Um problema atemporal do Brasil é o famigerado “jeitinho brasileiro”. O velho conhecido chavão tem origem na ideia de que “regras existem para ser quebradas” – mas, surpreendentemente, sempre é o outro que está errado quando isso ocorre, porque quando a regra é quebrada pelo próprio indivíduo, supostamente existe sempre uma razão completamente justificável para tê-lo feito.
Não se sabe exatamente como seria possível datar o início desta questão tão complicada – não exclusivamente brasileira, mas “aperfeiçoada” por aqui –, mas uma das vertentes que pode ser explorada é a da chamada discricionariedade, que significa, em termos práticos, a ação baseada em pensamento livre (eventualmente dentro da lei, mas sem seguir alguma regra).
Um exemplo ajuda a deixar o que o termo discricionariedade significa: recentemente foi aprovada uma alteração no Código Brasileiro de Trânsito (em seu artigo 228) que institui multa para som automotivo a quem estiver “perturbando o sossego público” sem que seja medido (com um medidor de decibéis) este barulho [1]. Outro exemplo interessante são as “leis da vadiagem” (que ainda ocorrem em alguns lugares do país), que instituem que aqueles que nada estiverem fazendo devem ser autuados e até presos justamente por isso [2]. A semelhança entre os dois casos é simples: em vez de se basear em algum critério objetivo (a superação de um nível de ruído apresentado em um decibilímetro no primeiro caso ou a efetiva prática de algum delito previsto em lei no segundo), o que existe é a abertura para interpretação (do que seria “som que perturbe” ou “atitude suspeita de vadiagem”).
Neste ponto pode ser que o leitor imagine que não há ponto em comum entre esta questão sendo abordada e a economia – ou que, mesmo que esta tangência exista, ela não tenha influência sobre as relações econômicas. A relação entre a discricionariedade e a economia tanto existe que já demonstrou seus efeitos: nos idos de 2012 e 2013 tivemos uma redução da Selic realizada por motivação e influência do governo federal (e não por alguma regra que pudesse estar guiando-a) [3] e os efeitos tanto em juros quanto em inflação e outras variáveis são sentidos até hoje.
Não se trata de aqui colocar em pauta que toda relação econômica deva ser regida por regras – primeiramente porque existem casos em que isso aumentaria o custo (nem toda viatura policial possui um decibilímetro, talvez seja esse um dos motivos da alteração no CBT) e, além do mais, porque isso congelaria as relações e seria improdutivo –, mas sim de gerar uma reflexão: é possível que as relações sociais sejam desenvolvidas por uma associação entre regras estabelecidas e “bom senso” de quem as aplica? Ou não seria melhor ancorarmo-nos em princípios mais objetivos? Deixar a responsabilidade pela aplicação de uma regra sob o direcionamento discricionário de quem irá aplica-la parece mesmo uma boa ideia?
Daron Acemoglu e James Robinson são dois autores que pesquisam o porquê de as nações enriquecerem ou empobrecerem ao longo do tempo. Uma das razões principais apontadas são as instituições – que, trazendo para a atual análise, são as boas regras sendo seguidas por todos e válidas a todos [4]. Segundo pesquisas do autor, essa é a chave que cria incentivos para a economia avançar: a isonomia perante a lei. Seu pensamento é sumarizado na imagem abaixo:
[caption id="attachment_8034" align="aligncenter" width="886"]O “jeitinho brasileiro” ainda tem um longo caminho pela frente e uma mudança deste posicionamento depende não só de maior rigidez em fiscalizações como também da movimentação de incentivos que possam mobilizar os agentes em torno de melhorias de comportamento. Caso estas ações não tenham lhe trazido nada a mente, duas palavras o farão de imediato: Lava Jato. Pense no efeito de colocar na cadeia os maiores empreiteiros (como Marcelo Odebrecht) e os mais poderosos chefes políticos do país (como Eduardo Cunha) pode ter sobre a discussão do cometimento de outros ilícitos e sobre a efetividade da justiça como “ferramenta utilizada de maneira isonômica a todos os indivíduos”.
Estamos no caminho das mudanças positivas – o próprio Acemoglu afirmou isso alguns meses atrás [7] –, mas é sempre salutar estarmos refletindo sobre a diferença entre quem aplica a regra e a regra em si, para justamente não cairmos na tentação de, como sugerem alguns políticos, confundirmos “aqueles que abriram as portas para a investigação” com “aqueles que não devem ser investigados porque permitiram que outros fossem investigados”. Essa “carta branca” deve ser concedida apenas aos que realmente não cometem delitos, não aos que apontam questões de outros indivíduos.
Caio Augusto – Editor Terraço Econômico
[1] http://g1.globo.com/carros/noticia/2016/10/multa-por-som-alto-agora-pode-ser-aplicada-sem-medidor-de-decibeis.html [2] http://g1-globocom.jusbrasil.com.br/noticias/2365554/lei-da-vadiagem-e-raramente-aplicada-mas-ainda-persiste-no-pais [3] https://terracoeconomico.com.br/a-regra-de-taylor-e-clara [4] Os autores mantem um blog para levantar discussões; o blog é homônimo ao livro: http://whynationsfail.com/ [5] https://www.facebook.com/porque.economia/photos/pb.459776257519499.-2207520000.1477338435./706540382843084/?type=3&theater [6] http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/ [7] http://exame.abril.com.br/revista-exame/o-lado-meio-cheio-do-copo/