da estagflação, fenômeno descrito como o aumento da taxa de desemprego combinado à inflação. O consenso da subdisciplina, a doutrina Keynesiana, era incapaz de responder satisfatoriamente aos árduos questionamentos. De acordo com Robert Lucas [2], era necessário reconhecer as limitações e adotar direções radicalmente novas e diferentes ou então correr o risco de perder seus grandes feitos em meio às suas muitas ilusões. A partir disso, surge um importante debate entre dois grupos distintos: novos-clássicos e novos-keynesianos [3].

Os novos-clássicos, cujos notáveis personagens são além de Robert Lucas, Thomas Sargent e Edward Prescott, apresentavam os seguintes princípios: microfundamentos explícitos (maximização de utilidade e lucro), equilíbrio geral e o quão longe se poderia ir com nenhuma ou poucas imperfeições.

Os novos-keynesianos, postulantes de uma reforma, buscavam melhores alicerces para a antiga doutrina e voltavam-se para os seguintes aspectos: análise teórica e empírica a respeito da natureza e da realidade de diferentes imperfeições (p. ex.: rigidez nominal, salário-eficiência e restrições do mercado creditício), mas também incorporando modelos de equilíbrio parcial.

Conforme destaca Olivier Blanchard, a relação entre os dois grupos era pouco amistosa, novos-clássicos questionavam o suposto apego dos novos-keynesianos à crenças obsoletas e teorias desacreditadas, enquanto novos-keynesianos respondiam condenando sua contraparte pela suposta perseguição de belos e irrelevantes modelos. Robert Hall oferece uma interessante reflexão [4] sobre os pontos de divergência entre as escolas de “água doce” e “água salgada”, designação atribuída por ele aos novos-clássicos e novos-keynesianos, respectivamente. Entretanto, com o passar do tempo os ânimos arrefeceram, o ferramental novo-clássico passou a ser predominante, as imperfeições destacadas pelos novos-keynesianos foram levadas em conta e uma visão comum foi gradualmente estabelecida sob o paradigma neoclássico.

As décadas seguintes seriam marcadas pela baixa volatilidade (flutuação) macroeconômica, período chamado de “A Grande Moderação”. Segundo Ben Bernanke, a explicação para tal se baseia em três pontos principais [5]: mudança estrutural, melhores políticas macroeconômicas e boa sorte. Robert Lucas iria além ao propor que o problema central da macroeconomia [6], a prevenção de depressões econômicas, havia sido solucionado há décadas. Em suma, nas palavras de Blanchard, o estado da macroeconomia é bom. Alguns anos depois, uma importante e peculiar pergunta seria feita: como os economistas puderam errar tanto? [7]

Crise existencial

A ciência macroeconômica sofreu o mais duro golpe com a crise financeira global de 2008, “A Grande Moderação” daria lugar à “Grande Recessão”. Em sua icônica visita [8] à London School of Economics (LSE), a rainha Elizabeth II indagou seus anfitriões: se essas coisas eram tão grandes, como todos as deixaram passar? A resposta viria através de uma carta [9], destaco alguns de seus trechos:

“[…] Muitas pessoas anteviram a crise. Entretanto, a exata forma que tomaria e o momento de seu início e ferocidade não foram antevistos por pessoa alguma. […] Cálculos de risco eram na maioria das vezes confinados à fatias da atividade financeira, usando algumas das melhores mentes matemáticas no nosso país e no exterior. Mas eles frequentemente perderam a visão do todo. […] Em suma, Vossa Majestade, o fracasso em antever o momento, extensão e severidade da crise e preveni-la, mesmo tendo ela muitas causas, fora principalmente o fracasso do imaginário coletivo de muitas pessoas brilhantes, tanto nesse país quanto no exterior, em entender os riscos ao sistema como um todo. […] (tradução do autor)”

Olivier Blanchard, criticado por suas posições anteriores à crise, liderou uma importante e autocrítica reorientação da política macroeconômica [10], enquanto tecnocrata do Fundo Monetário Internacional. Ao deixar sua posição na organização supranacional, declarou:

“[…] A macroeconomia mainstream encarou o sistema financeiro como fato consumado. O tratamento macro típico das finanças era um conjunto de equações de arbitragem, sob o pressuposto de que nós não precisávamos olhar para quem estava fazendo o que em Wall Street. Isso se provou ser um grande erro. (tradução do autor)”

