Karl Marx está morto

Quando analisamos o que Karl Marx quis dizer, muito se discute e pouco se conclui. Analisando aquilo que escreveu, menos ainda se sustenta. Pode-se dizer que o pensador olhou para os objetos certos, um mérito inegável. Todavia, fracassou em todas as outras coisas.

Numa perspectiva estritamente econômica, estudar o conjunto de ideias de Marx é importante para compreender as raízes da disciplina, assim como propõe Pérsio Arida. Contudo, pode-se dizer que reinventá-las para o Brasil de 2019 significa regredir no conhecimento.

Aquilo que se chama de teoria social de Marx é amplamente popularizada, principalmente, na prática das ciências humanas e sociais no Brasil. Contudo, estudar as influências hegelianas e ricardianas sobre o pensamento marxiano é completamente diferente, digamos, de fazê-lo para explicar os determinantes da crise financeira de 2008.

As inúmeras predições de suas obras não se sustentaram ao longo do tempo. Além disso, o referido conjunto de ideias econômicas era visto como completamente inválido, ainda que passadas poucas décadas após a publicação, conforme elabora Bertrand Russell.

Inicialmente, Russell apresenta, numa palestra na London School of Economics, os dois pontos cardeais da ‘teoria econômica’ de Marx: a mais-valia e a tendência à concentração de capital.

Mais-valia

Dito isso, consideremos, num primeiro momento, o que David Ricardo escreveu sobre da natureza do valor:

“O valor de uma mercadoria, ou a quantidade de qualquer outra pela qual pode ser trocada, depende da quantidade relativa de trabalho necessário para sua produção, e não da maior ou menor remuneração que é paga por esse trabalho.”

Em outras palavras, o valor de um bem é proporcional ao trabalho empregado para produzi-lo, incluindo o trabalho empregado na produção da matéria-prima ou do maquinário utilizado no processo de fabricação.

Ademais, é notável que Ricardo permanecia intrigado por casos específicos: o vinho, cujo valor de troca era acrescido após anos de armazenamento, é um exemplo. A madeira de carvalho, considerada tão preciosa quando comparada às madeiras de outras árvores, embora tivesse sido obtida com uma quantidade comparável de trabalho, é outro.

Tais especificidades foram omitidas por Marx. Segundo ele, o valor deveria ser mensurado através da quantidade de trabalho humano e indiferenciável. Sendo assim, pode-se dizer que as diferenças na remuneração paga pelo trabalho são derivadas, grosso modo, das diferenças do tempo necessário para a produção de um bem.

Então, um trabalhador custa (em termos de salário) a mesma quantidade de trabalho exigido para produzir as condições mínimas necessárias para a sua própria sobrevivência, bem como a da sua prole (família).

Logo, é aqui que o problema da suposta exploração do assalariado sob o sistema capitalista se inicia: durante a jornada diária, um trabalhador produz mais que o necessário para satisfazer essas condições mínimas de sobrevivência.

Num caso hipotético, onde a jornada de trabalho é de 12 horas e apenas 6 são necessárias para satisfazer as condições mínimas, restam outras 6. O valor resultante das horas restantes, portanto, não será apropriado pelo trabalhador e sim pelo capitalista, constituindo a mais-valia.

Em última instância, a mais-valia constitui o lucro do capitalista, que enrique através da exploração do próximo. Enquanto isso, o trabalhador permanece num nível de subsistência. Esse seria o resultado supostamente inevitável da produção capitalista sob um sistema de livre-concorrência.

Só há um problema: a mais-valia é uma falácia. Assim como aponta Russell, não há como provar que o trabalho é o único denominador comum de uma série de coisas distintas. Tampouco se pode provar como isso se traduz em relevância.

Além disso, considerando o sistema de livre-concorrência admitido por Marx: O que impediria um capitalista de abrir mão da própria parcela de valor apropriado para vender a  mercadoria por preços menores que a concorrência?

Dado que o valor seria determinado pelo trabalho humano indiferenciável, o que explicaria um caso típico na Inglaterra do século XIX: porque há diferença de remuneração entre um advogado-conselheiro da rainha e um advogado qualquer?

A ‘teoria econômica’ marxiana não oferece resposta para as duas perguntas iniciais. No caso da terceira, ignora que a competência do conselheiro o diferencia de um advogado comum, logo, essa característica independe do custo do trabalho, mas impacta o valor do serviço prestado.

A respeito dos salários, caso ele seja igual ao tempo necessário para produzir as condições mínimas de sobrevivência, a mera existência de um assalariado num nível diferente de remuneração invalida o argumento inicial.

Isso acontece porque as ditas ‘condições mínimas’ são decorrentes de fatos históricos. Não se trata de lógica, dado que reivindicações sindicais, por exemplo, poderiam melhorar a remuneração dos trabalhadores.

