Mês passado o Banco Mundial divulgou seu relatório sobre as despesas públicas no Brasil[1]. Intitulado Um ajuste justo, o documento de 160 páginas traz diagnósticos e propostas para muitas dimensões da vida em nosso país.
Neste texto, comentarei apenas a seção referente à educação, intitulada Gastar mais ou melhor? Eficiência e equidade da educação pública. Reagirei a alguns equívocos que o relatório apresenta, tanto no diagnóstico quanto no prognóstico – chamo de equívocos para evitar avaliações mais fortes, de uma intervenção deliberada do Banco Mundial num sentido contrário aos melhores interesses do Brasil, pautada por uma geopolítica de dominação internacional.
Longe de mim desqualificar os excelentes quadros do Banco, pretendo apenas fazer pequenos reparos e apresentar caminhos alternativos para a educação brasileira. A única crítica veemente e taxativa que faço é a seguinte: o Banco Mundial precisa diagramar melhor seus relatórios – um pouco de organização e bom senso estético não faz mal a ninguém.
O Diagnóstico
As crescentes despesas públicas e a queda nos números de matrículas públicas resultam em um maior gasto por estudante e em razões aluno-professor ineficientes. Para municípios mais ricos a eficiência é ainda mais baixa dada a transição demográfica mais acelerada, o que resulta em uma redução mais rápida do número de alunos na rede pública. A obrigatoriedade constitucional de se gastar 25 por cento das receitas tributárias em educação contribui para que tais municípios aumentem os gastos por aluno de forma mais acelerada. Esse gasto adicional nem sempre se traduz em maior aprendizado, mas pode gerar ineficiências. Além de uma razão aluno-professor relativamente baixa, o sistema público de educação no Brasil é caracterizado por baixa qualidade dos professores e pelos altos índices de reprovação. Todos esses fatores levam a ineficiências significativas. Se todos os municípios e estados fossem capazes de emular as redes escolares mais eficientes, seria possível melhorar o desempenho (em termos de níveis de aprovação e rendimento estudantil) em 40% no ensino fundamental e 18% no ensino médio, mantendo o mesmo nível de despesas públicas. Em vez disso, o Brasil está gastando 62% mais do que precisaria para atingir o desempenho atualmente observado em escolas públicas, o que corresponde a quase 1% do PIB. Os gastos públicos com o ensino superior também são altamente ineficientes, e quase 50% dos recursos poderiam ser economizados. Os gastos públicos com ensino fundamental e médio são progressivos, mas os gastos com o ensino superior são altamente regressivos. Isso indica a necessidade de introduzir o pagamento de mensalidades em universidades públicas para as famílias mais ricas e de direcionar melhor o acesso ao financiamento estudantil para o ensino superior (programa FIES).
Esse é o resumo que sintetiza a análise e a orientação do Banco Mundial sobre a educação brasileira. O diagnóstico parte da constatação da concorrência entre as três esferas federativas – União, Estados e Municípios – no custeio do sistema nacional de educação pública (item 169 do relatório). Isso está de acordo com o previsto o artigo 23, inciso V da Constituição Federal.
Quanto ao crescimento da despesa, o relatório aponta como o Brasil supera, proporcionalmente, a média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), dos BRICS e da América Latina. O crescimento se deu em todos os níveis da educação, tendo sido mais elevado na educação infantil e no ensino médio (item 170).
Essas despesas também cresceram muito no ensino superior, o que se explica pelo fato de as matrículas terem sido triplicadas nos últimos 15 anos. Nesse movimento, as universidades privadas foram protagonistas, dado que apenas 25% das matrículas são em universidades públicas. Isso não acarretou redução do gasto federal, dados programas como o ProUni e o Fies, bancados em grande medida por dinheiro público (item 171).