Segundo ele, a macroeconomia pode estar enfrentando uma crise existencial:

“[…] A crise financeira levantou uma crise (potencialmente) existencial para a macroeconomia. A macro prática é baseada no pressuposto da existência de relações razoavelmente estáveis entre agregados, então nós não precisamos acompanhar cada indivíduo, firma ou instituição financeira — não precisamos entender os detalhes do encanamento micro. Nós aprendemos que o encanamento, especialmente o encanamento financeiro, importa: os mesmos agregados podem esconder sérios problemas macro. […] Como resultado da crise, desabrocharam uma centena de flores intelectuais. Algumas são flores muito antigas: a hipótese de instabilidade financeira de Hyman Minsky. Modelos kaldorianos de crescimento e desigualdade. Algumas proposições que seriam consideradas anátemas no passado estão sendo feitas por economistas “sérios”. Por exemplo, o financiamento monetário do déficit fiscal. Alguns pressupostos fundamentais estão sendo desafiados, por exemplo, a separação clara entre ciclos e tendências: a histerese está retornando. Algumas das ferramentas econométricas, baseadas na visão de um mundo como sendo estacionário ao redor de uma tendência, estão sendo desafiadas. (tradução do autor)”

Macroeconomia na era da pós-realidade

A crise existencial da macroeconomia é derivada um processo de deterioração da ciência (econômica). Robert Solow [11] aponta para a avassaladora forma com qual a síntese neoclássica desconsiderou importantes desvios macroeconômicos, sendo muitos desses conhecidos objetos de estudo da doutrina Keynesiana, em função de uma formalização científica “purista”, guiada pelo equilíbrio e pela racionalidade. Nos termos de Paul Romer, passamos a lidar com a problemática macroeconomia pós-real [12]:

“Agora os modelos macro fazem uso de pressupostos incríveis para chegar à conclusões absurdas. (tradução do autor)”

Os ditos macroeconomistas pós-reais assemelham-se aos físicos adeptos da teoria da cordas, sobrepondo a matemática avançada aos fatos e reproduzindo, inclusive, seus mesmos erros capitais, como por exemplo:

  • Um senso de identificação com o grupo próximo à identificação com uma fé religiosa [13] ou plataforma política;
  • Um forte senso de afastamento entre o grupo e outros experts;
  • A desconsideração e o desinteresse por ideias, opiniões e trabalhos de experts que não são parte do grupo;
  • Uma tendência em interpretar evidências com otimismo, acreditar em afirmações exageradas ou incompletas acerca de resultados, desconsiderando a possibilidade da teoria estar errada;

Em suma, tal divergência entre teoria e realidade [14] passa pela modelagem matemática própria da síntese neoclássica, que opera dentro de um feedback loop [15] distorcido por pontos como os elencados acima. Essas distorções estão diretamente ligadas ao método científico, mais especificamente, ao uso da parcimônia, assim como declara George E. P. Box:

“Já que todos os modelos estão errados o cientista não pode obter um “correto” pela elaboração excessiva. Pelo contrário seguindo William de Occam ele deve buscar uma descrição econômica do fenômeno [natural]. Assim como a habilidade para criar simples, porém, evocativos modelos é a marca de um grande cientista a superelaboração e a super parametrização é frequentemente a marca da mediocridade. (tradução do autor)”

No entanto, a mesma parcimônia deve ser aplicada ao considerarmos a abordagem desses problemas. O recado [16] dado aos jovens economistas por Maria da Conceição Tavares pode ser erroneamente interpretado como uma rejeição aos métodos quantitativos como um todo. Um agravante para o surgimento desse tipo de interpretação, ao menos nacionalmente, é a deficiência da cultura matemática [17] apresentada pelos brasileiros. Uma pertinente observação sobre a (contraditória) importância do método matemático foi feita por Friedrich Hayek durante seu discurso de aceitação prêmio Nobel em ciências econômicas [18]:

“[…] Eu quero fazer isso para evitar dar a impressão de que eu geralmente rejeito o método matemático na economia. Eu de fato o considero como uma grande vantagem da técnica matemática que nos permite descrever, por meio de equações algébricas, o caráter geral de um padrão mesmo onde somos ignorantes dos valores numéricos que determinam sua manifestação particular.”

