Fronteiras sem Ciência: balanço de um programa

Rafael Barros de Oliveira

Dias atrás foi noticiado o retorno do programa Ciência Sem Fronteiras (CSF), ligeiramente repaginado, após um período de suspensão e suspense — como a maioria das políticas federais desde o início de 2015. Neste artigo, apresento um balanço crítico do programa em duas partes: a primeira, sobre a breve história do CSF (formulação, implementação, reformulação); a segunda, uma avaliação desta política pública no contexto do projeto de educação superior no Brasil.

Antes de mais nada, cabe dizer que este texto não é um ataque pessoal nem uma tentativa de deslegitimação de experiências individuais de sucesso: reconheço a existência de casos exitosos e de grandes conquistas subjetivas que se deram graças ao programa. O que me interessa aqui, no entanto, é analisar uma política de Estado, num contexto mais amplo de projeto de sociedade e priorização orçamentária.

Internacionalização: uma via de mão dupla?

O Programa Ciência Sem Fronteiras (CSF) foi criado em meados de 2011 e instituído no final daquele ano, o primeiro do governo de Dilma Rousseff. A finalidade do programa era “propiciar a formação e capacitação de pessoas com elevada qualificação em universidades, instituições de educação profissional e tecnológica, e centros de pesquisa estrangeiros de excelência, além de atrair para o Brasil jovens talentos e pesquisadores estrangeiros de elevada qualificação, em áreas de conhecimento definidas como prioritárias”.

A meta geral era especificada em nove itens: 1) “promover (…) a formação de estudantes brasileiros, conferindo-lhes a oportunidade de novas experiências educacionais e profissionais voltadas para a qualidade, o empreendedorismo, a competitividade e a inovação (…)”; 2) “ampliar a participação e a mobilidade internacional (…) para o desenvolvimento de projetos de pesquisa, estudos, treinamento e capacitação em instituições de excelência no exterior”; 3) “criar oportunidade de cooperação entre grupos de pesquisa brasileiros e estrangeiros (…) de reconhecido padrão internacional”; 4) “promover a cooperação técnico-científica entre pesquisadores brasileiros e pesquisadores de reconhecida liderança científica residentes no exterior por meio de projetos de cooperação bilateral e programas para fixação no País, na condição de pesquisadores visitantes ou em caráter permanente”; 5) “promover a cooperação internacional na área de ciência, tecnologia e inovação”; 6) “contribuir para a internacionalização das instituições de ensino superior e dos centros de pesquisa brasileiros”; 7) “propiciar maior visibilidade internacional à pesquisa acadêmica e científica realizada no Brasil”; 8) “contribuir para o aumento da competitividade das empresas brasileiras”; e 9) “estimular e aperfeiçoar as pesquisas aplicadas no País”.

De modo geral, podemos agrupar esse conjunto de informações segundo uma divisão binária: por um lado, projetar quadros brasileiros no exterior (“propiciar a formação e capacitação de pessoas com elevada qualificação em universidades, instituições de educação profissional e tecnológica, e centros de pesquisa estrangeiros de excelência” e itens 1, 2 ,3, 6 e 7); por outro lado, importar o que há de mais desenvolvido em ciência e tecnologia, na forma de pessoas e conhecimento (“além de atrair para o Brasil jovens talentos e pesquisadores estrangeiros de elevada qualificação, em áreas de conhecimento definidas como prioritárias” e itens 4, 5, 8 e 9).

Ora, por meio de quais instrumentos seriam esses objetivos atingidos? Pela concessão de bolsas no exterior e no país, conforme a divisão exposta acima.

No portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), um dos órgãos responsáveis pelo programa junto ao Ministério da Educação (MEC) e ao Conselho Nacional Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, mantendo a sigla de sua antiga nomenclatura: Conselho Nacional de Pesquisas), é possível encontrar uma apresentação em vídeo com dados consolidados do CSF desde sua implementação em 2011 até o presente.

Nele, somos informados que das mais de 101 mil bolsas concedidas pelo CSF, 97 mil foram para a ida de brasileiros ao exterior, ao passo que apenas 4 mil se destinaram a projetos realizados no país (2 mil para jovens pesquisadores e 2 mil para cientistas visitantes). Logo de cara, nota-se um desequilíbrio brutal: o CSF foi apresentado como via de mão dupla, de envio e recebimento de quadros, mas o que se viu, na prática, foi um fluxo praticamente unilateral de brasileiros para instituições estrangeiras. A pergunta que emerge dessa constatação é a seguinte: não estariam os objetivos do segundo grupo, referentes a elevar o nível científico e tecnológico do país, comprometidos — para não dizer inviabilizados — em razão dessa distribuição desigual?

