Você no Terraço | por Lucas Prata Feres
“A crise mundial não gerou coisas boas para os jovens. Na semana passada, examinei a porcentagem de jovens sem trabalho. Corremos o risco de ter uma geração que jamais teve um trabalho” – a frase é do papa Francisco, dita em sua passagem pelo Brasil para os eventos da Jornada Mundial da Juventude, em meados de 2013. A preocupação do pontífice argentino era legítima: naquele momento, cerca de 75 milhões de jovens pelo mundo padeciam da chaga do desemprego. Desde então, a situação não melhorou e a perspectiva de continuidade da crise econômica internacional, especialmente nos países da periferia da zona do euro, revela como uma de suas mais sombrias faces elevadas taxas de desemprego juvenil. Na mesma semana, a chanceler alemã Angela Merkel disse que o desemprego juvenil “talvez seja o maior problema que a Europa enfrenta”. Dois anos depois, o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schultz, manifestou, em seu mais recente discurso em Bruxelas, preocupação com a “geração perdida”, que não encontra um posto de trabalho permanente e segue dependente de contratos temporários e estágios não-remunerados. Em Portugal, popularizou-se a expressão geração à rasca, algo como geração lascada. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por sua vez, tem preferido o termo scarred generation. Em sintonia com tais declarações, a comissária europeia responsável pela pasta do emprego, Marianne Thyssen, anunciou essa semana uma proposta de desbloquear um bilhão de euros da dotação orçamental do IEJ, Iniciativa para o Emprego dos Jovens, aumentando a taxa de pré-financiamento do programa de 1% para 30% dos 3,2 bilhões do fundo.
Com a deterioração da situação econômica mundial, a juventude voltou a ganhar protagonismo no noticiário político internacional. Não mais como aquela geração do peace and love dos anos sessenta, que se rebelou contra a sociedade homogênea da golden age e bradava por direitos civis e liberdade de manifestação dos desejos individuais. Sem contar com a segurança econômica do pós-guerra e ameaçados pelos efeitos da crise, os jovens envolvidos em movimentos como o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, o M-15, na Espanha, e as diversas versões nacionais da chamada Primavera Árabe respondem ao risco a que estão submetidas suas próprias condições materiais de existência. A oposição àquilo que torna suas vidas indignas e ameaça seus futuros, reconhecido de alguma maneira no modo como se gere a economia na atualidade, cria uma sensação de identidade comum em um grupo etário tão difuso como a juventude. “We’re the 99%”, gritam os manifestantes em Nova Iorque, em uma referência à tendência de concentração da renda no 1% mais rico da população, como vem sendo denunciado, com grande repercussão, pelo economista francês Thomas Piketty. A autoimolação de Mohamed Bouazizi, o jovem verdureiro que teve seus produtos apreendidos pelo fiscal de impostos tunisiano, foi apenas o estopim de um movimento geral de insatisfação que já vinha de há um tempo, associado a condições degradantes de vida que mantinham quase um quinto dos jovens sob o desemprego, e que terminou expulsando o ditador Ben Ali do país. Os manifestantes tunisianos são chamados de hittistes, gíria franco-árabe para “aqueles que ficam encostados no muro”, que não fazem nada, por assim dizer. Não à toa, o próximo país a viver sua primavera, o Egito, viu um milhão de pessoas perderem o emprego no ano da eclosão do movimento popular que derrubou Mubarak do poder. Aí, o termo empregado é menos eufêmico: shahab atileen, que significa jovens desempregados. Se os movimentos de contestação aos regimes autoritários no Oriente Médio e norte da África tiveram relativo sucesso na derrubada de líderes políticos, a falta de soluções para a consolidação da democracia e, ainda menos, para a recuperação da economia parece ter congelado as flores antes de seu desabrochar. Na Tunísia, berço dos movimentos, 45% dos jovens com diploma superior não encontram emprego. Em um novo capítulo da história, o ISIS tem conseguido angariar membros dentre essa juventude desalentada, despertando uma preocupação que alcançou até o novo rei Salman da Arábia Saudita, consternado com os jovens jihadistas que voltam à casa após uma experiência no grupo terrorista.