O autor Nassim Nicholas Taleb, ferrenho crítico do modo com que a matemática pode ser aplicada na economia, também comenta sobre o conhecimento quantitativo [19]:

“A estatística e o conhecimento probabilístico aplicado são o núcleo do conhecimento; A estatística é o que te diz se algo é verdadeiro, falso, ou meramente anedótico; ela é a “lógica da ciência” […] Você não pode ser um intelectual moderno e não pensar probabilisticamente — mas… não sejamos otários. O problema é muito mais complicado do que é aparente ao usuário casual, mecanístico que aprendeu [estatística] na pós-graduação. […] (tradução do autor)”

Ciência (?) Econômica

Tomando nota de polarizações extremas e interpretações errôneas, podemos ampliar o escopo da reflexão proposta: a economia é uma ciência de verdade? [20]

Robert Shiller discute essa questão ao comparar economia e engenharia, áreas que se aproximam por uma orientação prática, e diferenciar economia e ciências naturais, em razão vocação para a descoberta de fundamentos. Considerando isso, um dos problemas centrais da ciência econômica é sua relação intrínseca com a política e, portanto, com a atenção pública.

Sua própria nomenclatura está ligada ao status de ciência. Ao incluirmos o termo “ciência” em sua designação, estaríamos afastando esse campo do conhecimento humano de suas pseudociências correspondentes. Dessa mesma forma, a ciência política buscou se emancipar do partidarismo fervoroso, a ciência astronômica se afastar da astrologia de caráter místico e o meso com a própria ciência química em relação à alquimia. Algumas dessas áreas solidificaram-se e deixaram o termo “ciência” para trás, outras não. Notáveis críticos da ciência econômica apontam para o surgimento da “pseudociência da economia” onde, conforme afirma Taleb, “você pode disfarçar o charlatanismo sob o peso das equações, e ninguém pode pegá-lo, pois, não há algo como um experimento controlado”.

Críticas como essas podem resultar no desencanto do futuro economista, ainda mais quando este percebe que tais grandes questões fogem da alçada do seu próprio curso de graduação. O desencanto é ainda maior quando presta excessiva atenção à gritaria histérica entre ortodoxos e heterodoxos, discute quem pode ou não ser chamado de economista e, ao mesmo tempo, contempla estudiosos estrangeiros com formação em áreas tão distintas quanto complementares como, por exemplo, antropologia e engenharia aeroespacial se dedicando à pensar a economia [21]. A ciência econômica degenerada é crise [22], mudança, passado e futuro [23]. Esse seria o momento mais que apropriado para o questionamento por parte dos estudantes das universidades brasileiras: há algo de podre no campo da ciência econômica?

Fonte
[1] O poder das narrativas econômicas[2] After Keynesian economics[3] The state of macro[4] Notes on the current state of empirical macroeconomics[5] The Great Moderation[6] Macroeconomic priorities[7] How Did Economists Get It So Wrong?[8] Letter to The Queen[9] The Global Financial Crisis – Why Didn’t Anybody Notice? [10] The smartest economist you’ve never heard of[11] The State of Macroeconomics[12] The Trouble with Macroeconomics[13] How economics became a religion[14] Rethinking Macroeconomic Theory Before the Next Crisis[15] Science and Statistics[16] Recado de Maria da Conceição Tavares para os jovens economistas[17] Os desafios da Matemática no Brasil[18] The Pretence of Knowledge[19] The fourth quadrant: a map of the limits of statistics[20] Is economics a science?[21] Tyler Cowen and Joseph Henrich Talk Economics, Big Brains, Cultural Evolution, and WEIRD People[22] The crisis in economic theory[23] Rethinking Stabilization Policy: Back to the Future

Paulo Silveira

Graduando em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e ex-graduando em Economia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Trabalha com gestão de produtos digitais em startups brasileiras. Produz conteúdo sobre economia e tecnologia. Foi um dos vencedores do concurso nacional de resenhas organizado pelo Conselho Federal de Economia em 2017, escrevendo sobre a obra 'Princípios de Economia Política e Tributação' de David Ricardo.
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