“O gasto médio por aluno no ensino superior não é alto, mas é consideravelmente elevado nas universidades e institutos federais” (item 172). O Brasil gastava, em 2012, 38% do que gastava a média dos países da OCDE; “[s]e considerarmos somente as instituições públicas (…), o nível de gasto por aluno é próximo ao verificado em países que possuem o dobro do PIB per capita do Brasil, e muito superior ao de vários países da OCDE, tais como Itália e Espanha”. Para além disso, os alunos em universidades públicas no Brasil custam de duas a três vezes mais que alunos de universidades privadas. Quanto a esse ponto, sugiro a comparação do desempenho das universidades italianas e espanholas em rankings mundiais – já que essa métrica costuma agradar a burocratas – ao das brasileiras, bem como os indicadores de qualidade das instituições nacionais públicas com os das privadas.
As comparações quanto à eficiência dos investimentos no ensino básico e médio são sempre colocadas em perspectiva: o Brasil está muito abaixo do que investe a média dos países da OCDE, da relação professor-aluno nesses países e do salário médio dos professores, mas – ressalta sempre o relatório – está em consonância, quando não gasta mais, com seus pares estruturais. Na seção de educação, esses tais pares estruturais nunca são explicitados. Nos gráficos, o Brasil aparece abaixo de países tão diversos como Irlanda, Turquia, Chile, México e Colômbia.
A comparação com outros países é, sem dúvida, salutar e necessária, mas há um detalhe a ser ressaltado: os dados apresentados no relatório são, na melhor das hipóteses, de 2015 – a maioria dos gráficos termina antes. Considerando o que vem ocorrendo no Brasil desde então, é de se indagar se esse relatório já não é natimorto[2].
No caso do ensino superior, é necessário registrar a prevalência do ensino superior privado no país (item 186), que apresenta um custo mais baixo por aluno (item 187), como já foi mencionado. A ineficiência desse custo elevado, para o Banco Mundial, está comprovada pelo fato de que o valor adicionado é o mesmo em ambos os casos: os alunos de universidades públicas obtêm desempenho melhor nos exames públicos (como o ENADE), mas como isso já acontecia com eles no ensino médio (ENEM), constata-se que o incremento qualitativo de uma e outra modalidade de ensino superior é basicamente o mesmo (item 188).
O cenário ganha contornos graves dado que os gastos com ensino superior tendem a beneficiar, segundo o relatório do Banco Mundial, os mais ricos, dado que apenas 15% dos estudantes de universidades públicas pertenciam, em 2015, aos 40% mais pobres da população (item 191). Somando-se a isso o fato de que os retornos financeiros advindos de um diploma de ensino superior são altos no Brasil – embora em queda constante desde 2001 –, o Banco conclui que o ensino superior gratuito pode estar perpetuando a desigualdade no país (item 192).
As propostas
Em todos os níveis da educação brasileira, o Banco Mundial considera ser possível economizar recursos mantendo os mesmos resultados. As recomendações são, para o ensino básico e médio, aumentar o número de alunos em sala de aula nas escolas mais ineficientes e implementar melhores práticas de gestão – indicação de diretores por meritocracia, pagamento de bônus com base no desempenho, contratação de empresas privadas para fornecimento de serviços educacionais (terceirização) e parcerias público-privadas no ensino básico (item 193).
Para o ensino superior, as recomendações são: limitar o gasto por aluno ao nível das universidades mais eficientes (ou seja, as privadas), na esperança de que a redução de recursos incentive as universidades a buscarem outras fontes de financiamento; ademais, introduzir a cobrança de mensalidades, inclusive ampliando o acesso ao FIES para estudantes que não possam pagar pela universidade pública.
Análise e críticaO relatório, encomendado por Joaquim Levy quando Ministro da Fazenda de Dilma Rousseff, é sem dúvida alguma um valioso documento, um diagnóstico do país produzido por um corpo burocrático de excelência internacional. No entanto, nem todas as credenciais do mundo seriam capazes de dispensar o exercício de leitura reflexiva e a filtragem de seu conteúdo de acordo com o projeto de país que queremos.
