Ramón García Fernández
Escrevo esta contribuição para o Terraço Econômico, um espaço bastante plural cujos leitores, em sua imensa maioria se avalio corretamente, favorecem o impeachment da presidenta Dilma. Fui convidado pelos editores para trazer uma perspectiva diferente. Não vou fazer média: espero deixar claro os motivos que me levam a afirmar que este processo de impeachment é uma tentativa de golpe que poderá jogar o país numa espiral de conflitos e num acirramento dos rancores completamente irresponsável. Assim como muitos dos que estiveram nas marchas golpistas de 1964 depois se arrependeram amargamente, espero que os golpistas atuais não sejam bem-sucedidos e que seus seguidores não precisem ter a oportunidade de chorar sobre o leite derramado (e esperemos que seja leite e não sangue).
Uma das tarefas mais duras que os pais têm é conseguir lidar com as frustrações das crianças. Em particular é difícil, mas essencial, ensinar os filhos a saberem perder quando participam de algum jogo. Constitui uma parte essencial da formação do indivíduo e, mais adiante, do cidadão, aceitar que há regras, critérios objetivos, e que em muitos jogos se alguém ganhou, o outro necessariamente tem que perder. Há poucas coisas mais chatas que a criança que perdeu e insiste, “Mas, pai, fala para ele que eu ganhei!”.
Saber lidar com a frustração da perda é parte essencial da formação do adulto. Isso não evita, é claro, que algumas pessoas conscientemente tentem alterar os resultados; o mau perdedor desconhece limites. Nós já vimos várias vezes times que perdem no campo, mas ganham o jogo, ou evitam o rebaixamento, choramingando, pressionando ou corrompendo nos tribunais.
Infelizmente, uma parte significativa da população brasileira teve uma regressão à infância a partir das eleições de outubro de 2014. Embora alguns tenham sabido aceitar com dignidade o resultado eleitoral para eles adverso, muitos dos oponentes da candidata vencedora perderam uma eleição limpa de uma maneira clara, mas nunca aceitaram o resultado, começando pelo candidato que foi derrotado no segundo turno. Desde o primeiro dia eles estão atrás de qualquer desculpa para ganharem no tapetão. E, tendo o objetivo definido, só precisavam achar a desculpa. Torna-se importante lembrar que essas atitudes não eram uma novidade completa: já na eleição de 2010 o candidato então derrotado tinha apelado a alguns recursos risíveis, entre eles a inesquecível tomografia após ter sido atingido por uma bola de papel. Também seria injusto esquecer a campanha diuturna de alguns órgãos de imprensa, que começou muito antes e que recorreu a todo um amplo arsenal de invencionices estapafúrdias para desqualificar sistematicamente os governos do PT.
Essa contextualização é imprescindível para entender por que está hoje em discussão o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. As causas alegadas para isso são variadas, e sua própria variedade mostra que o essencial é encontrar uma boa desculpa para atingir um objetivo previamente definido por outros motivos. Mas o próprio fato de que o processo de impeachment seja liderado por um deputado cujo enriquecimento ilegítimo está manifesto em contas já encontradas no exterior evidencia que não é um esforço de moralização o que conduz este processo.
A primeira dessas desculpas consiste em sustentar que alguns recursos de campanha da chapa vencedora são originários do esquema da corrupção na Petrobrás investigado no marco da denominada Operação Lava-Jato. Saem daí duas possibilidades: ou que os recursos desviados da Petrobrás tenham sido usados diretamente no financiamento dos vencedores, ou que empresas beneficiadas por esse esquema tenham contribuído com a campanha. A segunda dessas acusações é fácil de descartar: as grandes empresas envolvidas, ao igual que muitas outras que não têm vínculos com este esquema, financiaram candidaturas dos mais variados partidos. Tentar marcar os recursos com um carbono quatorze eleitoral, e mostrar que só os destinados ao governo e seus aliados se originavam na corrupção parece mais do que absurdo. Quanto à outra hipótese, independentemente de sua plausibilidade, exigiria que os candidatos soubessem a origem ilícita dos recursos. Seria insólito, p.ex., sugerir o afastamento do governador Alckmin em São Paulo caso se verifique que algum dos recursos de sua campanha se originaram nos ganhos extraordinários do cartel das empreiteiras oriundos do esquema conhecido como Trensalão. Para isso, precisaria se demonstrar que o ex-prefeito de Pindamonhangaba estava ciente da fonte ilícita do dinheiro doado. Isso se aplica a qualquer eleição em qualquer instância, em qualquer lugar do mundo.
