“Escola Sem Partido” e o vazio das ideias

“We don’t need no education

We don´t need no thought control

No dark sarcasm in the classroom

Teachers leave them kids alone”

Another Brick in the Wall, Pt. 2 – Pink Floyd

No momento em que escrevo esse artigo, está ocorrendo uma das maiores consultas públicas da nossa história, lançada pelo Senado Federal e que, até o momento, recebeu mais de 350 mil votos. A disputa está acirrada e ambos os lados se alteram na liderança do páreo. De fato, é uma celebração de democracia brasileira, comprovadamente um dos mecanismos que obtém grau de capilaridade altíssimo e traz à tona a opinião de muitos.

A consulta diz respeito ao Projeto de Lei 193, de autoria do Senador Magno Malta (PR-ES) que pretende incluir o programa na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; além do Senado, o projeto também tramita na Câmeras dos Deputados, em sete Assembleias Legislativas de 12 Câmeras Municipais de diversos Estados. Se você ainda não leu o projeto, encontre o arquivo por esse link: Projeto Escola Sem Partido

Pois bem, formalidades postas, vamos às digressões.

Interessante notar que a autoria do projeto, que por diversas passagens cita a “neutralidade política, ideológica e religiosa”, é de um pastor evangélico e político de carreira (que em tese representa uma corrente de pensamento unívoca), por mais contraditório que possa parecer (nenhuma novidade vinda dos corredores de Brasília). Porém, desde o anúncio da consulta pública, no contexto de efervescência gerada na opinião pública, o silêncio retumbante vindo do Ministério da Educação, órgão máximo da educação de nossa república, é intrigante e no mínimo estranho.

Contudo, nesse emaranhado de mistérios, podemos encontrar pistas. Poucos dias após assumir a pasta, o atual ministro Mendonça Filho recebeu em seu gabinete a visita dos ilustres Alexandre Frota e Marcello Reis, ambos membros do movimento Revoltados Online, que além de tomar um cafezinho na faixa, apresentaram suas propostas: buscam evitar a “doutrinação ideológica” de alunos por partes dos professores. Os visitantes travestidos de arautos dos bons valores e representantes de uma organização “suprapartidária” (que inclusive é a favor do fim das urnas eletrônicas), gozam da legitimidade recém adquirida por conta do apoio que deram ao partido do ministro na condução do processo de impeachment.

[caption id="attachment_7282" align="aligncenter" width="645"] O Ministro da Educação, Mendonça Filho, recebendo a proposta de Alexandre Frota e do ex-pastor Marcello Reis[/caption]

Oras, então a proposta se torna ilegítima? Não, devagar com o andor que o santo é de barro.

Vivemos em um regime democrático, no qual é saudável e inteligível que grupos de interesse se unam para pautar propostas, mesmo que venham dos mais profundos grotões da sociedade. Contudo, umas das questões é a forma superficial (e paranoica) com que é a tratado o tema da educação e do processo de formação do raciocínio crítico, aflorando uma visão poliana de que existem ideias neutras e isentas de qualquer ideologia, reduzindo a relação professor-aluno a apenas um fantoche de doutrinação ao estilo soviético mofado. No fundo, isso pode culminar em enormes restrições ao processo criativo, cognitivo e de debates de ideias dentro das escolas, abrindo margem para tornar o professor na verdade em um mero “passador de slides” e uma figura inócua dentro da sala da aula (fato que já ocorre em diversas instituições de ensino).

Vejam só o inciso VII do artigo 2º, no qual imputa como princípio a ser implementado “o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que estejam de acordo com suas convicções”. Imaginem só, em uma escola onde filhos de muçulmanos, católicos, protestantes e budistas compartilhem as salas de aula, como lidar com essa situação? Qual visão prevaleceria? O projeto é lacônico e procura solucionar questões complexas com frases de efeitos e agradáveis ao público.

O projeto, na realidade, nada tem de isento. E de fato, é besuntado na ideologia de um fundamentalismo religioso camuflado de um suposto pluralismo. Com uma extrema valorização da “Família”, como ilustrado na frase de um dos coordenadores: “Em matéria de educação religiosa e moral, vale o princípio: meus filhos, minhas regras.” Devemos reconhecer a família como uma esfera fundamental da sociedade, mas os pais não têm direito absoluto sobre seus filhos e que, portanto, a educação moral não é prerrogativa exclusiva deles.