Nesse sentido, no que diz respeito à educação, há uma lógica estruturante dos conselhos do Banco Mundial que me parece essencialmente falaciosa. Ao identificar (corretamente) taxas de ineficiência nos gastos (investimentos?) públicos em educação, o Banco predica: é possível fazer o mesmo, atingir os mesmos resultados, com menos recursos.
Ora, os resultados da educação brasileira não são exatamente motivo de orgulho para nós. Pelo contrário, um dos desafios permanentes do país é precisamente elevar – e muito! – a qualidade de seu sistema de ensino.
Como o Banco Mundial nos ajuda a superar esse desafio? Não ajuda. O conselho é: vocês investem X para tirar nota 4, dá para tirar nota 4 investindo 70% de X! O problema é o seguinte: e se não quisermos mais tirar nota 4? E se decidirmos – política, jurídica, socialmente – não nos contentarmos com a mediocridade desses resultados?
De fato, a identificação de investimentos ineficientes poderia ter um papel positivo: vocês investem X para tirar nota 4; com alguns ajustes, dá para tirar nota 6 com a mesma quantia X! É disso que o Brasil precisa: de uma avaliação da qualidade de investimentos públicos com vistas a cobrar – e atingir! – melhores resultados, não com vistas a “economizar” e se manter na mediocridade. A lógica unilateral do corte de gastos pressupõe o contentamento com o status quo da (baixa) qualidade de prestação dos serviços públicos. Afinal, aumentar a qualidade da educação pública é uma das tarefas mais urgentes – se não a mais urgente – para superarmos a condição de subdesenvolvimento em que o país (ainda) se encontra.
Mais especificamente sobre o ensino superior, tenho a impressão de que o problema é ainda mais grave. Em primeiro lugar, o Banco Mundial transforma todo cálculo orçamentário na razão gasto por aluno. Por trás dessa pressuposição está uma visão bastante estreita da universidade enquanto instituição de ensino, cuja relação essencial é a de professores-alunos.
Não é essa a realidade das maiores universidades do país e do mundo. As universidades tidas como de excelência são primordialmente instituições de pesquisa, sendo impossível pensar o ensino dissociado dela.
Um problema, portanto, da metodologia do relatório. A totalidade do orçamento de uma universidade de pesquisa não pode ser reduzida à métrica “gasto por aluno”. Exemplos: cem milhões gastos para construir um acelerador de partículas é “gasto por aluno”? E cinquenta milhões para um centro de pesquisa sobre genoma humano? Talvez 40 milhões para um museu de arte contemporânea ou um arquivo histórico-literário?
De fato, é um equívoco reduzir a universidade apenas à dimensão do ensino, e isso está na base de duas sugestões – a meu ver – radicalmente equivocadas presentes no relatório do Banco Mundial: a) que as universidades públicas busquem uma relação de eficiência similar àquela das universidades privadas; b) que sejam cobradas mensalidades nas universidades públicas, como forma de financiar suas atividades.
Quanto ao primeiro equívoco, pretender que universidades públicas atinjam a mesma relação de eficiência de investimento que as universidades privadas brasileiras implica, no limite, o fim da universidade. Isso porque a maioria das universidades privadas no Brasil não produz/faz/investe em pesquisa. Em muitas universidades privadas, a relação gasto por aluno certamente faz mais sentido do que nas universidades públicas, pois aquelas de fato se apresentam como instituições – quando não empresas – exclusivamente de ensino, instrução. Ao sugerir que as universidades públicas se comportem como as privadas, o que o Banco Mundial exige daquelas instituições é que basicamente abram mão do investimento em pesquisa e se tornem meras escolas superiores. Para dizer o mínimo, trata-se de um erro grave, dada a necessidade econômica da ciência e tecnologia para qualquer país desenvolvido[3].