Outro motivo alegado para o impeachment seriam as “pedaladas fiscais”. Aqui, para simplificar a discussão, devemos esclarecer que a lei é muito clara no sentido de que o impeachment de um presidente só pode ser consequência de fatos ocorridos em seu mandato. Isto também se aplica à presidenta reeleita. Portanto, só discutiremos aqui as “pedaladas” que teriam ocorrido em seu segundo mandato. O argumento das “pedaladas” é o favorito dos defensores do afastamento da presidenta, porque a atingiriam sem envolver seu vice, permitindo que o PMDB possa embarcar nessa campanha levando lucro (se o processo fosse por financiamento ilegal da campanha, o vice-presidente deveria sair também, reduzindo o apoio do PMDB). Agora bem, o que seria uma “pedalada”? Essencialmente, deixar de pagar um gasto em certo período, pagando-o pouco depois, algo muito diferente de uma cessação de pagos (“calote”, nos termos de nossa imprensa). Agora bem, pensemos um pouco: é isso algo realmente tão extraordinário? Toda firma ou toda família com um mínimo de crédito no mercado sabe que algumas vezes pode incorrer em vermelhos momentâneos. Isso torna-se mais provável em momentos de queda de receitas, e quando há vários gastos contratados previamente. O que aconteceu com o governo foi essencialmente isso.
Confesso que quando ouvi falar por primeira vez das “pedaladas”, eu sorri considerando que era apenas mais uma manobra de alguns oposicionistas promovendo picuinhas para criticar o governo. Com o tempo, fiquei espantado de ver que algumas pessoas honestas realmente acreditam que isso seja um problema relevante. Por isso, aqui mantenho o termo entre aspas; sinto que se o deixasse nu algum ingênuo poderia acreditar que se trata de algo sério. Essencialmente, o que os promotores dessa crendice estão dizendo é que, ante compromissos importantes contratados no sistema financeiro (p.ex., acertar com um banco que ele pague os benefícios do Programa Bolsa-Família), o governo não pode pedir que os bancos adiantem dinheiro face a uma queda da arrecadação, sendo melhor que atrase seus pagamentos. Comparando com as finanças pessoais, é como ter uma conta em débito automático em uma instituição na qual temos crédito; se por algum motivo na data de pagamento o saldo do cliente é insuficiente, o banco paga, e depois se acerta com o cliente, o que parece uma situação boa para o cliente, para quem recebe e para o próprio banco. Eu entendo que os que fazem esta crítica são simplesmente insensíveis à responsabilidade do governo ao liberar recursos, dos quais em muitos casos dependem famílias e empresas cuja capacidade de obter crédito ante atrasos do governo é tipicamente muito menor.
Acho importante não confundir isto com os motivos que levaram à implementação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Durante muito tempo no Brasil, em muitos estados e prefeituras os governantes incorriam em gastos absurdos para se promoverem, para atrapalharem o sucessor ou simplesmente por incompetência. Saindo do nível subnacional para o nacional, o caráter do problema é outro. A capacidade do governo federal de emitir dívida (e de mexer na quantidade de moeda) mudam completamente a questão quando falamos dos problemas nesta esfera. Mas, até esquecendo as especificidades da esfera federal na determinação de sua política fiscal, o caso das “pedaladas” representa simplesmente um atraso parcial de algum pagamento por um problema de caixa, não a contratação de gastos novos acima de algum limite. Ou seja, mais uma vez enfrentamos um falso problema.
Se os dois pseudomotivos de impeachment são risíveis, o terceiro é ainda pior: a presidenta teria obstruído a Justiça no caso da Lava-Jato. Como todas as evidências dessa obstrução teriam ocorrido recentemente, chegamos a uma conclusão curiosa: não existiam motivos para o impeachment, mas o processo estava sendo tramado; Dilma teria feito algo ilegal para parar esse impeachment ilegal, então agora haveria motivos reais para o impeachment. Antes era blefe, mas a presidenta caiu no conto do vigário então agora “tá valendo”. Ridículo.
