Espectro político: o que é esquerda e direita?

anos venho fazendo a seguinte pergunta: na política, o que é esquerda e direita? Essa indagação, volta e meia, reaparece. Não apenas no contexto em que a encontrei originalmente, regimes totalitários na Espanha de Franco, União Soviética de Stalin ou Portugal de Salazar. Todavia, também ligada aos personagens do congresso brasileiro, no discurso idólatra do colega de curso ou citada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal.

Sempre achei que a questão deveria ser investigada pelo prisma do método científico, algo raro no cotidiano. Até porque, na maioria das vezes, não se trata de uma discussão de ideias. Aliás, nunca o é. O que realmente está em jogo? Identidades pessoais e um perigoso desejo de pertencimento.

Através deste artigo, não busco uma discussão academicista, mas, a sistematização de ideias simples, algumas anedotas e talvez meras intuições. Uma forma de refletir sobre como buscamos e interpretamos evidências de maneira parcial para, em última instância, acomodar crenças, expectativas e teorias nas quais já acreditávamos. A primeira tarefa, diria Feynman, é não enganar a si próprio.

Lamento (mas, não muito) que, atualmente, aproveitemos as facilidades da vida contemporânea (vulgo, Facebook) para discussões brilhantes: “O Nazismo foi de direita ou de esquerda?”, “Quem matou mais? Os regimes de esquerda ou de direita?”.

Ou ainda, para testemunhar, virtualmente ou não, uma infinita sorte de rótulos utilizados como xingamentos: “Seu coxinha! Seu petralha! Seu fascistinha de merda! Conservador retrógrado! Esquerdista!”. Devo dizer que esse tipo de coisa me dá muita preguiça, já fui enfeitiçado por tais improdutivos debates, mas, encontrei um antídoto. Enfim, partiremos para discussões mais interessantes.

Voltando à pergunta inicial, o que é esquerda e direita? Segundo a interpretação de Bryan Caplan, as diferenças entre ambos os lados do espectro político precisam ser investigada a partir de temas abrangentes. A partir de características suficientemente genéricas, podemos lidar com tempos e espaços diferentes para os termos esquerda e direita.

Contudo, antes de propor sua teoria, Caplan rejeita três explicações alternativas pelo seguinte motivo: as diferenças entre esquerda e direita não se situam num eixo lógico-intelectual e sim num eixo psico-emocional. Especificamente, as três alternativas rejeitadas são:

I. A esquerda valoriza mais a igualdade. A direita valoriza mais a eficiência;

II. A esquerda valoriza mais o pobre. A direita valoriza mais o rico;

III. A esquerda é mais secular. A direita é mais religiosa;

Sendo assim, Caplan propõe:

I. A esquerda é anti-mercado. Isso é, pautando-se no eixo psico-emocional, a esquerda é crítica aos resultados obtidos através do mercado, independentemente do caráter benéfico desses resultados.

II. A direita é anti-esquerda. Isso é, pautando-se no eixo psico-emocional, a direita, de maneira reflexiva, é crítica ao posicionamento da própria esquerda.

Ainda que o mercado não seja um conceito definido nessa teoria, podemos pressupor a sua definição, sem maiores prejuízos, como sendo: um sistema econômico baseado na oferta e demanda de bens e serviços, com um grau relativamente mínimo de intervenção governamental.

Embora essa teoria seja, admitidamente, simplista, trata-se de uma útil ferramenta para a interpretação de certos casos:

Em ambos os lados, a diferença se dá na intensidade do incômodo, entretanto, o objeto do incômodo permanece o mesmo.

Essa ferramenta se mantém útil, por exemplo, numa análise da eleição presidencial americana, em 2016, na qual Donald Trump derrotou seus adversários dentro do partido Republicano, além da própria Hillary Clinton, candidata do partido Democrata.

Ao longo do ciclo eleitoral, as propostas de Trump desconsideravam (e quando implementadas, continuam desconsiderando) os ideais liberais “do livre-mercado”. A ascensão do atual presidente dos EUA foi impulsionada justamente por sua contraposição ao público e às ideias de esquerda. Para fazê-lo, ele provocou, ameaçou e fez de tudo para se tornar o pesadelo da esquerda americana e as comparações à Hitler reforçam esse ponto.

Obviamente, a teoria de Caplan pode ser criticada, assim como o fez Eliezer Yudkowsky. A teoria é falha, segundo Yudkowsky, na definição de esquerda: não se trata de ser anti-mercado, mas, apenas de afirmar que o mercado não pode ser emancipado do ser humano. Isso é, o mercado per se não é capaz de garantir justiça ou dignidade ao indivíduo. Logo, se a exploração entre indivíduos é abominada, por que a exploração mercado-indivíduo deve ser tolerada?