A relação entre crise econômica, caos social e radicalização política vem de longe no tempo. Nunca é demais lembrar que os nazistas ascenderam ao poder pela via eleitoral, na Alemanha em crise de 1932, quando a taxa de desemprego ultrapassava a marca de 40%. Ao sondar o banqueiro Schacht para reassumir a presidência do Reichsbank, em março de 1933, Hitler teria dito: “Senhor Schacht, certamente estamos de acordo que no momento só pode haver uma tarefa realmente urgente para o novo governo: acabar com o desemprego”. A capacidade do state-led growth de Hitler de reduzir a taxa de desemprego em quase 80% em menos de um ano sugere uma explicação para a aceitação passiva pela sociedade alemã das barbaridades cometidas pelo Führer. Em um paralelo à crise atual, a incapacidade dos jovens de construírem uma trajetória de vida em que sejam sujeitos do próprio destino coloca em xeque as próprias promessas da modernidade de auto realização do indivíduo, baseadas nos princípios liberais que fundaram a sociedade ocidental contemporânea com a dissolução do Antigo Regime. Uma juventude sem nada a perder carrega em si o potencial latente de contestação a tudo o que representa o status quo, como teorizou Mannheim, o aluno de Alfred Weber em Heidelberg e depois professor de sociologia em Frankfurt.
[caption id="attachment_3225" align="aligncenter" width="576"] Protesto em Madri, na Espanha, reúne milhares de jovens contra o desemprego. Foto: Iguatu Notícias.[/caption]A bem da verdade, a questão da inserção do jovem no mercado de trabalho ganhou relevância há pouco tempo. Ainda nos anos sessenta do século passado, os cientistas sociais perguntavam-se se a juventude de fato existe ou é apenas uma palavra. Bourdieu, o sociólogo francês que estudou profundamente o tema, costumava dizer que a própria delimitação do ser jovem, idade mais social que biológica, é objeto de constante disputa, já que significa um período de vida em que o indivíduo receberia da sociedade uma espécie de moratória social, isto é, o direito a retardar sua entrada no mundo do trabalho. Nesse interregno, o jovem se prepararia para a vida adulta, sendo a juventude, assim, uma espécie de vir a ser. O próprio Marx se imiscuiu no assunto, argumentando que a existência plena da juventude depende do estado de desenvolvimento econômico da sociedade e, portanto, de sua possibilidade de dispensar o jovem da atividade produtiva. A transição para sociedades urbano-industriais trouxe consigo a regulação social que permitiu a escola de massas e a tutela da política pública sobre os jovens, associados a diversos problemas que seriam característicos de sua condição etária, como delinquência e subversão. Este processo civilizatório, porém, foi antes exclusividade de certas parcelas sociais, já que a imperiosidade de complementação da renda familiar seguiu empurrando jovens-adolescentes ao mercado de trabalho. A constituição social da juventude comporta, daí, importante marca de classe. O próprio emprego, em si, ganha conotações distintas no seio da juventude: para a parcela pobre, aparece como meio de sobrevivência; para os mais abastados, tem o sentido de novas experimentações e conquista de independência financeira. Como se não bastasse, o discurso de teor conservador transforma a necessidade do trabalho em virtude – “é melhor trabalhar que vagabundear”, – estimulando a inserção precária e precoce. A presença do jovem no mercado laboral tem dificuldades inerentes, especialmente pela resistência do empregador, associadas à falta de experiência e senso de responsabilidade. O fundamental a destacar aqui, no entanto, é que, apesar da determinação das dimensões de seu espaço no mundo do trabalho responder, assim como a dos adultos, a questões macroeconômicas, o jovem é mais afetado pelos ciclos econômicos, já que custa menos despedi-los e costumam ter contratos menos estáveis. O ideal seria, nesse sentido, adiar a entrada do jovem no mercado de trabalho, postergando seu tempo dedicado ao ensino formal e conformando um padrão ocupacional compatível com algum nível de mobilidade intergeracional. No entanto, não se conforma tal padrão sem dinamismo econômico, e os manifestantes parecem enxergar nas políticas de austeridade fiscal as correntes da estagnação.