Em princípio, não. Embora a atração de profissionais estrangeiros seja marginal (menos de 2% das bolsas concedidas), o que importaria seria a aquisição do conhecimento, das técnicas e know-how de pesquisas de ponta. Um pesquisador brasileiro poderia ir ao exterior, apropriar-se do que há de mais avançado em ciência e tecnologia, retornar ao Brasil e replicar ou implementar esse conhecimento entre nós. Considerando essa hipótese, surge uma nova pergunta: qual o perfil dos pesquisadores selecionados pelo CSF para cumprir essa missão?

A CAPES responde: 64 mil bolsas para graduação sanduíche, 15 mil bolsas de doutorado sanduíche, 4.500 bolsas de doutorado pleno, 6.440 bolsas de pós-doutorado e 7.060 bolsas para treinamento de especialistas. Ou seja, a vasta maioria que compôs o batalhão brasileiro na expedição global em busca de desenvolvimento científico e tecnológico consistia em estudantes de graduação (65% das bolsas), alunos e alunas entre 18 e 25 anos com no máximo 5 anos de treinamento acadêmico e científico de nível superior. Foi nesses jovens que o Governo Federal entendeu por bem depositar a responsabilidade e a esperança de importar um novo patamar científico para o Brasil.

O erro é evidente. Não é razoável esperar nem exigir desse perfil de quadro que sejam capazes de alcançar esse nível de conhecimento: trata-se de pessoas em estágio inicial de formação, que não estão prontas — nem deveriam estar! — para assimilar o estado da arte de seu campo de estudos. Além disso, não é preciso ser profundo conhecedor e especialista nos sistemas de ensino superior de Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, França, Austrália, Alemanha, Espanha e Itália — destinos mais frequentes dos beneficiários do programa — para saber que no nível de graduação há pouca pesquisa e quando o estudante chega a ter contato com projetos de ponta, essa participação é mínima, tangencial — como não poderia deixar de ser.

Cabe aplicar o mesmo questionamento para o outro grupo de objetivos: a exportação da ciência brasileira. A conclusão, neste caso, é a mesma: estudantes de graduação não só não representam o que de mais avançado há na ciência brasileira como suas pesquisas, no estágio e grau de complexidade que podem — na melhor das hipóteses — se encontrar, não carecem de oferta de instrumental básico que justifique o financiamento de idas ao exterior. Em suma, esses estudantes não costumam levar o que de melhor temos a oferecer e não trazem nada que não já tenhamos aqui — salvo raríssimas exceções.

Concluindo a análise: o CSF foi, até agora, um fracasso retumbante. E isso não por críticas externas, mas apenas pela contradição entre seus fins estipulados e os meios escolhidos para atingi-los.

Essa é, me parece, a crítica mais eficaz que se pode opor ao programa: a exposição das contradições internas entre fins e meios. Há, no entanto, muitas outras possíveis e já realizadas.

Uma delas, quanto à restrição do programa às ciências exatas e naturais, excluindo de seu horizonte as artes e as ciências humanas. A essa crítica, o Governo Federal respondeu lançando migalhas na forma do Programa Conexão Cultura Brasil, apelidado jocosamente de Cultura Sem Fronteiras. A extensão desse programa já mostra o grau de improviso e descaso dessa pseudo-solução.

Outra objeção se dá no sentido de questionar a qualidade das instituições de destino de pesquisadores brasileiros no exterior. A essa crítica, a resposta costumava enfatizar a grandeza do programa, com suas 101 mil bolsas, louvando o impacto que essa oportunidade causaria na vida dos beneficiários e mobilizando a retórica batida do “nunca antes na história deste país”. Trata-se de uma resposta cínica, resultado da incapacidade de lidar com a tensão entre os dois grandes objetivos de uma política de educação superior: excelência e democratização — como mostrei neste texto.

Quanto à notícia da reativação do CSF pela administração de Michel Temer, três mudanças positivas saltam aos olhos: 1) a possibilidade de oferecimento de bolsas para cursos de férias com o objetivo de proporcionar aos melhores alunos do Ensino Médio da rede pública a oportunidade de aprender outros idiomas; 2) uma mudança de foco para privilegiar alunos de pós-graduação, com a inclusão da modalidade de bolsa de mestrado no exterior; 3) a ampliação do programa para todas as áreas do conhecimento.