Mesmo sendo passível de críticas, a teoria de Caplan apresenta, creio eu, uma tese central interessantíssima: as diferenças entre esquerda e direita operam sobre um eixo lógico-intelectual e sim sobre um eixo psico-emocional.

Dito isso, não há sequer um papel para a razão, lógica ou inteligência na resposta da pergunta “o que é esquerda e direita?” Talvez não. Numa eleição, o eleitor médio não possui o conhecimento técnico necessário para avaliar as propostas de políticas públicas de um candidato. Logo, o que nos resta para julgar que um candidato é merecedor do nosso voto? Uma possível resposta é: carisma, estúpido!

A cognição humana está sujeita à inúmeras falhas, algo explorado na ciência econômica através da economia comportamental há algum tempo. O ensaísta Paul Graham apresenta uma tese que aborda justamente esse ponto: o papel do carisma na política. No caso, considerando as eleições presidenciais americanas ao longo das décadas. Portanto, Graham afirma: nas eleições presidenciais, o candidato mais carismático vence.

Refletindo sobre seu próprio voto, a justificativa para a escolha de Bill Clinton ao invés de George Bush na década de 90 foi: Clinton era mais dinâmico, tinha mais vontade de ser presidente. Bush? Um velho cansado. Nas eleições de 2000, Al Gore tinha as mesmas políticas públicas de Clinton, mas não o mesmo carisma.

Em 2004, John Kerry era menos carismático em relação a Bush Jr. No passado, o padrão se repete: O carismático Carter ganhou de Ford. Reagan, mais carismático ainda, ganhou do próprio Carter na eleição seguinte. George Bush era o mais carismático em 1988, Michael Dukakis foi derrotado. Em 1964 ou 1972, o mais carismático quase sempre vence.

A exceção à regra ocorreu no ano de 1968, quando Richard Nixon venceu Hubert Humphrey. Entretanto, Nixon evitou totalmente a participação em debates televisionados, baseando sua campanha em gravações muito bem-ensaiadas. Há também a vitória de John Kennedy em 1960, numa eleição supostamente fraudada, assunto para outra hora.

O ponto é: se o voto é dado ao candidato mais “carismático”, uma análise política aparentemente “racional” e veiculada pela mídia tradicional é tão útil quanto alguns acreditam?

Comentaristas de política, principalmente durante o ciclo eleitoral, justificam o fortalecimento ou enfraquecido do candidato X e do candidato Y, assim como jornalistas escrevem notícias sobre flutuações aleatórias dos mercados. Uma vez que o horário de negociação da bolsa de valores chega, os jornalistas procuram notícias boas ou ruins, escrevem que a bolsa subiu por causa do relatório Z, ou que o ativo A está em baixa por causa da eterna instabilidade no Oriente Médio.

Num experimento hipotético, suponhamos que informações falsas sejam fornecidas aos jornalistas. Os dados enganosos mostram que, pelo contrário, os preços subiram. Alguém acredita que eles perceberiam alguma anomalia e deixariam de escrever que o preço de determinado papel subiu em função das notícias do dia?

Não me parece plausível que a mídia diria: “Espera aí, como os preços subiram com todos esses acontecimentos no Oriente Médio?” Ainda estamos falando sobre o ser humano, cujo eixo psico-emocional é o mesmo, seja na hora de votar, seja na hora de noticiar.

Voltando à política, Há alternativa? Talvez. Por exemplo, se os partidos deixassem de indicar candidatos pouco ou não-carismáticos, esse fator assumiria pesos, grosso modo, iguais e o jogo se equilibraria. Assim, os outros fatores, como a qualidade das propostas de políticas públicas, ganhariam uma maior importância nas disputas eleitorais.

É importante notar que, segundo Graham, o carisma é preponderante, mas não exclusivo. Em outras palavras, superado o fator carisma, os tópicos discutidos pelos comentaristas de política poderiam se tornar mais relevantes para uma corrida eleitoral, embora não seja possível esgotar essa discussão neste artigo.

Dada a teoria de Caplan, a esquerda é anti-mercado e a direita é anti-esquerda, e a tese de Graham, o candidato mais carismático vence, faço as seguintes considerações:

I. Se as diferenças entre esquerda e direita existem a partir do eixo psico-emocional, o candidato mais carismático vence, em geral, por operar melhor sobre esse eixo?

