O leitor não está lendo errado. Este não é um texto que deveria ter saído após o segundo turno e acidentalmente foi publicado agora, antes mesmo do primeiro turno. Trata-se de um apelo ex ante pela racionalidade, aproveitando-se do fato de que muitos têm antecipado o voto útil do segundo para o primeiro turno.
Vamos conversar sobre um assunto importante à democracia: o pleito é realizado para colher de toda a população a opinião direta sobre quais representantes deveriam ocupar cargos nos poderes legislativo (deputados, senadores) e executivo (presidentes, governadores).
O processo para se chegar a isso passa pelas chamadas urnas eletrônicas, não há outro meio para votar. Aqueles com maior votação (ou que preenchem requisitos como os do quociente eleitoral) são eleitos, porque representam a maioria dos votantes.
No Brasil atual, de polarização política exacerbada, o fantasma do questionamento dos resultados eleitorais – ocorrido em 2014, por parte do PSDB, o primeiro desde 1989 – está de volta, e antes mesmo do resultado do pleito. Se uma vitória seria justa, uma derrota supostamente viria única e exclusivamente em virtude de fraude eleitoral.
Tal pensamento, de “eleições sob suspeição por fraude nas urnas” é no mínimo estranho. Se alguns candidatos não acreditam que as urnas refletem a realidade, qual seria o sentido de participar desse pleito? E, se a vitória for confirmada, de repente a fraude deixa de existir?
Isso lembra bastante duas coisas peculiares: Trump acusando as eleições de serem influenciadas pela Rússia (e depois negando veementemente que isso ocorreu, já que ele quem ganhou) e a defesa de Dilma afirmando que o processo de impeachment é inválido (mas tendo participado de todo o rito, inclusive colocado sob consulta no STF etapa a etapa).
Colocar o processo eleitoral à prova é grave e demandaria prática investigação da acusação. A prova de que não se fala sério quando se coloca esse assunto na mesa é a altíssima chance da resposta para a pergunta “mas e se você ganhar?” ser “nesse caso, justiça foi feita”.
Provavelmente o leitor está remetendo o teor do artigo a Jair Bolsonaro e suas diversas declarações. Porém, em uma polarização exacerbada na qual nos encontramos, não dá pra descartar que qualquer dos candidatos que perca no segundo turno, deixe de utilizar este frágil argumento como justificativa de uma derrota.
No caso de Fernando Haddad estiver lá e perder, não se descarta a possibilidade de alegar a mesma coisa. Ciro Gomes idem, Geraldo Alckmin (com o PSDB repetindo o vexatório episódio de 2014) também. Qualquer um. Em espaço de proliferação da polarização, tudo vira justificativa.
Winston Churchill afirmava que a democracia é o pior modelo de governo, com exceção a todos os outros. Enquanto não descobrirmos um “menos pior”, é com ele que seguiremos. Apenas subjugar a democracia em torno de uma derrota eleitoral é perigoso. Um perigo constitucional que abre brechas a autoritarismos dos quais o Brasil já presenciou.
“A Constituição certamente não é perfeita. Quanto a ela: discordar, sim; divergir, sim; descumprir, jamais; afrontá-la, nunca!” (Ulysses Guimarães).