A hora e a vez do ensino técnico no Brasil

Semana passada, o Ministério da Educação (MEC) suspendeu a tramitação do pedido de autorização de cursos superiores de tecnologia de serviços jurídicos. Como noticiado por Renan Barbosa para a Gazeta do Povo (Paraná)[1], essa discussão burocrática tem sido alvo de fortes pressões por parte da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Independentemente do resultado final, esse caso já possui um grande mérito: recobrar atenção para o debate sobre educação técnica no Brasil.

Mais do que decidir sobre casos singulares e particulares, é importante refletir sobre o sistema de ensino superior (ou pós-secundário, ou terciário) que queremos desenhar para o país. É secundário saber se auxiliar jurídico (paralegal, no atual jargão dos escritórios de advocacia) deve ser uma função regularizada cuja formação fica a cargo de um curso técnico; devemos, antes, compreender que papel tal ensino cumpre numa sociedade que se pretende plural e democrática, como a nossa.

A história do ensino técnico no Brasil já passa dos cem (100) anos[2]. Em 1909, o presidente Nilo Peçanha criou as Escolas de Aprendizes Artífices, cujo público-alvo era majoritariamente jovens carentes e cujo objetivo era, antes de mais nada, a inclusão social desses jovens. Essas escolas foram transformadas nos Liceus Industriais com a promulgação da Constituição de 1937, passando a desempenhar um papel mais articulado com o desenvolvimento da indústria nacional, uma prioridade do governo de Getúlio Vargas. Pouco depois, em 1942, o ensino técnico foi equiparado ao ensino médio. A conquista de autonomia administrativa e financeira precedeu a equivalência do ensino profissional ao ensino acadêmico, garantida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 4.204/61)[3].

Desenvolvimentos posteriores consolidaram uma rede de ensino técnico que se desenrola em três formatos principais: integrado, quando cursado durante o ensino médio, numa mesma instituição; em concomitância externa, quando cursado durante o ensino médio, mas numa instituição separada, dedicada exclusivamente à educação profissional; subsequente, quando cursado após a conclusão do ensino médio, sendo equiparado – em alguns casos – ao ensino superior acadêmico. É principalmente este último caso que me interessa aqui – falei do ensino médio técnico num texto aqui no Terraço Econômico no ano passado, quando examinei a proposta de reforma então em elaboração pelo governo federal, bem como os meandros do projeto Escola Sem Partido[4].

Há duas grandes perspectivas a partir das quais a educação profissional e técnica pós-secundária deve ser analisada: como uma demanda econômica e como uma demanda social. Simon Schwartzman chama a atenção para esse fato ao dizer que “[a] educação média, no mundo de hoje, é chamada a atender a dois senhores: o da qualificação para as atividades profissionais e acesso ao mercado de trabalho, e o da equidade social”[5]. Ainda assim, essas demandas por equidade social são articuladas, por Schwartzman e por muitos especialistas do assunto, em termos exclusivamente mercadológicos[6]. Não pretendo negar a dignidade e a importância da dimensão profissional – imprescindível para a realização pessoal e para a vida em sociedade –, mas não me parece justo reduzir as demandas pessoais e sociais a essa esfera, como se fosse a única.

Como já escrevi aqui no Terraço Econômico[7], um dos problemas mais graves enfrentados pelas universidades brasileiras é a necessidade de acomodar e dar conta dos mais diversos projetos de vida que florescem na sociedade. Estudantes chegam à universidade com demandas e anseios que muitas vezes não se harmonizam com os objetivos dessa instituição, articulados em torno do tripé pesquisa-ensino-extensão, gerando um choque de demandas que, em última análise, paralisa a instituição universitária[8] – um choque que chega a afetar, também, a pós-graduação[9].

