Federação: empurrando com a barriga

Terraço Econômico | Por Alípio Ferreira Cantisani

Durante a campanha eleitoral deste ano, um tema importante era mencionado raramente: a federação brasileira. Aécio Neves começou, lá em 2013, com um discurso entusiasta sobre a federação, defendendo uma renovação do “pacto federativo”[1]. Muitos o criticaram[2], muitos não o entenderam, e o assunto não prosperou no debate público. Recentemente, em entrevista ao Jornal Nacional após a vitória, a presidente reeleita relembrou a importância de acabar com a guerra fiscal que os Estados brasileiros travam entre si. A federação volta à pauta: passadas as eleições, podemos nos voltar aos temas que importam…

“A República Federativa do Brasil [é] formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Assim começa o primeiro artigo da Constituição de 1988, que eleva os municípios brasileiros ao status de “ente federado”, mais um fruto de nossa velha jabuticabeira! Na maior parte das federações do mundo, os municípios possuem poucas funções, poderes diminutos e pequena capacidade orçamentária. No Brasil, os municípios são responsáveis pela oferta da maior parte dos serviços públicos, regularização de terrenos, urbanismo e diversas outras políticas.

O clima de 1988 era “descentralizar”. O ICM dos Estados virou ICMS e engordou um bocado. Os Fundos de Participação foram aumentados. A União parecia estar perdendo espaço depois de duas décadas de regime autoritário. Mas hoje, passados 26 anos da redemocratização do Brasil, dá para ver que o ente que relativamente mais perdeu sua importância, autonomia e capacidade de ação foi na verdade o Estado: justamente a unidade clássica de qualquer federação!

Essa relevância relativamente menor dos governos estaduais é sentida pelos brasileiros. Quando se pergunta quem toma decisões mais importantes para a vida do cidadão, primeiro vem o presidente, depois o prefeito, depois o governador do Estado. Quando se pergunta quem deveria ter mais poder, novamente o brasileiro responde primeiro o prefeito, depois o presidente, e por último o governador[3].  O que aconteceu?

Há diversas razões para os Estados terem declinado em seu poder e prestígio, mas não entremos nelas neste momento. O urgente hoje é notar que os Estados brasileiros caminham para se tornar um ente federativo disfuncional: endividado, esvaziado politicamente e em conflito com os outros Estados. Hoje, pelo menos três questões federativas importantes tiram o sono de muitos governadores. Esperemos que a presidente, com os quatro anos a mais que os brasileiros lhe confiaram, mude sua estratégia e seja capaz de reformar o que não conseguiu no seu primeiro mandato.

[caption id="attachment_2069" align="aligncenter" width="631"] As estrelas na nossa bandeira representam os Estados e o DF. Por quanto tempo continuarão brilhando?[/caption] 1) Fundo de Participação dos Estados

De todo o imposto de renda (IR) e imposto sobre produtos industrializados (IPI) arrecadados pela União, 21,5% pertencem aos Estados e devem ser a eles repassados através do chamado Fundo de Participação dos Estados. Isso não é pouco dinheiro. Em 2013, a União repassou mais de R$50 bilhões aos Estados referentes a esses dois impostos (isso sem contar a famosa “pedalada” que o governo deu, atrasando o repasse em dezembro para que caísse somente em janeiro). Em média, esse dinheirinho representa cerca de 11% do orçamento que os Estados brasileiros possuem para suas despesas.  Para o Acre, Amapá e Roraima, esses repasses são mais de metade da receita.

Mas a questão é: como esse recurso é distribuído? Excelente pergunta. Basicamente o governo utiliza uma tabela de 1989 que deveria ter sido atualizada e nunca foi. Quais são os critérios dessa tabela? Mistério. Claramente o legislador tentou dar mais aos Estados mais pobres, com alguma relação com o número de habitantes, mas não há fórmula matemática que alcance a sutileza de nossos representantes em Brasília. O fato é que “foi ficando”, até que o Supremo Tribunal Federal decidiu que a tabela precisava ser revista. O Congresso Nacional respondeu com uma piada de mau gosto, mudando tudo para deixar tudo como está, e assim vamos empurrando o problema com a barriga.

Que problema? Os pobres ganham mais que os ricos, isso não é bom? Siiim, é claro que é bom. Deixemos de lado o fato de que São Paulo gera 40% desses impostos e recebe somente 1% desses repasses. Afinal, São Paulo é “rico”. Mas alguém pode explicar por que o Piauí recebe o mesmo que Tocantins, mesmo tendo um metade da população do outro? Por que Alagoas, com seus 3,2 milhões de habitantes, recebe o mesmo que Sergipe, que tem 2,2 milhões? Por que o Acre de 800 mil habitantes recebe o mesmo do que a soma dos dois Mato Grossos, com 5,8 milhões? Essas questões merecem boas respostas, e “porque sim” não serve. Não é pedir demais exigir critérios para a aplicação dos recursos públicos.

2) Dívida dos Estados

O maior rentista do Brasil se chama “governo federal”. Em 2013 foram mais de R$25 bilhões de reais que fluíram dos cofres dos Estados e Municípios para servir a dívida que todos eles possuem com a União.  Por um lado, isso não representa muito no orçamento de mais de R$1,4 trilhão que a União possui. Por outro lado, a imensa dívida que os Estados possuem com a União os restringe e os onera. Estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul possuem as maiores dívidas, conjuntamente com a Prefeitura de São Paulo. Os termos dessas dívidas já deixaram de ser compatíveis com as condições macroeconômicas do país, tornando-se excessivamente onerosas para os entes da federação. Assim, fica claro que medidas são necessárias, e o credor-mor e arrecadador-mor da Nação deve tomar a dianteira. O governo federal de fato começou uma conversa de “renegociação” dos termos da dívida, muito embora isso fosse proibido por lei. A generosidade federal era tanta que se falava de revisões retroativas da dívida, algo proibido pela lei e pelo bom senso. A conversa se alongou, prolongou, delongou e como tantas coisas no governo Dilma, não deu em nada.