Outro ponto é notar que nenhum grande educador ou intelectual está envolvido com o projeto ou no mínimo declarou seu apoio. O movimento não representa a corrente de educadores do país ou de pensamentos modernos sobre o aprendizado (como por exemplo inspirados no modelo holandês, no qual os alunos não passam por aulas na forma tradicional, reúnem-se em grupos diariamente para discutir temas estudados sozinhos anteriormente, os resultados já comprovados são significativos). Ao passo que o projeto se preocupa em delimitar o tamanho do cartaz a ser pregado (no mínimo 90cm hein!) em todas as escolas com a cartilha do “bom professor”, carregando uma certa prepotência, pois segundo o mesmo deve abranger: I -às políticas e planos educacionais e aos conteúdos curriculares; II – aos materiais didáticos e paradidáticos; III – às avaliações para o ingresso no ensino superior; IV – às provas de concurso para o ingresso na carreira docente; V – às instituições de ensino superior, ou seja, praticamente todo o sistema de ensino brasileiro.

Além do mais, o projeto na verdade esconde e cria uma miríade, que desvia o nosso real problema na educação. Desvia a atenção em nossas graves falhas na alfabetização. Segundo dados do último Senso Escola de 2015, foi constatado que 22% das crianças ainda não aprenderam a ler direito no fim do 3º ano (na rede pública), 35% não sabem escrever, 57% sequer fazer as operações matemáticas básicas. O ensino da lógica clássica e do raciocínio cartesiano é fundamental para o desenvolvimento técnico e profissional, ao passo que o aprendizado das ciências sociais (isso inclui filosofia, geografia, história, artes, literatura e etc), seja de um ponto de vista liberal, materialista, conservador, crítico, ou qualquer outra deve ser considerada pétrea para a formação do ser pensante, consciente, formação de valores e respeitador de diferenças.

Novamente, o argumento de não submeter o aluno a pensamento ideológicos ou doutrinação não cabe, apenas demonstra a falta de conhecimento do que é a realidade dentro das salas de aula.

Como explicar o governo “militar” de 64 em sala de aula? Foi um golpe militar? Foi uma revolução? Uma contrarrevolução? Um contragolpe? Um processo comum de ascensão do poder de uma camada social? Promovido por militares ou por parte deles (já que nem todos eram apoiadores)? O governo de João Goulart era legítimo? Era reformista/ progressista ou apenas alinhado com os Russos/Chineses?

Este é apenas um exemplo de como as teorias são diversas e os pontos de vistas heterogêneos, e cabe o ao professor ter a honestidade intelectual de demonstrá-los, e se caso não o fizer, o próprio aluno imerso em um ambiente de debate e crítica saberá avaliar o seu ponto de vista. O projeto trata o aluno do ponto de vista conservador, como se não tivesse massa crítica o suficiente, ainda mais em um contexto tão tecnológico e conectado como atual, para questionar qualquer tipo de “doutrinação” possivelmente apregoada.

O fato é que qualquer coisa que você estude na escola ou na universidade está sujeito a ser considerado ideológico. O problema não é que ideologias sejam examinadas e debatidas. O problema é que não exista o debate. Uma escola neutra é impossível não porque a doutrinação na academia é um plano diabólico, mas porque não há evidências para se constatar o que é a tal neutralidade. Tudo estará sujeito a ser questionado, de acordo com o ponto de vista de cada um. Neutralidade pode ser algo bem diferente para você e para mim.

O desafio é definir o que é “neutro” em seu sentido mais puro, devemos é preservar a liberdade de expressão e de debate, é importante que todos falem, independente da matriz política; esse é o caminho mais virtuoso.  Fica evidente que o projeto cria amarras ao professor, elaborando uma cartilha de boas maneiras: “Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito”. Deixando uma lacuna do que vem a ser de fato essas práticas e principalmente quem vai julgá-las e ainda as possíveis consequências.

Contudo, a vida dá voltas. Com exemplificado pelo recente total fracasso das políticas econômicas do Partido dos Trabalhadores, a própria história e os fatos contribuem para ensinar aos alunos quais são os prós e contras de cada visão (e questionar a suposta doutrinação da esquerda) e até mesmo formar cidadãos com uma visão muito mais libertária e desprovida da tutela estatal, movimento que também se confirma com o surgimento dos movimentos Universidades Livres.

Por fim, o projeto da “Escola Sem partido” não é só algo vazio e delirante, como também é perigoso. Aluno denunciando professor ao Ministério Público é algo que obviamente não vai dar certo, ainda se apimentarmos com a visão de alguns pais receosos, assim como o projeto descreve, de professores que possam “direcionar a sexualidade do aluno”.

Em suma, o projeto confunde educação e doutrinação. Educar é abrir para o mundo, enquanto doutrinar é exatamente o que o projeto está propondo. A riqueza do processo de aprendizado e da formação do cidadão vai além das disciplinas tradicionais, está em expor os jovens a matérias que naturalmente trarão de outras visões de mundo, trazendo-o para o contexto da programação de computador, empreendorismo, finanças, arte contemporânea, relações internacionais, robótica, esportes em equipe, etc. Esse deveria ser o nosso verdadeiro debate!

O pior da “Escola sem Partido” é que ela está conseguindo desviar a nossa atenção das questões realmente educacionais e educativas.

 
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