Em tempos de isolamento social: punir ou cooperar?

Breves considerações sob a ótica da Teoria dos Jogos

A pandemia causada pelo novo coronavírus é, de longe, o acontecimento mais midiático dos dias atuais. E não é para menos: até o dia 20 de abril de 2020, segundo a Universidade americana Johns Hopkins, 185 países contabilizaram 2.494.915 de casos e 171.152 mortes. Diante desse cenário, pesquisadores e instituições de todo o globo correm contra o tempo na busca por respostas, ou para tratamento, ou para prevenção e, qualquer avanço científico é visto como uma luz no final do túnel. Até lá, a recomendação mais aceita pelos países, inclusive pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é o isolamento social, que retarda a propagação do vírus e evita sobrecarregar os sistemas nacionais de saúdes. 

Entretanto, para que o isolamento social ocorra de forma satisfatória, faz-se necessário inserir esse comportamento na vida das pessoas, na linguagem econômica, inserir esse comportamento na função de utilidade de cada indivíduo. E é aqui que a Teoria dos Jogos pode contribuir para o melhor entendimento desse fenômeno. 

Em breve palavras, a Teoria dos Jogos, formulada inicialmente por Neuman e Morgenstern (1944) no livro “Teoria dos jogos e comportamento econômico”, retrata, de modo penetrante, a situação de busca do melhor por parte de cada indivíduo ou ainda como integrante de uma coalizão, com intuito de alcançar resultados ótimos, tanto individualmente quanto pensando em grupo. A partir daí, diversos pesquisadores contribuíram para a evolução dessa teoria, em particular John Nash (1950), matemático laureado com prêmio Nobel por desenvolver o equilíbrio de Nash, situação onde nenhum dos indivíduos têm incentivo a mudar suas decisões dadas as decisões dos outros participantes. É importante ressaltar que as simulações em jogos levam em conta, dentre outros, dois fatores importantes: i) o ceteris paribus (do latim que significa “tudo mais permanecendo constante”), que isola os comportamentos dos indivíduos de outras influências externas e; ii) a racionalidade, que torna possível aos indivíduos analisarem suas decisões de forma estratégica buscando maximizar sua satisfação. 

Para elucidar, um jogo muito conhecido dentre os pesquisadores em Teoria dos Jogos é o dilema dos prisioneiros, desenvolvido por Flood e Dresher (1950). No jogo, dois prisioneiros estão em celas separadas e podem decidir confessar ou não confessar determinado crime. As decisões e as possíveis consequências (denominadas payoffs) são disponibilizadas em uma matriz e objetivo se torna simples: encontrar em qual ponto o jogo terminará.

Para percebermos melhor nosso questionamento inicial, vamos partir de uma variação do jogo estratégico e simultâneo dilema dos prisioneiros, fazendo algumas adaptações apenas às decisões dos indivíduos. A pandemia do novo coronavírus exige o isolamento social como forma de diminuir o contágio e, a partir disso, duas possíveis estratégias surgem para manter esse resultado estável: a punição dos infratores ou a cooperação. Sob a perspectiva individual, durante o isolamento social, cada indivíduo pode decidir sair de casa ou permanecer em casa. Para uma interação entre dois indivíduos, a seguinte matriz é desenhada:

Os valores são apenas ilustrativos, dado que facilitam nosso entendimento. Na primeira coluna estão as ações do indivíduo 1 e na primeira linha, as mesmas ações disponíveis para o indivíduo 2. Se ambos decidem “sair de casa” (-3,-3) há uma insatisfação, -3, devido ao maior contato social e uma maior disseminação do novo coronavírus. Se ambos decidem “permanecer em casa” (-1,-1) há uma insatisfação, -1, menor, dada a contaminação reduzida pelo isolamento social.  No caso do indivíduo 1 “sair de casa” e o indivíduo 2 “permanecer em casa” (1,-4) há um ganho de satisfação, 1, para o indivíduo 1, dado que agora ele está fora de confinamento e sozinho na rua, o que reduz sua contaminação. Já o indivíduo 2 está em casa, porém mais insatisfeito, -4, dado que ele percebe a livre circulação do indivíduo 1. 

Vamos então aos possíveis resultados/equilíbrios desse jogo. O equilíbrio desejado pela coletividade é claramente o resultado (-1,-1), ocasião em que todos permanecem em casa. Esse resultado chamamos de norma social, que, na atual pandemia do COVID-19, é o resultado mais sensato para reduzir o número de contágios e não colapsar os Sistemas Nacionais de saúde. Mas será que esse resultado é realmente estável? Ou seja, será que nesse ponto de equilíbrio não há incentivos aos indivíduos para tomarem outras decisões e auferirem melhores níveis de satisfação (utilidade)? 

É fácil notar que, partindo do equilíbrio inicial em que todos permanecem em casa (-1,-1), um dos indivíduos consegue ficar mais satisfeito se desviar do acordo e tomar a decisão de sair, o que alteraria momentaneamente o equilíbrio para (1,-4) ou (-4,1). Ainda assim, o equilíbrio não é estável, pois a medida que os indivíduos notam que outros estão descumprindo a norma social, começam também a descumprir o acordo pré-estabelecido. Resultado? O equilíbrio, agora estável, se move para (-3,-3) e se mantém, ou seja, todos saem de casa e a curva de contágios explode. Esse é o equilíbrio de Nash, único ponto em que não há incentivos para mudanças.