Como lidar com esse quadro? Uma das respostas pode vir da reformulação do ensino técnico e profissionalizante. Do ponto de vista da universidade, fortalecer outras vias de qualificação e formação que possibilitem às pessoas viverem a vida que elas querem viver:

(…) [o] que fazer com aqueles cujas demandas, valores, escolhas de vida e planos não se encaixam com a estrutura das universidades em sentido amplo? Este é o desafio que, na minha opinião, deveria nortear uma verdadeira reforma na concepção de educação superior de nosso país — uma reforma da qual necessitamos gravemente. Diversos países podem servir de exemplo e inspiração, mas nenhum deles nos dará a resposta pronta. A Alemanha, por exemplo, possui um sistema educacional amplamente fragmentado, no qual diferentes instituições respondem por diferentes tipos de formação nos mais diversos níveis do sistema (do básico ao superior). Conservatórios, escolas de altos estudos, think tanks, fundações e centros de pesquisa pululam o cenário internacional e, em menor medida, se fazem presentes no nacional.[10]

Nesse sentido, um fortalecimento do ensino técnico subsequente, posterior ao ensino médio, vem ao encontro da reivindicação de caminhos educacionais que não se restrinjam aos moldes universitários. No entanto, essa solução encontra dois grandes obstáculos: em primeiro lugar, a visão restrita da educação técnica, que a reduz à dimensão profissionalizante, orientada exclusivamente para as demandas do mercado de trabalho; em segundo lugar, uma valoração social negativa dessa via de educação e qualificação, baseada no mais puro preconceito e no histórico bacharelista de nosso país.

Para atacar essas duas frentes, será necessário, a um só tempo, estruturar um ensino técnico (ou não-universitário) que vá além do caráter imediato e instrumental de colocação no mercado de trabalho – uma dimensão necessária e importante, mas não suficiente – e que também ofereça uma alternativa de qualidade àqueles que não se identificam com a educação superior acadêmica-universitária[11] – quebrando o estigma do ensino técnico como segunda opção, como alternativa menor e pior, reservada apenas a quem não tem capacidade ou possibilidade material-financeira de ingressar no superior acadêmico[12].

Não há fórmula mágica, mas o importante é não deixar passar esses momentos de discussão e reorganização política e social do país para pensar, de maneira estrutural, o sistema nacional de educação. Se renunciarmos a essa necessidade, as reformas certamente virão, mas de maneira irrefletida, improvisada, casuística, ad hoc e sem respaldo social. A escolha é nossa.

Rafael Barros de Oliveira – Colaborador do Terraço Econômico

Notas

[1] http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/cursos-tentam-formar-profissionais-da-area-juridica-sem-faculdade-de-direito-e20s9b0tku4ikyrfm0x5bh990 [2] http://www.brasil.gov.br/educacao/2011/10/surgimento-das-escolas-tecnicas [3] http://redefederal.mec.gov.br/images/pdf/linha_tempo_11042016.pdf [4] https://terracoeconomico.com.br/reforma-sem-partido-perspectivas-para-o-ensino-medio [5] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/08/1808684-educacao-media-nao-consegue-formar-quadros-com-a-qualidade-que-a-economia-exige.shtml [6] http://www1.folha.uol.com.br/especial/2016/ensino-tecnico/ [7] https://terracoeconomico.com.br/universidade-e-universalidade-universidade-nao-e-para-todos-e-para-qualquer-um [8] https://terracoeconomico.com.br/o-curioso-caso-de-bipolaridade-das-universidades-publicas-brasileiras [9] https://terracoeconomico.com.br/contradicoes-e-paradoxos-da-pos-graduacao-no-brasil [10] https://terracoeconomico.com.br/universidade-e-universalidade-universidade-nao-e-para-todos-e-para-qualquer-um [11] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/05/1768992-para-pesquisadores-ensino-tecnico-no-pais-e-muito-academico.shtml [12] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/08/1808465-curso-tecnico-ainda-e-visto-no-pais-apenas-como-pre-vestibular.shtml
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