Como conclusão, resulta mais do que evidente que estas tentativas de impeachment constituem uma lastimável tentativa de golpe. Obviamente, o mecanismo de impeachment está previsto na Constituição, e se justifica desde que tenha motivos reais. Mas pode ter processos de impeachment que sejam uma afronta ao espírito da lei. Vou dar um exemplo claro: a Lei nº. 1.079 em seu Art.4: diz que “São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra….” e o item II explicita “O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados”. Suponha então que algum presidente imite o que se faz em muitos países, e tente pôr um limite à farra de gastos do Legislativo e do Judiciário, que hoje inclui a possibilidade de determinar os aumentos nos próprios salários; tranquilamente essas corporações poderiam articular um processo de impeachment para remover o presidente incômodo, mas esse claramente seria um golpe motivado pelo desejo de manutenção de privilégios descabidos. Os motivos desta vez não são os desse caso hipotético, mas são igualmente imorais: os maus perdedores somam-se a oportunistas que veem a chance de alcançarem um poder que as urnas nunca lhes dariam, e são capazes de jogar o país numa situação para lá de conflitiva só para satisfazer seus interesses mesquinhos, e para tentar impor políticas que não foram aprovadas nas eleições. Perderam, mas querem virar a mesa. Aproveitam para isso o mau-humor da população, compreensível face a crise econômica, mas que nunca foi, nem pode ser, motivo para derrubar um governo legitimamente constituído.
Muitos opositores ao governo lembram que o PT, quando oposição, promoveu tentativas de impeachment de vários presidentes, afirmação completamente verdadeira. Todavia, os erros dos outros não justificam os nossos. Estou de acordo com que o PT moveu uma oposição em muitos casos imbecil, especialmente ao governo do presidente FHC; todavia, as tentativas de impeachment sempre foram mais uma questão simbólica, para inglês ver; nunca os movimentos sociais vinculados ao PT realmente levaram a sério essas propostas, algo radicalmente diferente do que ocorreu no impeachment do presidente Collor. E certamente o impacto desses pedidos de impeachment quase amadores não pode ser minimamente comparado com a campanha suja de hoje, iniciada há anos, na qual toda a grande imprensa joga seu peso para liderar a oposição em sua tentativa de quebra das instituições democráticas.
Há um ponto adicional que não posso deixar de comentar: muitas pessoas sem maiores conhecimentos, mas também algumas pessoas que deveriam ser mais esclarecidas, supõem que o governo pode ser derrubado porque estamos em crise econômica. As pessoas deveriam entender que esse não é, e nunca poderia ser, motivo de impeachment. Num governo parlamentarista (que, a título completamente pessoal, acho melhor que o presidencialista) há uma separação entre o chefe de estado e o chefe de governo; tipicamente, um voto de desconfiança do Parlamento derruba o chefe de governo, e a seguir o chefe de estado (presidente), que não muda, indica outra pessoa para formar o novo governo. Num regime presidencialista como o nosso, definido pela Constituição de 1988 e esmagadoramente confirmado no plebiscito de 1993, esse mecanismo não existe. O presidente tem quatro anos de mandato, e esse mandato deve ser respeitado. Assim como o presidente FHC se manteve no cargo nas crises de 1999 e 2001, o atual governo deve continuar até completar o mandato constitucional, e depois os eleitores terão a oportunidade de manifestar sua visão nas eleições presidenciais de 2018. Os cidadãos avaliarão, chegado o momento, o desempenho do governo, e caso mantiverem a avaliação crítica, manifestarão isso rejeitando nas urnas, no momento oportuno, os candidatos situacionistas.
É necessário, ademais, fazer menção a um assunto que não está necessariamente vinculado ao impeachment, mas que está por trás de todo o clima político tenso do Brasil nos últimos dois anos: a já mencionada Operação Lava-Jato e seus desdobramentos. A operação Lava-Jato trouxe à tona dois processos diferentes, porém estreitamente vinculados: um esquema de desvios para enriquecimento pessoal, e outro de financiamento ilegal de campanhas. O primeiro não merece maior discussão, e os que dele se aproveitaram devem ser punidos dentro do processo legalmente determinado. O segundo mostra um problema de todas as campanhas políticas do Brasil. A utilização político-partidária dessa investigação por diversos agentes cria confusão, impede seu dimensionamento correto, e passa a ser uma arma central na tentativa de golpe, por pretender inocentar alguns dos culpados e demonizar os outros.
Finalizando, o Brasil passa por um momento muito tenso. Grupos extremistas de direita promovem uma campanha de ódio inédita. É o dever dos cidadãos de bem repudiá-los, e continuar agindo dentro da lei, contra ou a favor do governo, trabalhando para impor suas ideias democraticamente em todas as eleições, e especialmente nas presidenciais de 2018. Confio em que os cidadãos sensatos conseguiremos deter a marcha de irracionalidade e preservaremos as instituições democráticas, abortando a lastimável tentativa de golpe que está em curso.
Ramón García Fernández Professor da UFABC. Economista e doutor em Economia pela Universidade de São Paulo Pós Doutor pela University of Massachusetts – Amherst
Nossa elite intelectual está defendendo criminosos, este país não tem mesmo a menor chance de dar certo.
