Terraço Econômico | por Alípio Ferreira Cantisani Em agosto de 2014, iniciei um programa de mestrado em economia na Universidade de Tilburg, no sul da Holanda. Passado um semestre letivo, gostaria de compartilhar com os privilegiados leitores do Terraço Econômico algumas impressões sobre a Holanda e a vida de um estudante nos Países Baixos.
Universidades na Holanda
A Holanda tem se tornado destinação popular entre estudantes que desejam realizar seus estudos no exterior. A Holanda possui treze universidades, além de algumas escolas que também conferem diplomas de nível universitário. Segundo o ranking QS[1], seis dessas universidades entre as melhores do mundo, nesta ordem: Amsterdã, Leiden, Utrecht, Delft, Groningen e Roterdã (a campeã brasileira USP ocupa a 132a posição neste ranking). Na área de economia, o mesmo ranking coloca cinco entre as 100 melhores do mundo, mas em melhores posições: Roterdã, Tilburg, Maastricht, Amsterdã e a Universidade Livre de Amsterdã (a FGV e a USP também aparecem entre as 100 melhores do mundo). Outros rankings de economia destacam esses mesmos centros, como por exemplo o ranking RePEc Ideas[2] e o ranking da própria Universidade de Tilburg[3]. (Neste último, curiosamente, Tilburg é a melhor da Holanda e a 19ª melhor do mundo.)
Cada vez mais, as instituições de ensino na Holanda oferecem programas 100% em inglês. Mas em contraste com as universidades americanas e inglesas, as universidades da Europa (e da Europa continental como um todo) possuem preços muito mais acessíveis. A anualidade escolar numa universidade pública holandesa é de €1.900 para um estudante holandês ou portador de cidadania europeia. Em outros países europeus esse preço costuma ser ainda menor. Para estudantes de fora da União Europeia, o preço já se torna mais salgado: cerca de doze mil euros por ano. Estudantes estrangeiros, porém, podem candidatar-se a bolsas de estudos oferecidas pelas universidades ou pelo governo holandês, como a Orange Tulip Scholarship[4], podendo reduzir consideravelmente esses custos.
As etapas de formação universitária são diferentes daquelas que temos no Brasil. Na Holanda, o bacharelado (Bachelor) dura três anos e é complementado por um ou dois anos de mestrado (Masters). Para quem deseja seguir uma carreira acadêmica, é possível sair do bacharelado diretamente para o Research Master, que se assemelha mais ao “mestrado acadêmico” do Brasil. Esse programa dura dois anos e antecede diretamente um programa de PhD de três anos. Na Holanda, os estudantes de PhD são funcionários da universidade e ganham salários, uma vantagem muito grande para quem almeja uma carreira acadêmica.
Um complexo sistema educacional
O sistema educacional holandês é bastante complexo. Apesar de ter excelentes universidades, uma fração relativamente pequena dos holandeses frequentam essas instituições. Idealmente, há três caminhos para um estudante, e aos 12 aninhos as crianças são separadas em tipos de escolas que as direcionam para esses caminhos (é possível mudar no meio do caminho). Um dos caminhos é o MBO[5], uma formação profissional que se inicia geralmente aos 16 anos de idade e dura três anos. O governo holandês estima que 22% das crianças holandesas obtêm um diploma desse tipo[6]. A segunda opção é uma formação técnica superior chamada HBO[7], iniciada aos 17 ou 18 anos e oferecida nas chamadas escolas de ciências aplicadas (Universities of Applied Sciences) e escolas técnicas. É o provável destino de 25% das crianças holandesas. Por último, 12% adquirem um diploma na chamada “formação científica”[8] oferecida nas universidades e iniciada aos 18 anos. Os restantes 41% são jovens que iniciam e não concluem uma formação (31%) ou por alguma razão sequer iniciam (10%).
Um estudante holandês tipicamente financia seus estudos de três formas: ajuda financeira da família, empregos temporários e bolsas do governo. A partir dos 18 anos, ao iniciar uma formação, em qualquer um dos três tipos, os estudantes recebem do governo holandês (o órgão responsável se chama DUO) uma bolsa de estudos válida por até quatro anos de aproximadamente €280 por mês, quantia que pode dobrar a depender das condições financeiras da família.