Porém, esse mesmo governo tem expressado um desejo de expansão acelerada dos investimentos em infraestrutura no país, e para tal contam com os Estados. A União estimulou os Estados a contraírem dívidas para investir em estradas, rodovias, metrôs, VLTs e todo o mais, ao mesmo tempo em que reduziam o IPI e flertavam ambiguamente com um aumento do resultado primário do setor público. No fim os Estados aumentaram sua relação dívida/receita e a perspectiva é de alta. Além do mais, a euforia dos investimentos também veio acompanhada por outras pressões orçamentárias – pisos salariais federais, despesas com precatórios, etc. – que reduzem o espaço para economias e gestão dessa dívida.

Alguns Estados, como o Mato Grosso, quitaram ou refinanciaram sua dívida com a União, contratando dívidas com instituições privadas em condições mais favoráveis. Essa solução é difícil para grandes Estados, mas seria muito viável para outros casos: Minas Gerais renegociou parte de sua dívida dessa forma. A questão é: que Estado vai se endividar com uma instituição privada se o governo federal continuamente promete renegociar sua dívida? Ficam todos esperando Godot – mas Godot nunca chega.

3) Guerra Fiscal

A presidente Dilma parecia realmente empenhada em acabar com a guerra fiscal. Porém, esqueceu de combinar com os russos. Durante anos tramitam no Congresso propostas de reforma do ICMS que visam minar essa prática ensandecida dos Estados brasileiros. E nada. Os congressistas hesitam em quebrar um esquema que beneficia empresários e políticos em suas regiões, procrastinando a solução do conflito mais distorcivo e caro da federação brasileira. Depois de tantos esforços, os Estados continuam, à revelia da Constituição, fazendo um balcão de negócios com empresários, prometendo incentivos tributários ilegais como meio de atração de empresas para seu território. A impunidade é grande, e o crime compensa.

A proposta do governo federal ventilada aos Estados no fim de 2012 envolvia a redução da chamada “alíquota interestadual” – uma jabuticaba – a um nível tão baixo que retirasse dos Estados o incentivo de conceder benefícios com ICMS. O assunto é complexo, e quem não está familiarizado tem às vezes dificuldades de entender. Mas em linhas gerais, funciona da seguinte forma: no Brasil, uma venda que ocorre de uma empresa para outra em Estados diferentes rende impostos para os dois Estados: um pouquinho para a origem, um pouquinho para o destino. Na guerra fiscal, os Estados prometem dar um desconto naquele imposto que lhe caberia com a condição de que a empresa vá se instalar em seu território: assim, há um imposto menor cobrado na “origem”.

O problema é que essa prática pretensamente benevolente gera distorções econômicas, mina ainda mais a capacidade fiscal dos Estados e – essa sozinha já deveria valer – é ilegal! Trata-se não somente de uma renúncia indevida de recursos públicos em prol de um ente privado, como também afeta a arrecadação do Estado de destino. Além de enfraquecer fiscalmente os Estados e promover uma distribuição ineficiente dos recursos econômicos no território, a guerra fiscal mina a capacidade de coordenação e cooperação entre os Estados.

A presidente corretamente comentou, no Jornal Nacional, que pelo menos uma das formas da guerra fiscal, conhecida como “guerra dos portos”, foi praticamente resolvida. O problema é que, como tem sido típico das “soluções” que nossos representantes em Brasília adotam, essa solução foi mambembe, trocou um problema por outro: solucionou a questão da guerra dos portos, criando complicações sobre “conteúdo nacional” que alguém no futuro haverá de resolver.

O problema da guerra fiscal e do sistema tributário não é da Dilma ou do PT. A competição tributária existe no mundo todo e não é novidade no Brasil. Porém, avanços têm de ser feitos, e pelo andar da carruagem o ICMS vai se tornando cada vez mais um imposto descreditado e oneroso para a economia brasileira. Aécio Neves tinha a proposta de criação de um Imposto de Valor Adicionado nacional, que provavelmente integraria os diferentes IVAs (IPI, ICMS, ISS) e criaria regras de repartição. Se a presidente abraçasse essa ideia é garantido que ela não faria voltar nenhum “fantasma do passado”.

O Fim

Justiça seja feita, Dilma pôs o dedo em todas as três questões mencionadas, e possivelmente tinha as intenções corretas. Na reforma tributária especificamente, a presidente escolheu a estratégia da “reforma fatiada” no lugar da “grande reforma”, essa panaceia mágica pela qual todos ansiamos. Porém, nada deu certo. Apesar de todo o esforço político empenhado, pouco avanço foi feito em matéria federativa (sendo a guerra dos portos honrosa exceção). Pelo contrário, uma série de propostas legislativas bombásticas continuam tramitando ameaçando as finanças dos estados ou de alguns estados. Dilma tem mais uma chance, será que desta vez vai entregar o produto?

Alípio Ferreira Cantisani Economista, é redator do Terraço Econômico

[1] http://www.psdb.org.br/lancamento-da-declaracao-de-pocos-de-caldas-30/ [2] http://www.mailsondanobrega.com.br/detalheArtigo.php?ParentID=298 [3]“Os Estados nas federações”, Marta Arretche e Rogerio Schlegel, Texto para Discussão BID http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=38638570
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