Li o texto todo esperando o autor finalmente dizer ou demonstrar que se tratava de uma ironia…
Caro Prof. Ramón, apesar de muito sensato suas análises, ainda sim apóio o processo democrático do Impeachtment, e não “golpe”,
não apesas como muitos teêm a insitência em denomiar, e infelizmente vosmece o também, pois apesar de ser uma palavra,
é como por lenha na fogueira, se a situação não é boa, é preciso mudar, e não inflamar.
Nada há vergonha em ser responsável, se o governo atual e tantos outros por vim, vierem eventualmente,
a enfiar os pés pelas mãos, que assim seja, mas devemos sempre lembrar que sejam quais forem os políticos, são
representantes da nação e sendo assim, devem honrar a função que por hora ocupam, e presta contas.
Fico grato por ter exposto sua análise e vossas idéias.
Sobre as pedaladas, há dois detalhes que precisam ser bem acentuados: (1) não houve um simples “atraso parcial” no repasse de dinheiro à Caixa como vinha acontecendo até então, mas sim a utilização de recursos da Caixa de forma inteiramente atípica, tanto no que se refere ao valor quanto à duração da operação; (2) salvo engano, o TCU observou que a operação não foi contabilizada pelo governo, apenas pela Caixa, de modo que quem consultasse a contabilidade governamental não perceberia que benefícios foram pagos com dinheiro da Caixa. Dilma sabia que estava fazendo coisa errada, mas contava com o apoio no congresso e o apoio do eleitorado para não ser responsabilizada pelas pedaladas (caso fossem descobertas). Se a economia estivesse muito bem, todos (Congresso e povo) perdoariam o deslize. O deslize existiu, a economia está muito mal e ninguém está disposto a perdoar. Não há nada de golpe aí, apenas o quadro econômico gerando um ambiente político favorável a que a Presidente seja responsabilizada por seus atos.
Ramón García Fernández
Professor da UFABC.
Economista e doutor em Economia pela Universidade de São Paulo
Pós Doutor pela University of Massachusetts – Amherst
“PUXA SACO”
Os argumentos sobre as pedaladas me pareceram muito rasos.
Que tristeza ver a academia brasileira tão subserviente a um governo de pilantras. Tudo é desculpa para defender o indefensável.
Muito boa essa ….. sátira ….. realmente revela o que todos os que defendem o desgoverno pensam… muito boa mesmo…. legal…. olha não poderia ter ficado melhor…. Me sinto como a Glória Pires comentando o Oscar…. huahuahuahua
Meu Deus, onde essa pessoa se esconde, pois, não é possível ler tanta bombagem.
Está mais do que provado que esse partido só tem bandidos, a cada momento essa gente bate a cara da população e tem gente ainda que consegue ser ignorante mesmo sabendo ler e publicar um texto na internet.
Como valorizar um artigo de um indivíduo que chama os outros de crianças?
Aí eu pergunto, quem defende bandido é o que: Imbecil ou Bandido também?
Por favor galera, não generalizem a opinião do prof. Ramon para toda a “academia brasileira”.
Me sinto injustamente e muito mal representada por ele em suas colocações.
Sim, nós sabemos de todos os horrores da ditadura e existe uma pequena minoria disposta a esquecer os malefícios da ditadura em troca de ter uma suposta ordem e busca de estabilidade econômica (suposta busca também).
Estamos cansados de saber disso, mas o medo do “”””golpe”””” e o medo da volta de uma ditadura ou do “enfraquecimento da democracia” não são justificativas para afrouxarmos as instituições e os mecanismos que cobram o cumprimento das leis e o melhor desempenho por parte dos nossos governantes.
Em especial o topo do executivo. A lava-jato acima de tudo repesenta uma mensagem a todos os políticos, de que nenhuma ação incorreta deveria ser passível de ser impune, por mais que venha do ex-presidente do partido governante.
Ou quer dizer que só porque “o time ganhou” que ele está acima de qualquer suspeita e pode influenciar e infringir as regras do jogo. Os argumentos dele me levam a concluir que ele crê nisso, e que todo mundo que for criticar o “time ganhador” é iludido ou golpista….
A sua perspectiva diferente está exatamente igual à dos petistas de carterinha que conheço.
Sua tentativa de suavizar e relevar os malfeitos ptralhas é ridícula, quanta incoerência.
Infelizmente nossas universidade estão infestadas por esquerdopatas transvestidos atrás de seus títulos como o sr.