Além disso, o estudante pode solicitar empréstimos que chegam a €500 por mês, em condições vantajosas. A bolsa de estudos é condicional à obtenção de um diploma dentro de 10 anos. Os estudantes ainda recebem um cartão de transporte válido em todo o transporte público do país, podendo escolher entre opções muito vantajosas, como viajar gratuitamente no fim de semana e obter 40% durante a semana. O cartão de transporte é válido por cinco anos.
Quase todos possuem empregos em tempo parcial ou fazem bicos. A flexibilidade é impressionante: alguns trabalham uma ou duas vezes por semana num bar ou restaurante, ou ajudam na organização de alguma festa, ou fazem entregas, há de tudo um pouco.
Muitos estudantes universitários holandeses partem para outra cidade para estudar (o subsídio governamental cai em mais de €150 por mês se o estudante mora com os pais). A maioria vive em repúblicas com uma densidade populacional de alta variância. Aqui em Tilburg há uma enorme variedade de tipos de moradia. Um critério revelador da qualidade é a taxa de habitante por banheiro, que pode chegar a 17 nos casos mais críticos. Os preços de aluguel (mais custos de eletricidade, aquecimento e internet) flutuam entre €250 e €450.
Quando há um quarto vago, organizam-se visitas para os candidatos ao quarto (as chamadas kijkavonden), nas quais quem não fala holandês pode ficar em desvantagem e dificilmente é selecionado. Como obviamente nenhum estudante internacional fala holandês, esse estudante pode enfrentar dificuldades encontrando moradia.
[caption id="attachment_2356" align="aligncenter" width="530"]Traços culturais
Holandeses não tomam café da manhã nem almoçam direito. No café da manhã, comem algum pãozinho e tomam um café. No almoço, mais um pãozinho, uma sopinha e um waffle. É no jantar que se esbaldam na limitada culinária que a História lhes legou: batatas com carne, batatas com peixe, batatas com frango. É a grande refeição do dia, religiosamente consumida perto das 18 horas e de preferência com pelo menos dois comensais. O papo é bom e não raro toma horas. Acendem um cigarro e, dependendo, até abrem uma cervejinha. Curtem a vida durante a semana, e no fim de semana debandam em massa para a casa dos pais.
A maioria dos holandeses que eu conheço jamais entrou numa coffee-shop. Como a coisa é liberalizada, quase todo mundo já provou ao menos alguma “soft drug” (basicamente maconha e alguns alucinógenos), mas minha impressão naïve é que a taxa não seja mais alta do que em outros países. Aliás, não é verdade que drogas sejam legalizadas na Holanda. A comercialização de drogas continua proibida e punível por lei. Porém, o Estado holandês simplesmente não abre processo contra um coffee-shop que comercializa “soft drugs”, desde que não vendam a “dimenor”. É a chamada gedoogbeleid (“política de tolerância”, para os não-iniciados no idioma).
Aprender o holandês é uma tarefa tão inglória quanto inútil. É extremamente improvável encontrar alguém que não fale um inglês impecável. De fato, 90% dos holandeses falam inglês fluentemente, a maior proporção na União Europeia fora dos países de língua inglesa[9]. Além disso, a Holanda é o segundo país da União Europeia (depois de Luxemburgo), em que os habitantes dominam o maior número de idiomas: em média são 3,2.
Flexibilidade
A Holanda é um país de dezesseis milhões de habitantes com 26% de seu território abaixo do nível do mar. Um país que chegou a rivalizar com a Inglaterra em hegemonia econômica, organizou-se como uma República numa Era de reis absolutistas e transformou-se em Monarquia numa Era em que cabeças de reis rolavam. Talvez por isso não se importem muito em tirar sarro de sua família real, embora sejam fissurados nela.
Se eu tivesse que escolher uma palavra para descrever a Holanda, seria “flexibilidade”. Aqui parece que as regras e convenções são seguidas somente até o ponto em que segui-las é irracional. Tanto o sistema educacional quanto a cultura de flexibilidade ajudam cada indivíduo a escolher sua trajetória, de acordo com suas condições, aptidões e preferências. Isso sim é uma terra de oportunidades, em que quem tem pouco recebe o apoio e as condições de se superar e se desenvolver.
Alipio Ferreira Cantisani