Tratam-se, a meu ver, de decisões acertadas. Oferecer oportunidades de formação pessoal para alunos de Ensino Médio da rede pública, que concentra estudantes de renda média inferior àquela de seus pares na rede privada, e promover a internacionalização pela via de pesquisadores mais maduros, em estágios mais avançados de formação e sem restrição de áreas de conhecimento.

Um ponto, no entanto, permanece problemático. Apesar de reiterar a exigência de qualidade das instituições no exterior para que sejam elegíveis como destino, a CAPES não especificou os critérios para determinar o que é uma instituição de excelência. Há dois anos, abordei essa questão ao tratar de problemas nos rankings universitários e da dificuldade em propor alternativas a eles. Passaram-se os anos, e infelizmente a situação permanece a mesma.

À guisa de conclusão, é com extremo pesar que me vejo obrigado a dizer que o CSF não ajudou a reverter nossa posição subalterna e periférica na divisão internacional do trabalho intelectual. Pior ainda: ao que tudo indica, permaneceremos sem ciência de ponta no interior de nossas fronteiras.

Rafael Barros de Oliveira Formado em direito e em filosofia pela USP, foi pesquisador assistente na Direito GV e pesquisador visitante na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt Originalmente publicado em: https://medium.com/@barros_rb/fronteiras-sem-ci%C3%AAncia-balan%C3%A7o-de-um-programa-ef0e6d2f18b#.q5lk3efgc

Rafael Barros de Oliveira

Formado em Direito pela USP, interessou-se pela teoria do direito produzida na Escócia antes de cair na filosofia da linguagem. Tomou o caminho mais longo, cursando a graduação em Filosofia na mesma USP, onde percebeu a tempo que do mato wittgensteiniano não sairá mais pato-lebre algum. Social-democrata por exclusão, acredita que a hermenêutica é o caminho para a emancipação. Foi pesquisador na Direito GV, na École Normale Supérieure de Paris e na Goethe Universität Frankfurt. É mestrando em Filosofia pela USP e agora tenta produzir suas próprias cervejas.

4 Comentários

  1. Críticas excelentes. Há tempos não via um texto pertinente assim no terraço…
    Uma única observação que gostaria de fazer é a de que o mestrado também não é lá grande alavancador dos objetivos elencados pelo autor do texto. Deve-se levar em consideração que o mestrado não gera uma tese, gera uma dissertação a qual não é necessariamente sobre algo inédito ou inovador. Além disso, boa parte da Europa, e acredito que seja semelhante nos EUA, o mestrado já não tem o mesmo peso, valor e qualidade que temos no Brasil. Tornou-se mais aqui (europa) como um curso de longa duração com uma breve revisão sobre um determinado assunto.
    O doutorado pleno e sanduíche e o pós-doutorado ainda são peças chaves pros objetivos nossos, assim como a fixação de doutores estrangeiros no país.
    Abraços,

  2. Como o autor mesmo menciona, sim, existem casos de sucesso individual, porém no conjunto, muitas coisas devem ser reestruturadas.
    Vivi no exterior por conta própria no ano de 2014, em Dublin, Irlanda, onde fiz dezenas de amigos vivendo no país pelo programa CsF. Nada se pode generalizar nessa vida, porém cansei de ver casos de pessoas que denominavam o programa como o “Bolsa Família da Classe Média”, onde o governo pagava para você viajar e morar fora, e por último estudar.
    Um ponto que em muito me chamava a atenção era o fato de o governo pagar um intercâmbio de 6 meses (no caso da Irlanda) para que os alunos aprendessem inglês, e depois prestarem a prova de capacitação para o ingresso na universidade. Houveram muitos casos reais de estudantes que viveram no exterior 6 meses e não estudaram nem o idioma, logo, reprovaram na admissão universitária e retornaram ao país sendo bancados 6, 7 meses pra nada.
    Já os que eram admitidos nos cursos, ficavam no país cerca de 13 a 14 meses, sendo desses 6 meses somente para o estudo de inglês, 3 meses de férias de verão, 4 meses de aulas e mais 1 mês de férias de final de ano…
    O investimento na língua estrangeira podia ter vindo em cursos dentro das universidades!
    Também tive acesso e contato com membros da embaixada brasileira no país, e quando questionei sobre a eficácia do programa, ouvia respostas gerais como “estamos marcando presença no mundo”, “é importante para questões de representatividade internacional” entre outras.
    O relato se parece superficial, porém parte da experiência e observação própria vivida por mim.

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