É uma boa hipótese. O próprio Donald Trump, ou até mesmo Jair Bolsonaro, são exemplos, por se destacarem justamente na polarização das massas. Políticos dessa natureza atingem uma exposição saturada na mídia e não possuem princípios bem-delineados, salvo o constante bombardeio dos adversários frente à opinião pública.

Em outras palavras, o político pode não se parecer com você, não ter as mesmas preocupações cotidianas que você, porém, ele aparenta odiar as mesmas coisas que você e, ainda por cima, serve de entretenimento enquanto o faz. Logo, ou você odeia esse político, ou você odeia o que ele odeia. De qualquer forma, o político age e você reage, apoiando ou odiando. O espetáculo vence eleições.

II. Dado que o espetáculo político e eleitoral surte efeito, qual o papel do cidadão e eleitor nesse fenômeno?

Num eixo psico-emocional, há um fator possivelmente relevante: sentimento de pertencimentoTodos querem ser o herói da própria história, o indivíduo bom, justo e correto. Consequentemente, aquele que nos representa (ou nos faz acreditar que representa), representa também valores e uma certa noção de identidade. Em última instância, os semelhantes devem ser defendidos, cultivados e exaltados. Os diferentes devem ser atacados, destruídos e aviltados.

Um caso anedótico: nas redes sociais, um jovem afirma o seguinte: “Um dia todos entenderão a injustiça cometida com Lula. Um dia todos o reconhecerão como o Messias que é.” Messias? Um homem de carne e osso? Se até Jesus pecou (na verdade, não), segundo a Bíblia, Lula não poderia pecar? Me parece pouco provável. Contudo, conhecimentos probabilísticos fazem parte do eixo lógico-intelectual, enquanto a idolatria opera sobre o eixo psico-emocional.

Uma segunda anedota: também nas redes sociais,  outra afirmação: “Marine Le Pen foi derrotada (nas eleições presidenciais francesas), Emmanuel Macron foi eleito. Mais uma importante vitória da esquerda contra a direita retrógrada.”

Agora questiono: Se Le Pen é rotulada como candidata de direita pela mídia, cuja confiabilidade para o estabelecimento de parâmetros já foi discutido anteriormente, então Macron automaticamente se torna o representante da esquerda? Ou seria um representante à esquerda? Bom, as reformas trabalhistas sendo propostas por ele na França podem servir para fomentar possíveis conclusões, afinal se Temer não pode, por que Macron poderia? Isso para não falar dos coletes amarelos.

O cerne da questão não é o rótulo atribuído à Macron, mas por que alguém se manifestaria publicamente contra Le Pen e, consequentemente, à favor de Macron? Ainda mais considerando que essa pessoa pouco ou nada seria impactada pelos eventos políticos franceses?

Sentimento de pertencimento. Essa manifestação sinaliza que o grupo “direita” teve um revés e o grupo “esquerda” teve uma conquista. Portanto, quando alguém se autodenomina “esquerda” oide desfrutar do status sinalizado socialmente pela conquista dos próprios pares “de esquerda”.

A coerência é irrelevante, pois, faz pertence ao eixo lógico-intelectual. É necessário sentir-se parte de algo maior, e já que esse necessidade existe, não vamos escolher o lado ruim das coisas. Só há um problema: nenhum dos lados irá se autodenominar ruim. Talvez isso explique a ausência da tão desejada autocrítica do Partido dos Trabalhadores.

III. Se um dos lados diz que está certo, que é moralmente bom e, além disso, recebe aprovação social por essas afirmações, o que resta para o outro lado?

O jogo político, muitas vezes, oculta a natureza do próprio jogador: o ser humano, que ainda é uma característica comum entre os autodenominados “de esquerda” e “de direita”, por mais que alguns afirmem o contrário.

O bolsonarista, por exemplo, é uma ilustração interessante. Não se trata de um soldado nazista que chegou até aqui através de uma máquina do tempo. É um “pai de família”, um “cidadão de bem”, a tia que vai à igreja todos os domingos e depois faz um churrasco em família no almoço.

As justificativas de pessoas como essa, em relação ao apoio à Bolsonaro, não devem ser muito complexas. O apreço pelo “capitão”, talvez, ocorra porque Bolsonaro valoriza a família, ou fez com que essas pessoas acreditassem nisso. Ou então, porque ele promete melhorar a segurança pública, afinal, o presidente odeia bandidos e essas pessoas também. É tudo parte do eixo psico-emocional.

Por fim, o que é esquerda e direita? São rótulos. Recorrendo à Karl Popper, são rótulos que simbolizam pura convenção. Muitas vezes, são rótulos que nada afirmam, mas, isso não quer dizer que são irrelevantes. Pelo contrário, os rótulos também são meios de mobilização das massas.

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