Os governos percebem então que, sem intervenção, a norma social se torna frágil e muito instável, impossibilitando sua manutenção no longo prazo. Começam então a surgir as primeiras intervenções públicas, punitivas e restritivas, com a finalidade de causar distúrbios no equilibro de Nash (-3,-3) e levar a sociedade a um novo ponto de equilíbrio. Medidas punitivas são bem conhecidas nessa época de pandemia e podemos citar algumas, como multas para quem sair de casa sem uma justificativa plausível, cordão sanitário, controle de fronteiras, policiamento nas ruas, etc. Essas intervenções causam sim uma mudança no equilíbrio inicial, podendo até chegar a atingir a normal social (-1,-1), porém são passageiras e de curto prazo. Pois assim que a fiscalização diminui, o equilíbrio volta novamente para o momento inicial (-3,-3). O que fazer então? Aumentar as fiscalizações e as punições? Existe um outro caminho mais fácil que não exige tanto o uso da força do Estado. Esse caminho é o da cooperação. 

Diferentemente do que vimos até agora, os jogos cooperativos, também modelados por Neumann e Morgenstern (1944) são adaptados para situações de coalizão entre um grupo de jogadores. Esse jogo é um par ordenado que consiste em um conjunto de jogadores e uma função, que descreve a quantidade de recompensa coletiva que todos podem ganhar ao formar a coalizão. Quanto mais coesa, mais forte ela permanece. Para isso, dizemos que o núcleo (“core”) do jogo cooperativo precisa se manter estável, de modo que não haja incentivos para desfazerem a cooperação.

No nosso exemplo acima, há um ponto de equilíbrio que permite a cooperação entre os jogadores. E pasmem, é o ponto de equilíbrio desejado por todos, nossa norma social (-1,-1). De fato, os pesquisadores Osborne e Rubinstein (1994), no livro “Um curso em Teoria dos Jogos”, trazem exemplo do dilema dos prisioneiros que, ao se repetir diversas vezes, muda do equilíbrio de Nash para o equilíbrio de cooperação, que eles denominam normal socialmente aceita. É possível notar que o nosso jogo também se repete várias vezes, pois a cada novo dia uma nova rodada é jogada e as decisões “sair” ou “permanecer” em casa podem mudar. 

Partindo disso e do conhecimento sobre jogos que acabamos de expor, podemos então pensar: Como criar condições para que a nossa coalizão (-1,-1) se mantenha estável e com incentivos para a manutenção da cooperação? Há diversos caminhos para essa solução e pretendo mostrar uma no âmbito das ações individuais. 

Dado que, no nosso jogo, os indivíduos são racionais e tomam decisões estrategicamente, mudanças no equilíbrio de cooperação podem ocorrer, por exemplo, se houver riscos imputados na coalizão e esses forem superiores aos riscos existentes fora dela. O principal risco externo é conhecido por todos: sair do isolamento social e contrair o novo coronavírus, fazendo, assim, parte das estatísticas mundiais. Algo que não vemos com apreço. Mas também há riscos internos de se permanecer em casa que precisam ser considerados: necessidade de busca de alimentos, dificuldades no manuseio tecnológico para aquisição de medicamentos ou outros bens essenciais on-line, etc. Dessa forma, se os riscos internos da coalizão forem maiores que os riscos externos, haverá motivação para deixar a norma social e agir individualmente. Então, o que pode ser feito?

Bom, se houverem esforços para que a coalizão reduza os riscos dos seus indivíduos até que esses riscos se tornem inferiores aos que existem externamente, a cooperação se manterá estável e, possivelmente, se sustentará no médio e longo prazo. Em termos práticos, isso significa que auxiliar o próximo na gestão do seu risco/problema pode ser muito mais efetivo que adotar medidas punitivas, como denúncias e agressões aos que se inclinam a descumprir o acordo, por exemplo. O momento em que a cooperação vence a punição.

É claro que a sociedade atual é muito mais complexa e existem muitos outros fatores envolvidos, mas ainda assim essa medida se mostra bem útil: se conseguir, por exemplo, auxiliar seu vizinho mais idoso a realizar uma compra on-line no supermercado ou na farmácia, ou ajudá-lo no pagamento das contas via apps colaborará na diminuição do seu risco interno e, consequentemente, manterá a coalizão mais estável e duradoura, em termos de sociedade.

É um texto extenso consubstanciado na ciência de jogos apenas para demonstrar a importância do altruísmo e da coletividade em tempos desafiadores como a pandemia do século XXI.  

Notas 

NEUMAN О, Morgenstern О. Theory of Games and Economic Behaviour. 1944.

NASH, John F. et al. Equilibrium points in n-person games. Proceedings of the national academy of sciences, v. 36, n. 1, p. 48-49, 1950.

FLOOD, M. et al. Prisoner’s Dilemma: Game Theory. Experimental Economics, 1950.

OSBORNE, Martin J.; RUBINSTEIN, Ariel. A course in game theory. MIT press, 1994.

Felippe Clemente

Pesquisador do Instituto de Ciências Sociais na Universidade de Lisboa (Portugal).

   

      

 

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