“Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.” (Vladimir Maiakovski)
Em abril de 2014, completou-se 20 anos do assassinato do presidente de Ruanda, Juvenal Habyarimana. O que se seguiu após este fato foi um genocídio em que mais de 800 mil pessoas foram brutalmente exterminadas. Antes mesmo da guerra civil, uma rádio, Télévision Libre des Mille Collines, divulgava diversas propagandas pró genocídio convocando a maioria étnica Hutu a “exterminar as baratas”, referindo-se à minoria étnica Tutsi. Durante o genocídio, a rádio foi muito eficiente ao denunciar a localização de esconderijos Tutsis, facilitando assim a chacina.
O comandante das forças de paz da ONU em Ruanda na época do massacre, General Romeo Dallaire, disse: “Simplesmente interferir nas transmissões e trocá-las por mensagens de paz teria causado um impacto significante nos rumos dos eventos”[1]. Esta ação seria claramente um ato de censura, mas quem ousaria se opor? Os acontecimentos em Ruanda nos ilustram que a liberdade de expressão provavelmente deve possuir um limite.
[caption id="attachment_459" align="alignnone" width="676"]Antes de discutirmos seus limites, cabe lembrarmos o motivo de uma ampla liberdade de expressão ser, via de regra, positiva. A livre manifestação de ideias se trata da constante busca pela verdade inerente à democracia e a um equilíbrio entre estabilidade e mudança social. A livre expressão de ideias surge como alternativa ao uso da força, que ameaça as liberdades básicas dos cidadãos, sendo necessária para que as pessoas exerçam as suas capacidades morais de ter um senso de justiça e defender uma concepção do bem.
John Stuart Mill, filósofo liberal inglês que viveu durante o século XIX, em sua obra “Sobre a Liberdade” apresentou uma grande defesa da livre manifestação de ideias: “Se toda a humanidade partilhasse de uma opinião e apenas uma pessoa partilhasse da opinião contrária, a humanidade não estaria mais justificada em silenciá-la, não mais do que ela estaria justificada em, houvesse o poder para tanto, silenciar a humanidade”.
Mill prossegue argumentando que um censor se autoproclamaria infalível, pois sua opinião deveria ser superior à do censurado. Entretanto, ninguém é infalível, logo, nenhuma censura é aceitável. Este raciocínio permite que deixemos opiniões, como à da radio de Ruanda sejam divulgadas? O estado não deve coibir propagandas racistas, nazistas ou homofóbicas, pois existe a possibilidade de estarem corretas?
A resposta também é dada por Mill, que propõe um limite para a liberdade humana ao definir o Princípio do Dano: “É o princípio de que o único fim para o qual as pessoas têm justificação, individual ou coletivamente, para interferir na liberdade de ação de outro, é a autoproteção. É o princípio de que o único fim em função do qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de prevenir dano a outros.”
Aqueles que, diferentemente de Mill, defendem uma ilimitada liberdade argumentam que a humanidade teria a capacidade de mudar suas opiniões danosas quando apresentadas a novos e diferentes argumentos, basta que oportunidades a discursos que se contraponham às expressões danosas apareçam assim a “verdade” se restabeleceria. Porém, as sociedades, geralmente são muito desiguais em termos de demandas e poderes. Logo em um conflito de interesses as forças não se anulam, se competirem diretamente, a opinião do mais “forte” sempre tenderá a prevalecer. Assim, quando uma minoria é deliberadamente atacada é dever da sociedade protegê-la de seus opressores.
Em termos práticos, há que se definir o que seria dano. Pois, é fato que minha opinião pode incomodar uma pessoa, até mesmo ofender, mas, até que ponto isto é um dano?
A liberdade de expressão é garantida pela declaração universal dos direitos humanos, assim como o direito à dignidade, à vida e à liberdade sem distinção de qualquer espécie. A interpretação mais atual dos tratados internacionais que regem o tema, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, é que liberdade de expressão inclui o direito de “chocar, ofender e perturbar”, mas, todos os estados devem punir por lei “qualquer apologia que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência.”
Vale à pena ressaltar aqui que não se faz apelo à medidas de censura prévia que, além de moralmente injustificável, seria inerentemente falha. O que se propõe é o estabelecimento de mecanismos legais que punam “qualquer apologia que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência.”
Opiniões de cunho racista, homofóbico, entre outros, devem ser punidas pois não se sabe quais dimensões pode tomar uma simples difusão de ideias. Se apenas a oposição de ideias fosse suficiente, genocídios, como o holocausto, não teriam ocorrido e muito menos se repetiriam na história.
[1] http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/3601369.stm