A mais-valia, porém, foi descoberta e demonstrada por Marx a partir de evidências contábeis. Esses registros corroboram a tese de que parte do valor produzido é destinado aos salários e o restante aos lucros. Entretanto, ausência de evidência não é evidência de ausência.

Isso levou Karl Marx a um erro de dedução, que se desdobra numa proposição absurda: a participação do empresário no processo produtivo não envolve trabalho e tampouco acrescenta valor à mercadoria.

Tendência à concentração de capital

No conjunto de ideias em questão, a concentração de capital é praticamente uma lei. Após o fim do artesão, proprietário (detentor) das ferramentas materiais e intelectuais (meios de produção) necessárias para a produção econômica, restam dois papéis a serem desempenhados numa sociedade: o capitalista, detentor exclusivo desses meios, e o proletário, desapropriado dos mesmos.

O efeito dessa tendência centralizadora seria um número de empresas cada vez menor. Consequentemente, um contingente crescente de trabalhadores seria empregado por menos e menos capitalistas. Por sua vez, os benefícios desse processo seriam capturados pelos segundos. Aos primeiros, restaria miséria, opressão, degradação e exploração.

Em última instância, a revolta de uma classe trabalhadora — cada vez mais numerosa — seria o estopim para a vitória sobre os patrões, dando fim à propriedade privada e expropriando o próprio expropriador. Portanto, estabelecendo os alicerces do sistema comunista.

Especificamente, quanto maior a empresa, maior a produtividade do trabalho. Num sistema de livre-concorrência, isso resultará numa única firma para cada setor da economia. O barateamento da produção, proporcionado pelos ganhos de escala, dá origem à crença de que, numa sociedade comunista, poucas horas de trabalho serão necessárias para uma vida confortável.

Mas há uma inconsistência: a tendência à concentração de capital contradiz a teoria marxiana do valor. Se a produção em escala leva ao barateamento da produção, horas de trabalho não determinam os custos de produção de maneira exclusiva.

Isso é, uma empresa que pode oferecer preços mais baixos venderá mais e produzirá mais, em função de um eventual aumenta na demanda. Assim, seus custos serão diferentes quando comparados a uma empresa menor, ainda que o trabalho empregado no processo produtivo seja análogo.

Explorando essa inconsistência lógica, caso a tendência à concentração seja verdadeira, sem exceções, a teoria do valor, a mais-valia e o resto da construção teórica de Marx se torna descartável. Afinal, a transição revolucionária da propriedade privada para a propriedade comum é inevitável, basta que os incentivos adequados estejam postos.

Uma importante omissão cometida por Marx é a distinção entre a produção agrícola e a produção industrial. Na indústria, considerando as atividades de produção e distribuição (transporte), a tendência em questão é verdadeira.

Isso ocorre, principalmente, porque o maquinário utilizado tem custo elevado e exige um grande número de trabalhadores para operá-lo (divisão do trabalho). Nesse contexto, uma firma maior está mais apta a investir na aquisição do melhor maquinário, anunciar os próprios produtos e arcar com os custos de transporte de grandes volumes.

Por outro lado, uma firma maior também possui certas desvantagens. Nominalmente, a dificuldade para supervisionar um grande número de funcionários, possibilitando práticas corruptas ou o desperdício deliberado de tempo, por exemplo.

Na produção agrícola, escalas maiores implicam custos mais elevados. Há de se considerar que a produtividade das terras não é homogênea. Ademais, ao contrário da fábrica, onde o trabalho vai ao encontro do trabalhador, quanto maior a área de cultivo, maior o território onde o trabalhador precisa se deslocar. Isso restringe as vantagens da concentração.

Da mesma forma, as atividades agrícolas dependem das estações do ano e do conhecimento das peculiaridades do solo. Fatores como esses conferem vantagem ao pequeno produtor. Em suma, embora o uso do maquinário favoreça a grande fazenda, não há uma tendência de centralização análoga à indústria na agricultura.

Considerações finais

As ideias econômicas de Karl Marx pouco podem ser aproveitadas fora de seu contexto original, ou seja, a Europa ocidental do século XIX. Fazê-lo significa regredir no conhecimento construído ao longo de mais de um século de ciência econômica. Mesmo no contexto original, a sustentação lógica dessas ideias é fraquíssima.

Enquanto isso, é comum vermos a retratação personificada do capitalismo. Trata-se de um ser dotado de vontade própria, sempre impulsionado por infinitas contradições. É provável que a origem desse tipo de interpretação está nas ideias de Karl Marx. Por esse motivo, talvez, a maior revolução a ser feita é a superação de uma velha mania: a aplicação de ideias ruins e ultrapassadas à situações que pouco lhe dizem respeito.

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