Na realidade da crise europeia, a juventude está submetida à chancela da insegurança. Nunca antes se viu jovens irem às ruas protestar contra mudanças nas regras da previdência, como se presenciou nas praças de Paris. Desemprego em níveis alarmantes e cortes de direitos sociais, tradicionais em terras europeias desde a consolidação dos Welfare States no pós-guerra, criaram um cenário de incerteza que, para alguns estudiosos, pode estar até mesmo definindo uma nova classe social, com hábitos de vida e consumo típicos de classe média, mas que vive sob a ameaça permanente do empobrecimento. Guy Standing, professor da Universidade de Londres, a chama de precariado. O diretor-geral da OIT, Guy Ryder, tem alertado repetidamente sobre as consequências pessoais da crise: “se um jovem fica sem trabalho por dois anos, isso segue aquele profissional por toda a sua vida (…) a saúde dessa pessoa é impactada e até a expectativa de vida”. Trocando em miúdos, regressão social. As perspectivas não são boas: a OIT prevê que o desemprego deverá seguir aumentando pelo menos até 2019, quando onze milhões de postos de trabalho terão sido destruídos, adicionalmente aos 61 milhões perdidos desde 2008 até o início desse ano. Em termos de desemprego juvenil, as taxas atingem seus patamares mais elevados nos países mais afetados pela crise da zona do euro, como se pode ver no gráfico a seguir. É clara a tendência de aumento no pós-crise, assim como alarmantes os níveis em Grécia e Espanha, que deixam ao relento mais da metade da moçada.
[caption id="attachment_3226" align="aligncenter" width="575"] Fonte: Eurostat. Elaboração própria.[/caption]Nos cenários de crise econômica, o desemprego tende a aumentar não apenas pelas demissões, mas também porque muitos jovens passam a compor a força de trabalho disponível, em busca de qualquer fonte de renda que incremente o orçamento familiar. No contexto atual, algumas tendências despertam atenção especial. Um fenômeno que tem ganhado repercussão é a alta incidência do desemprego sobre os jovens com diploma superior. Na zona do euro, a taxa de desemprego entre eles saltou de 10,5% a 17,4%, entre 2007 e 2013, números que parecem questionar as teorias do capital humano que se popularizaram nos anos noventa, e que atribuíam o desemprego juvenil à falta de “empregabilidade” da força de trabalho – se o nível de instrução qualifica o trabalhador a alçar postos de trabalho de maior qualidade, não o torna, porém, insuscetível aos sobe e desces da economia. Aos que encontram uma vaga, está reservado, muitas vezes, um trabalho temporário ou part-time. Na zona do euro, 23,1% dos jovens empregados estão submetidos a essa forma de contrato, dos quais 34,2% involuntariamente. Outra tendência que ganha força e atrai preocupações é a dos chamados NEET, not in education, employment or training, jovens cujo desalento atingiu o ápice de desmotivar qualquer forma de atividade. Dos desempregados, tem crescido a parcela daquele de caráter long-term, isto é, que já dura pelo menos 12 meses. O gráfico abaixo apresenta a evolução dessas tendências na zona do euro.
[caption id="attachment_3227" align="aligncenter" width="576"] Fonte: Eurostat. Elaboração própria.[/caption]O ciclo de manifestações que tomou o mundo nos últimos quatro anos responde, evidentemente, a contextos econômicos e sociopolíticos distintos, o que recomendaria análises fragmentadas dos diversos fatores característicos de cada caso nacional. Não parece prudente, contudo, abandonar as relações entre esses movimentos, que levaram às ruas uma juventude tão heterogênea a lutar (em muitos casos, pela primeira vez) pelo direito a sonhar seu próprio futuro. “Precários nos querem, rebeldes nos terão” e “Eu quero ser feliz”, mensagens hasteadas em protestos em Porto e Coimbra, parecem sintetizar os acontecimentos na Europa. Embora fique claro o desejo generalizado por coesão e justiça social, transparece também um sentimento de insatisfação individual, associado à negação da estabilidade e previsibilidade do cotidiano, traços típicos da classe média. De qualquer maneira, o caminho buscado por essas juventudes perigosas, dispostas a confrontar qualquer força de repressão, manifesta-se de forma coletiva. Ainda se está a definir o sucesso e a viabilidade política das agremiações nascidas do ventre desses movimentos, mas a chegada do Syriza, surgido pouco antes da crise, ao poder na Grécia e as perspectivas de vitória nas próximas eleições gerais pelo Podemos, fundado no ano passado, na Espanha, os dois países com as maiores taxas de desemprego entre os jovens, parece indicar a possibilidade real de transformação latente nesses movimentos. A importância conquistada por essas forças pode salvar a humanidade das barbáries sempre constantes dos projetos políticos dos grupos de extrema direita, que também floresceram no velho continente em crise. A sociedade europeia parece disposta a dar uma chance a esses jovens que, como cantava Gonzaguinha, não correm da raia a troco de nada e constroem a manhã desejada.
Lucas Prata Feres estuda economia na UNICAMP e pesquisa sobre política econômica e mercado de trabalho
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