Quanto ao segundo equívoco, parece ser o tema quente da moda: cobrar mensalidades na universidade pública como forma de, por um lado, financiá-la e, por outro, reduzir desigualdades[4]. Não vejo problema algum em instituir tarifas para serviços públicos nem em reivindicar sua gratuidade para os usuários – e, consequentemente, o subsídio integral por parte do Estado. O que salta aos olhos como problemático nessa discussão é seu caráter ilusório: o de que a cobrança de mensalidades seria suficiente para manter uma universidade e desonerar o Estado de investir nela[5]. Não é verdade, nem aqui nem em nenhum lugar do mundo. Tomemos um exemplo dos EUA: a Universidade da Califórnia em Berkeley possui 42 mil estudantes e um orçamento de pouco mais de 4 bilhões de dólares anuais. Para que fosse completamente financiada por mensalidades, seria necessário que cada estudante pagasse mais de 95 mil dólares por ano – isso presumindo que todos pagassem tarifa cheia e que nenhum estudante recebesse abono (tuition waiver) nem bolsa (scholarship) da universidade.
No Brasil, o perfil dos estudantes de universidades públicas é historicamente elitizado. Tem-se a imagem de que o aluno das universidades públicas é majoritariamente de classe média alta e advindo do ensino médio privado. Essa realidade tem se alterado drasticamente nos últimos anos, especialmente com a adoção de medidas de ação afirmativa e inclusão social – em especial, cotas[6]. Assim sendo, quantos estudantes de fato estariam aptos a pagar mensalidades? Quanto isso geraria para a universidade? Faz sentido taxar o ensino de graduação, o de pós-graduação, as especializações, o quê? Esses são debates importantes por cima dos quais o Banco Mundial passa, apontando para uma solução simplista e, por isso mesmo, equivocada.
Por fim, retorna-se à identificação entre universidade e ensino. O pagamento de mensalidades financiaria a pesquisa? Ao contrário de uma vaga de ensino, a pesquisa em universidades públicas é um bem público por definição[7], e seu financiamento precisa ser pensado de maneira peculiar e distinta do ensino[8]. Como separar, numa mesma instituição, esses aspectos e os recursos destinados a uma e outra missão, respectivamente?
Esse caso, como os outros da seção de educação, reflete perfeitamente o tom do Banco Mundial: devemos aceitar o status quo de injustiças e desigualdades no Brasil para, dentro e a partir dele, buscar maior eficiência nos gastos. Nada contra maior eficiência, muito pelo contrário, mas é necessário reconhecer que essa não é a única métrica dos investimentos públicos[9] e, principalmente, as transformações que queremos realizar.
Referências e Notas [1] http://documents.worldbank.org/curated/en/884871511196609355/pdf/121480-REVISED-PORTUGUESE-Brazil-Public-Expenditure-Review-Overview-Portuguese-Final-revised.pdf [2] O relatório foi, de fato, encomendado em 2015 pelo então ministro Joaquim Levy durante o governo de Dilma Rousseff. O descompasso é perfeitamente normal, mas, dadas as rápidas transformações pelas quais o país tem passado, não deixa de ser relevante e possivelmente comprometedor. [3] http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/ciencia-e-tecnologia-aborto-de-um-projeto-de-nacao-14ayoo2kvihekpahldtkvy3iz [4] https://terracoeconomico.com.br/ensino-superior-universal-e-desigualdade-economica-uma-resposta-leonardo [5] https://terracoeconomico.com.br/cobrar-ou-nao-cobrar-mensalidade-essa-nao-e-questao [6] http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,2-em-3-alunos-de-universidades-federais-sao-das-classes-d-e-e,10000070529 [7] https://terracoeconomico.com.br/universidade-publica-com-preco-negativo [8] https://terracoeconomico.com.br/educacao-sem-horizontes-como-o-corte-do-orcamento-prejudica-ensino-e-pesquisa [9] https://terracoeconomico.com.br/nocao-de-eficiencia-e-os-limites-da-racionalidade-economica